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    Capítulo 087

    Agentes da Coroa

    Nas profundezas das selvas de Koth, em um trecho da floresta tropical que, de outra forma, não tinha nada de especial, uma situação se desenrolava. As árvores tremiam, os animais fugiam em pânico e a vegetação rasteira era esmagada sob pés enquanto uma hidra gigantesca e furiosa avançava pela área em busca de seu alvo. Suas oito cabeças se espalhavam e atacavam com fúria qualquer coisa nas proximidades que não conseguisse sair de seu caminho, quebrando galhos baixos e matando qualquer animal que fosse lento demais para escapar.

    Quanto a Zorian, que era o alvo, ele simplesmente continuava correndo e desviando, maravilhado com a incrível velocidade com que a hidra conseguia se mover pela densa vegetação da floresta tropical. Ele pensara que seu tamanho dificultaria as manobras e lhe permitiria facilmente se manter à frente dela, mas subestimou seriamente sua capacidade de simplesmente atropelar tudo em seu caminho sem parar. Ele estava propositalmente correndo pelo terreno mais difícil que conseguia encontrar e nunca chegou perto de despistá-la. A criatura estava constantemente logo atrás dele.

    Um olho azul, translúcido e ectoplasmático seguia Zorian incessantemente, pairando sobre sua cabeça e encarando a hidra. Era através desse olho que Zorian conseguia acompanhar os movimentos da hidra e desviar de seus ataques, mesmo estando de costas para ela. Caso contrário, se fosse forçado a correr às cegas ou tivesse que diminuir o ritmo periodicamente para se virar, a hidra já o teria agarrado centenas de vezes. Embora o feitiço em si fosse muito simples, poucas pessoas seriam capazes de processar informações de duas perspectivas diferentes daquela maneira. O fato de Zorian conseguir olhar tanto para frente quanto para trás ao mesmo tempo, enquanto se movia por um terreno traiçoeiro e cheio de obstáculos na selva, era a prova de que seus experimentos com aprimoramento mental estavam dando frutos.

    A perseguição os levou até um tronco caído e apodrecido, coberto de musgo e cogumelos. Sem que seu corpo principal diminuísse a velocidade, uma das oito cabeças da hidra estendeu-se e mordeu o tronco, arrancando-o do chão e lançando-o contra Zorian. Meia dúzia de centopeias monstruosas e um esquilo apavorado saíram cambaleando do tronco podre enquanto ele voava pelo ar, tendo se escondido ali ao perceberem a hidra furiosa se aproximando. Zorian reagiu instantaneamente, fazendo alguns movimentos silenciosos que fizeram uma mão ectoplasmática vermelha brilhante se materializar no ar atrás dele e golpear o tronco para o lado. O tronco colidiu com a árvore próxima, onde explodiu em uma chuva de pedaços de madeira podre. Tanto Zorian quanto a hidra simplesmente atravessaram a nuvem de estilhaços de madeira, um com a ajuda de escudos mágicos e o outro com o poder de sua resistência e regeneração sobrenaturais.

    “Zach, o que diabos você está fazendo aí?!” gritou Zorian. “Estou correndo há séculos! Você descobriu o segredo da adaga ou não?!”

    Zach, que vinha atrás dos dois enquanto fazia ocasionalmente poses engraçadas e brandia a adaga na mão em direção à hidra, pareceu hesitar diante da pergunta.

    “É difícil, tá bom?” gritou ele de volta.

    “Estou ficando sem mana!” disse Zorian. “Se você não descobrir logo, vou cancelar isso.”

    Na verdade, a hidra representava pouca ameaça para Zorian. Se a situação ficasse muito perigosa, ele sempre poderia se teletransportar ou simplesmente voar para longe, fora do alcance da hidra. No entanto, isso a deixaria livre para se virar e voltar sua atenção para Zach, o que anularia todo o propósito daquela situação. O objetivo de ele conduzir a hidra naquela perseguição pela selva de Kothic era dar a Zach o tempo necessário para descobrir como usar a adaga na hidra. Algo que não parecia estar indo muito bem.

    Bem, fazer o quê. Pelo lado positivo, se Zach não conseguisse descobrir até que Zorian ficasse sem mana, seria a vez de Zorian em seguida. Zorian, na verdade, preferiria ser ele a descobrir como usar a adaga, já que ele e Zach haviam combinado que quem tivesse sucesso ficaria com a ‘posse’ da hidra. Ele tinha um bom pressentimento sobre suas chances, já que, ao contrário de Zach, ele tinha a percepção de alma desbloqueada. Certamente isso…

    “Hidra!” Zach gritou de repente, apontando dramaticamente a adaga na direção do monstro. “Eu sou seu mestre agora! Ajoelhe-se diante de mim!”

