Capítulo 84 - Impotente (3/3)

A notícia do segundo ‘ataque’ a Zach enquanto ele estava no hospital gerou mais uma onda de controvérsia e várias promessas dramáticas da equipe do hospital e das autoridades da cidade de que o culpado seria pego a qualquer momento. Considerando que nem mesmo os maiores detratores de Zorian pareciam suspeitar dele como o autor do crime, ele duvidava bastante dessa afirmação. Um detalhe curioso era que o hospital alegava ter pegado o agressor em flagrante e o ter ‘lutado heroicamente contra ele’, razão pela qual Zach supostamente não havia se ferido mais durante a invasão.

Enquanto aguardava o resultado de sua intervenção, Zorian investigou o que havia acontecido com Alanic, já que o sacerdote guerreiro era um dos poucos magos de alma competentes e confiáveis ​​que ele conhecia. Infelizmente, como Zorian não conseguia se teletransportar e estava ocupado com toda a situação de Zach, ele nunca interveio para salvar Alanic dos assassinos de Sudomir, então, quando finalmente foi verificar como ele estava, o homem já estava morto. Frustrante. Isso o deixou curioso sobre como aqueles assassinos eram capazes de matar alguém do calibre de Alanic. Investigando um pouco o caso, descobriu que ele havia sido basicamente emboscado enquanto dormia, permitindo que seus atacantes o matassem antes mesmo que ele percebesse o que estava acontecendo. Isso… fazia sentido, sim. Se Zorian salvava Lukav, Sudomir entrava em pânico e agia precipitadamente, tentando matar Alanic à força bruta antes que Lukav pudesse contatá-lo e dizer que alguém estava matando pessoas como eles. Se o assassinato de Lukav ocorria sem problemas, Sudomir agiria com a devida cautela e planejamento, matando Alanic enquanto ele dormia.

De qualquer forma, o tratamento funcionou muito melhor do que ele esperava — quatro dias depois de dar as poções para Zach, seu companheiro viajante do tempo acordou do coma. Pouco tempo depois, ele exigiu ver Zorian, o que praticamente acabou com qualquer tentativa de impedir Zorian de visitar o hospital.

“Como você está se sentindo?” Zorian perguntou ao seu companheiro de viagem no tempo.

“Uma merda”, resmungou Zach. Ele lançou um olhar desconfiado para Zorian. “Ouvi dizer que foi você quem me encontrou depois que meu babaca de tutor me enfiou inconsciente em algum porão. Acho que devo te agradecer por isso, mas… como você está tão melhor do que eu? Você não foi atingido pela explosão ou algo assim?”

“Você sabe que nossa conversa provavelmente está sendo espionada, né?” Zorian perguntou.

“E daí? É só colocar um feitiço de privacidade no quarto e pronto”, disse Zach.

“Não posso”, suspirou Zorian. “Não consigo conjurar nada agora.”

Zach ficou em silêncio por alguns segundos.

“Ah”, disse ele finalmente. “Acho que você não se safou tão bem quanto parece. Provavelmente não quer ouvir isso, mas, de certa forma, isso me deixa feliz. Prefiro que você tenha que passar por essa merda comigo.”

“Babaca”, disse Zorian, sem qualquer tom de raiva.

“Sim, sim… mas falando sério, por que você já está andando por aí enquanto eu mal consigo ficar de pé sem vomitar em mim mesmo?”

“Não tenho certeza, mas… você por acaso se lembra de ter acordado no seu quarto por um instante antes de perder a consciência de novo?” perguntou Zorian.

Zach franziu a testa.

“É difícil lembrar”, disse ele depois de alguns segundos. “Talvez?”

“Hum. Bem, vamos ter que continuar esse assunto quando você sair do hospital”, disse Zorian. “Consegue estimar quanto tempo vai levar para você estar totalmente recuperado?”

Zach franziu a testa. “Não sei. Quatro, cinco meses? Algo assim.” 

Zorian soltou um suspiro de alívio. Embora o estado de Zach fosse pior que o seu, ainda não parecia tão grave…

“Precisa de algo urgente agora?” perguntou Zorian. “Como você pode imaginar, minha capacidade de conseguir coisas está um pouco limitada no momento, mas farei o meu melhor.”

“Tudo o que eu quero agora é sair deste maldito hospital”, resmungou Zach. “Mas acho que isso não vai acontecer antes do fim do mês, considerando o que ouvi por aí, e nenhum de nós tem condições de forçar a situação agora.”

Era exatamente como Zach havia dito. Ele passou o resto do reinício preso no hospital enquanto Zorian tinha que se esquivar de perguntas cada vez mais insistentes sobre seu envolvimento no ‘caso Zach’ e suas atividades pessoais.

