1º ESPECIAL DE NATAL — PARTE 1 DE 5
A manhã nascia fraca em Ga-el. O vento entrava mais seco nas frestas e a luz largava o pátio cedo demais. Marco vinha marcando a própria contagem desde que chegara ali, há cento e quarenta e três amanheceres. Pelo céu, pela altura de Lauris e pelo solstício de verão que ele estimou, ele via o outono terminando.
Subiu a escada do CEAET com a mão no corrimão gelado e o caderno preso na cintura. A torre já não era improviso. Agora existiam dois observatórios fixos: Yhe-for e ali.
Lou-reen tinha conseguido o resto do milagre: alguns soldados curiosos viraram parte do serviço. No patamar do topo, dois esperavam.
Um segurava o rolo grosso de folhas da noite, amarrado. O outro mantinha uma tábua de anotações, carvão preso por corda.
O primeiro estendeu o rolo.
— Impressões do céu. Turno inteiro.
Marco pegou. As folhas ainda tinham aquele cheiro seco de fibra e tinta, com pontos e riscos repetidos na mesma ordem. O céu noturno do planeta Asteris, impresso.
O segundo virou a tábua.
— Ângulos, brilho, intervalos. E o nascer de Lauris.
O dedo dele parou na linha do horário. A marca vinha alinhada com o relógio de pêndulo novo, mais preciso do que qualquer “depois do sol” que Taeris aguentou por séculos.
Marco assentiu e guardou a tábua junto do peito.
— Qualquer falha?
— Nuvem baixa perto do fim — o soldado da tábua apontou outra linha. — Mas deu pra manter o eixo.
Marco passou os olhos pelo rolo mais uma vez, conferiu a repetição das marcas, e puxou o caderno.
A linha do dia ficou nua na página.
Ele escreveu: 144º dia desde a chegada.
“Cento e quarenta e quatro dias asterianos dá duzentos e dezesseis dias na Terra.”
Ela ficou em silêncio por um segundo a mais do que o normal.
“Lá… eles estão no dia vinte e quatro de dezembro.”
Marco ficou com o carvão parado acima do papel.
Véspera de Natal
O topo da torre ficou distante.
Lembrou da cozinha na casa da mãe. Luz amarela, cheiro de café e alguma coisa doce no forno. A mãe dele com a caneca nas duas mãos, camiseta velha, cabelo preso de qualquer jeito. A árvore na sala piscava torto, enfeite repetido, fita amassada. Haviam presentes no chão embaixo dela.
Ele ajoelhava no tapete e rasgava o primeiro pacote com pressa demais. Era um tubo comprido, plástico barato e um tripé fino demais.
Um telescópio.
A mãe encostara no batente da cozinha com a caneca na mão.
— Pra você parar de apontar o dedo pro céu e chutar.
Outra memória: ele em órbita. O painel piscava verde. O silêncio do capacete preenchia tudo. A Terra ocupava metade da janela, azul limpo embaixo e um fio de luz no contorno, fino, perfeito, e isso deixava qualquer “feliz natal” parecendo pequeno demais.
A voz do chefe entrou no canal, formal até pra data.
— Feliz Natal, Marco. Aí em cima também.
Ele flutuava preso por uma tira de velcro, mão numa estrutura, e a outra segurava um pacote minúsculo que alguém tinha mandado por protocolo, etiquetado com uma piada que ninguém ria de verdade.
Ele respondeu.
— Feliz Natal, senhor.
E ficou olhando o planeta girar.
Ele piscou e voltou ao presente.
Marco deixou o carvão de lado. O canto da boca subiu em um sorriso.
— Tá.
Nova veio antes que ele completasse.
“Tá… o quê?”
— Vou fazer um Natal aqui também.
Ele olhou em volta, como se procurasse o óbvio e o óbvio não existisse em Taeris. Só pedra, instrumentos, pergaminho, uma janela pro céu e um relógio de pêndulo marcando o tempo.
A sala não tinha nada natalino.
Os olhos dele voltaram pro lado de fora, pra linha escura das perenes no horizonte.
— Eu preciso de uma árvore.
Um dos soldados, o do rolo, ergueu a sobrancelha.
— Uma… árvore, senhor?
Marco já caminhava pra escada.
— Pequena. Qualquer uma que eu consiga carregar.
“Excelente plano. Só falta a parte em que você não morre no caminho.”
***
A oficina do vidraceiro ficava num corredor de pedra onde o ar sempre cheirava a cinza e areia quente. Era dali que saíam as lentes do CEAET toda vez que Marco queria mudar objetiva.
O homem levantou a cabeça quando viu Marco entrando.
— Você veio comprar vidro… ou inventar outra coisa?
Marco parou na bancada e tirou um pergaminho dobrado da cintura.
— Eu quero fazer uma coisa diferente hoje à noite.
O vidraceiro olhou o papel, depois olhou Marco.
— Diferente nunca vem barato.
— Eu pago.
Marco abriu o pergaminho na bancada. Traços simples, repetidos, com variações de tamanho.
O vidraceiro puxou o papel pra perto e começou a seguir os desenhos com o olhar, indo de um pro outro, tentando achar a função.
— Tá. Pra que serve?
— Coisa de onde eu vim.
“Tradução: você tá inventando moda.”
O vidraceiro ficou um tempo quieto, dedo sujo de pó de vidro acompanhando cada linha. Parou num desenho que não combinava com o resto. Cinco pontas, simétrico demais.
— E isso aqui?
— É uma estrela.
O vidraceiro levantou os olhos.
— No céu não tem esse formato.
— Eu sei.
Ele voltou pro papel e ficou encarando a estrela por mais tempo do que devia, como se o desenho tivesse insultado o ofício dele.
— Quantos desses você quer?
— O bastante pra pendurar.
— Pendurar onde?
Marco não respondeu na hora. Só apontou a área do desenho onde ele tinha marcado um furo pequeno no topo de cada peça.
— Nos galhos de uma árvore.
O vidraceiro olhou o pergaminho de novo. A risada veio alta, batendo na oficina.
— Você consegue me surpreender sempre que vem aqui.
Marco não discutiu. Puxou o carvão, marcou medidas sem cerimônia.
— Eu preciso de esferas, discos… e uns desses prismas também. Varia. Não muito grande. Não muito fino.
O homem segurou a vontade de discutir. Deu um aceno com a cabeça, mais pra encerrar do que pra concordar.
— Eu te entrego mais tarde. Volta quando a luz tiver baixado.
Marco puxou outro pergaminho de dentro do maço e abriu do lado, sem avisar. O vidraceiro acompanhou o movimento e a expressão dele mudou. A risada sumiu.
O homem passou o dedo no papel, parando onde Marco tinha marcado a parte importante.
— Isso aí… também é pra pendurar?
Marco olhou o traço, depois olhou pro homem.
— Não. Esses são presentes.

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