    Nada menos que três das cabeças da hidra olharam para Zach, lançando-lhe um olhar de ódio e desprezo antes de voltarem sua atenção para Zorian.

    Antes que Zorian pudesse dizer qualquer coisa, Zach teleportou-se repentinamente para cima da hidra e cravou a adaga em suas costas.

    Zorian queria gritar com seu companheiro viajante do tempo por ser tão idiota. Zach não só se expôs a um perigo incrível, já que as cabeças da hidra podiam se torcer para trás para alcançar pessoas tolas o suficiente para subir em suas costas com velocidade e facilidade incríveis, como também invalidou todo o esforço que Zorian investiu para garantir que a hidra estivesse focada nele e somente nele. Mesmo que Zach escapasse ileso dessa façanha – e provavelmente escaparia, para ser sincero – a hidra não o ignoraria mais daquele ponto em diante.

    De fato, no instante em que Zach surgiu nas costas da hidra, antes mesmo de terminar de cravar a adaga em sua carne, o monstro já havia interrompido seu ataque, todas as suas oito cabeças voltando sua atenção para aquela nova ameaça repentina. Contudo, no momento em que a adaga penetrou em suas costas, algo estranho aconteceu. Em vez de simplesmente ignorar o ferimento insignificante e morder Zach mesmo assim, a hidra subitamente enrijeceu como se estivesse paralisada. Suas muitas cabeças congelaram no ar, as mandíbulas ainda abertas para uma mordida letal, encarando Zach com olhos confusos e incompreensivos.

    “Não é possível…” Zorian reclamou fracamente.

    “Ha ha ha!” Zach riu, arrancando a adaga do ferimento e se endireitando rapidamente. Como as costas da hidra não eram um dos terrenos mais estáveis, ele quase perdeu o equilíbrio ao fazer isso e precisou de alguns segundos para se firmar. A hidra permaneceu completamente imóvel durante todo o tempo. Zach deu alguns tapas brincalhões na cabeça de hidra mais próxima. “Eu não disse? Eu realmente sou seu mestre agora. Ajoelhe-se!”

    O comando pareceu quebrar a paralisia da hidra. Sem hesitar, ela caiu no chão. Sendo uma criatura quadrúpede, não conseguia exatamente se ajoelhar, então simplesmente se jogou de barriga para baixo, deixando suas muitas cabeças tocarem o chão. O movimento repentino, porém, desequilibrou completamente Zach, fazendo-o rolar pelas costas da criatura com um grito sufocado. Ele atingiu o chão com um baque surdo, caindo sobre uma das rochas expostas, e passou o próximo minuto e meio rolando de dor no chão.

    Zorian observou a hidra por alguns segundos antes de decidir não se aproximar por enquanto. Ela não o estava mais atacando, mas ele tinha a sensação de que isso poderia mudar se fizesse qualquer movimento em direção ao seu novo ‘mestre’.

    “Não é possível que aquela tenha sido a frase de comando correta para ativar a adaga, não é?” Ele finalmente perguntou.

    “Ugh. Droga, isso doeu”, disse Zach, levantando-se com dificuldade enquanto usava a hidra próxima como apoio. Ele fez o possível para se limpar e se livrar dos galhos e insetos presos em seu cabelo. “E não, aquela não era a frase de comando. O jeito de ativar a adaga é primeiro se cortar com ela para estabelecer ressonância e depois cortar a hidra para forjar um vínculo com ela e finalizar o acordo.”

    Zorian o olhou curioso. “Como diabos você descobriu isso?”

    “Eu, err, me cortei sem querer com ela enquanto tentava brincar com ela correndo”, admitiu Zach com uma risada sem graça. Ele se virou para a hidra, cujos muitos olhos seguiam diligentemente cada movimento seu. “De qualquer forma, quem se importa com isso! Não importa como eu descobri a utilidade da adaga, o que importa é que a hidra finalmente é minha! Bem, nossa, mas você entendeu…”

    “Sim, sim, eu sei”, disse Zorian, estalando a língua. Normalmente, ele ficaria irritado por perder uma aposta dessas, mas provavelmente era melhor assim. Não havia garantia de que ele próprio teria descoberto um método de ativação tão curioso.