Felizmente, antes que essas coisas pudessem realmente avanaçar, o festival de verão chegou e o reinício terminou.

* * *

Os cinco reinícios seguintes foram relativamente tranquilos. Com suas almas tão gravemente danificadas e sua capacidade de conjurar feitiços comprometida, Zach e Zorian não podiam fazer nada particularmente perigoso ou extenuante, sob o risco de prolongar ainda mais sua recuperação ou de que o dano à alma se tornasse permanente.

Seja Zach ou Zorian, não havia outra escolha senão esperar pacientemente que suas almas se curassem. Então, desistiram de fazer qualquer coisa séria e decidiram apenas se divertir e praticar algumas de suas habilidades mais fáceis. Uma parte de Zorian estava horrorizada com a ideia de fazer uma pausa, com o tempo se esgotando rapidamente, mas se forçar a fazer algo lhes traria pouco benefício e muito risco, então ele fez o possível para reprimir esse sentimento.

Inesperadamente, ter sua alma danificada acabou sendo uma grande vantagem para a habilidade de Zorian com a percepção de alma e magia de alma em geral. Isso permitiu que ele mapeasse sua alma com muito mais detalhes e aprimorou sua compreensão de como as almas geralmente funcionavam. Havia algumas coisas que eram muito difíceis de perceber quando tudo estava indo bem, e algumas partes da alma eram muito mais fáceis de compreender quando se comparavam versões intactas e danificadas da alma. Ele sabia, por ter lido a mente de Sudomir, que necromantes frequentemente mutilavam deliberadamente as almas de outras pessoas exatamente por esse motivo: estudar destrutivamente a anatomia da alma para aprimorar suas próprias habilidades. Contudo, ninguém jamais conseguiria perceber almas alheias com o mesmo nível de detalhe que percebia a própria. Até onde Zorian sabia, nenhum mago de alma era insano o suficiente para danificar deliberadamente a própria alma tão profundamente como Zach e Zorian haviam danificado as suas, apenas para aprimorar seu conhecimento sobre a mecânica das almas. Portanto, a oportunidade que tinham era, de certa forma, única.

Embora Zach tivesse começado de um nível inferior, sua habilidade em percepção de alma pessoal também cresceu exponencialmente nesse período, visto que ele investiu um esforço enorme nisso – muito mais do que o próprio Zorian. O fato de ele ter ficado em pior situação após o ataque de alma de Quatach-Ichl parece tê-lo afetado profundamente.

Além da magia de alma, os dois também trabalharam em suas habilidades básicas de modelagem e se dedicaram bastante à alquimia, já que essa era a única disciplina mágica que não havia sido afetada minimamente por seus ferimentos.

Eles não tentaram informar ninguém sobre o loop temporal durante esse período. A maioria dos cadernos e outras informações coletadas foram armazenadas no orbe do palácio, ao qual eles não tinham acesso no momento. Eles ainda interagiam com muitas das pessoas com quem haviam trabalhado anteriormente, mas principalmente por diversão e para passar um tempo juntos.

Eles passaram todo o período do reinício frequentando as aulas diligentemente, sendo o mais prestativos possível com cada professor e aluno que encontravam. Eles passaram um reinício se transformando em vários animais com poções de transformação e exploraram a cidade e seus arredores com sentidos e perspectivas alienígenas. Experimentaram pintura, escultura, entalhe em madeira, desenho e diversas outras habilidades artísticas. Fizeram um tour por Eldemar e seus arredores de trem e outros meios mundanos.

E quando o último desses reinícios relaxantes estava chegando ao fim, Zorian percebeu que não sentia nenhum remorso. Mesmo que tivessem meio que desperdiçado seu tempo, mesmo que só lhes restassem 19 iterações após o término deste reinício… ele estava em paz com tudo isso.

“Precisamos dar tudo de nós nos próximos reinícios”, disse Zorian a Zach um dia. “19 reinícios não são muitos e nunca sabemos quando algo assim pode acontecer de novo. Se tivéssemos nos machucado tanto faltando apenas alguns reinícios, teria sido o nosso fim ali mesmo. Você acha que ainda devemos tentar algo com Quatach-Ichl depois disso?”

“Com certeza”, disse Zach com firmeza. “Quer dizer, sim, ele nos pegou direitinho daquela vez, mas ainda não descobrimos um bom jeito de invadir os cofres reais sem a ajuda dele. E além disso… embora ele tenha nos ferrado, também nos mostrou uma ótima maneira de derrotá-lo com relativa facilidade.”

“Ah?” perguntou Zorian, curioso. “E qual seria essa maneira?”

“Veja bem, acho que estamos complicando demais as coisas”, explicou Zach. “Em vez de tentar atrair Quatach-Ichl para uma armadilha e inundá-lo com golens e magos inimigos, deveríamos confiar em nossos pontos fortes para derrotá-lo. Bem, nos seus pontos fortes, neste caso. Estou falando de magia mental, é claro.”

“Magia mental?” disse Zorian, surpreso. “Mas com o bloqueio mental…”

“Xvim também estava com bloqueio mental e isso não impediu Quatach-Ichl”, apontou Zach rapidamente. “Seria complicado, mas se acertarmos o momento certo e eu tiver um instante para me concentrar adequadamente, tenho quase certeza de que consigo lançar um feitiço de dissipação poderoso o suficiente para acabar com o bloqueio mental dele. Só por um instante, mas isso deve ser o suficiente para você, certo?”

“Tenho quase certeza de que Quatach-Ichl tem alguma habilidade em defender a própria mente”, disse Zorian com cautela. “O fato de ele ter conseguido vasculhar a mente de Xvim tão rapidamente no calor da batalha mostra que ele é bastante proficiente em magia mental. Mesmo assim… não acho que ele seja psíquico, e o breve confronto telepático que tive com ele não me impressionou muito. Suponho que possa funcionar.”

“Vai funcionar”, insistiu Zach. “Sua magia mental é aterrorizante, e aposto que faz séculos que Quatach-Ichl não enfrenta um mago mental que não consiga matar em menos de um segundo. Contanto que consigamos impedir Quatach-Ichl de assassiná-lo antes que você termine de subjugar a mente dele, acho que isso pode funcionar maravilhosamente bem.”

“Você fala como se fosse algo tão fácil assim”, suspirou Zorian. “Mas você tem razão, é uma ideia interessante. Certamente melhor do que ficar tateando no escuro em busca de uma solução, como temos feito até agora. Eu suspeito que Quatach-Ichl tenha programado sua alma para ser recolhida de volta para seu filactério caso suas defesas mentais sejam seriamente comprometidas. É o que eu faria no lugar dele.”

“Isso ainda significa que vamos pegar a coroa imperial do esqueleto abandonado dele”, disse Zach, dando de ombros. “É a única coisa que realmente precisamos dele. Todo o resto é lucro.”

Zorian supôs que ele tinha razão quanto a isso.

* * *

No próximo reinício, eles decidiram voltar ao trabalho e retomar seus planos. Suas almas estavam completamente curadas, pelo que conseguiam apurar, e eles não tinham muito tempo a perder. Assim, eles rapidamente estabeleceram um vínculo de simulacro com Koth e Xlotic, recuperaram o orbe do palácio, roubaram a Pérola de Aranhal e, em seguida, embarcaram em sua nova aeronave e partiram rumo a Blantyrre.

Seria uma jornada longa e perigosa. Blantyrre era o maior continente do mundo, mas estava separado por quilômetros e quilômetros de mar aberto do porto humano mais próximo. Só garantir que permanecessem no caminho certo já era um problema, visto que a imensidão de água oferecia poucas pistas sobre se estavam ou não na direção correta, e nem Zach nem Zorian eram proficientes nesse tipo de navegação. Além disso, o caminho mais curto para o continente, que eles praticamente tinham que seguir, passava perigosamente perto de uma grande ilha habitada por dragões, centenas e centenas de dragões. Ela era chamada, de forma um tanto sem imaginação, mas apropriada, de Ilha dos Dragões.

Os dragões em geral não gostavam da humanidade, e os dragões da chamada Ilha dos Dragões eram especialmente beligerantes. Eles não só matavam qualquer humano que tentasse desembarcar na própria ilha, como também patrulhavam ativamente as águas ao redor, à procura de qualquer navio que passasse. Se avistassem algum, exigiam tributos exorbitantes em troca de não destruírem a embarcação. Zach e Zorian haviam perguntado por aí o que os dragões consideravam adequado ao seu gosto e estavam preparados para pagar o tributo pela passagem segura, mas a aeronave era muito chamativa e os dragões eram conhecidos por serem caprichosos mesmo nas melhores circunstâncias. Era melhor se preparar para uma luta, por precaução, e enfrentar um dragão era sempre uma dor de cabeça.

E mais, alguns dos monstros marinhos eram conhecidos por atacar embarcações aéreas, disparando jatos de água e ataques de energia contra tudo que voasse acima deles. Não acontecia com frequência, e a Pérola de Aranhal geralmente voava bem alto, mas isso significava que Zach e Zorian nunca podiam relaxar completamente e tinham que estar constantemente em alerta para possíveis problemas.

Ainda assim, as coisas finalmente estavam se movendo novamente, e isso era o importante. Eles tentariam novamente obter a adaga e a coroa nesta nova tentativa, e também preparariam o terreno para localizar o cajado.

Enquanto isso, estavam prestes a restabelecer contato com Quatach-Ichl. Era hora de negociar…