    Ele sentiu um pouco a mente da hidra. Esperava encontrar a criatura ressentida por estar efetivamente escravizada dessa forma, mas, em vez disso, a encontrou bastante curiosa. Confusa e um pouco assustada também, mas principalmente curiosa. Não parecia nutrir nenhum rancor contra Zach. Zorian nunca tinha ouvido falar de um método de controle de monstros tão completo e eficaz, e a hidra deveria ser altamente resistente ao controle mental devido à sua mente única. Ele tinha a sensação de que aquilo era mais do que apenas simples controle – de alguma forma estranha, a hidra estava condicionada a considerar o vínculo forjado pela adaga como inerentemente legítimo e não lutava contra suas amarras.

    Zorian estava dividido entre ficar impressionado com o criador da adaga por ter conseguido algo assim e ficar perturbado com que tal coisa fosse possível.

    De qualquer forma, a cordialidade era direcionada apenas a Zach. No instante em que Zorian tentou se aproximar, a hidra imediatamente se ergueu e se interpôs entre Zorian e seu mestre, sibilando e estalando as mandíbulas de forma ameaçadora.

    “Ah, qual é”, reclamou Zorian. “Aquele cara não precisa da sua proteção contra mim. Pelo contrário, eu que precisaria de proteção contra ele se a gente lutasse a sério…”

    A hidra não entendia a fala humana e provavelmente não teria dado ouvidos mesmo se entendesse. Estava prestes a atacar Zorian quando Zach colocou a mão em seu flanco e a deteve.

    “Ei, pare com isso”, disse Zach. “Aquele cara é nosso amigo, ok? Nada de comer amigos.”

    Foram necessários alguns gestos e gritos até que a hidra finalmente entendesse o que seu novo dono estava lhe dizendo. Nesse momento, ela lançou a Zach um olhar que lembrava um olhar incrédulo, como se não conseguisse acreditar que Zach fosse amigável com alguém como Zorian, que a havia feito correr atrás dele feito louca por quase uma hora.

    “Eu sei, eu sei… ele pode ser muito irritante, mas é muito útil e, na maioria das vezes, tem boas intenções”, disse Zach sabiamente, dando um tapinha leve na lateral da hidra.

    A hidra soltou um último sibilo descontente na direção de Zorian antes de, a contragosto, recuar e indicar que permitiria que ele se aproximasse sem atacá-lo. Talvez.

    Zorian cruzou os braços sobre o peito e lançou a Zach um olhar nada divertido.

    “Relaxa, tenho certeza de que ela vai se acostumar com você com o tempo”, disse Zach, com um largo sorriso. “A Princesa é só um pouco tímida.”

    O quê?

    “O- o quê?!” Zorian exclamou.

    “É uma fêmea”, disse Zach, assentindo sabiamente. “Eu sei, eu mesmo fiquei um pouco surpreso quando senti isso através da ligação e–”

    “Não, não é isso!” Zorian interrompeu bruscamente. “Você está mesmo chamando uma hidra de ‘Princesa’?”

    “Por que não?” Zach desafiou. “O que há de errado com esse nome?”

    A recém-nomeada ‘Princesa’ focou três de suas cabeças nele, como se o desafiasse a dizer qualquer coisa.

    Réptil estúpido. Nem sequer entendia do que eles estavam falando, mas sentiu a necessidade de ficar do lado de Zach mesmo assim…

    “É um nome estúpido”, disse Zorian sem rodeios.

    “É um ótimo nome”, discordou Zach. “Um nome real para uma garota da realeza. Ela é uma guardiã divinamente fortalecida de um item imperial… o que é um posto bem alto, se me você me perguntar. Além disso, você sabe como a realeza gosta de se referir a si mesma no plural? ‘Nós’ isso e ‘nós’ aquilo… bem, a Princesa aqui pode falar de si mesma no plural e ser completamente literal! Pronto. É na verdade muito inteligente, você só foi crítico demais para perceber.”

    “Ugh”, resmungou Zorian. “Se essa é a sua lógica, por que não chamá-la de ‘Rainha’?”

    “Porque ‘Princesa’ é um nome mais irônico para uma hidra gigante”, admitiu Zach.

    Zorian passou os quinze minutos seguintes tentando argumentar sobre o assunto antes de desistir. Levou mais uma hora para convencer a Princesa a voltar para o orbe imperial para ser transportada – ela queria seguir Zach como um cachorrinho e estava confusa por que ele queria abandoná-la no orbe tão pouco tempo depois de terem criado um vínculo.

    Zorian teve que admitir, observar Zach tentando, de forma desajeitada, convencer uma hidra grudenta de que ele voltaria e que ela deveria ficar onde estava era até engraçado.

    Talvez tenha sido uma coisa boa que Zach tenha ganhado aquela aposta, afinal.

    * * *

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