1º ESPECIAL DE NATAL — PARTE 2 DE 5
A forja de Ga-el batia no ouvido antes de aparecer. Martelo, fole, metal cantando. O calor vinha em onda e grudava na pele. Marco entrou com os pergaminhos na mão e parou na primeira bancada livre.
Dois ferreiros ergueram o olhar na hora.
— Cadê a Wynrae?
— Hoje sou só eu.
O mais velho apontou pro papel com o queixo.
— Então fala.
Marco abriu o pergaminho e segurou as pontas com a palma.
— Eu preciso que vocês façam essa peça.
O ferreiro baixou o olhar. Seguiu o desenho em silêncio, voltou no mesmo trecho, e olhou de lado pro colega.
— Isso encaixa com quê?
— Eu trago a outra parte. — Marco tocou no detalhe marcado. — Aqui tem que ficar liso. Nada pra pegar na pele. Nada pra raspar.
O ferreiro passou o dedo no ar, acompanhando a marcação.
— E isso aqui?
— Encaixa aqui. Sem apertar demais.
O outro ferreiro encostou na bancada, perto demais pra não ser curiosidade.
— Pra que serve?
Marco não deu o nome.
— Pra trabalho.
O mais velho segurou o riso.
— “Trabalho” é metade do Império.
Marco apontou de novo, mais preciso.
— Preciso de dois. Um deles com esse ajuste maior.
O ferreiro pegou carvão e rabiscou por cima, marcando medidas.
— Tudo bem, volta quando a luz cair.
Marco fechou o pergaminho.
— Hoje ainda?
— Hoje. — O ferreiro repetiu, já irritado com prazo, mas com a mão indo pro metal.
Marco não esperou o bom humor voltar.
— Eu preciso de um machado.
O segundo ferreiro soltou um som de deboche.
— Você não é soldado. Pra que quer um machado?
— Pra cortar uma árvore.
O mais velho encarou Marco como se ele tivesse pedido uma lança pra pescar.
— Você não pega ferramenta daqui e some no mato.
— Eu devolvo.
— Não é assim que funciona.
Marco manteve a voz no mesmo nível.
— Eu preciso para hoje.
O segundo ferreiro cruzou os braços.
— Você sabe usar?
Marco olhou pra mão dele. Calo de martelo, punho forte, postura de quem aprendeu a segurar arma, mas gastava o dia no ferro quente.
— Tá com medo de eu estragar a ferramenta e você não dar conta de consertar?
A risada veio, seca.
— Tá me desafiando?
“Você tem certeza disso?” a voz da Nova entrou, lisa.
Marco respondeu sem olhar pro nada.
— Eu tenho.
O ferreiro empurrou a bancada pra abrir espaço e puxou uma vara de madeira usada pra mexer brasa, ponta marcada de queimado.
— Encosta em mim uma vez. Eu te dou o machado. Encosto em você, acabou.
Marco largou os pergaminhos na bancada e pegou outra vara do chão, mais leve.
O ferreiro avançou primeiro, ombro indo junto, força de oficina.
Marco não bateu de frente. Saiu da linha, pé no lugar certo, vara subindo só o necessário. A madeira do outro passou onde ele tinha estado.
O ferreiro tentou corrigir no impulso e girou de novo, mais agressivo, querendo encerrar logo.
Marco já estava perto. A ponta da vara dele tocou o antebraço do ferreiro, bem onde o músculo travava quando segurava martelo.
Um toque. Um aviso.
O ferreiro parou com a vara no ar, encarou o próprio braço, e depois encarou Marco.
— Hm.
“Olha só.” Nova provocou. “O treino da general serviu pra alguma coisa. Você não morreu. Progresso.”
O mais velho soltou uma risada baixa, sem alegria, só reconhecimento.
— Pega o machado. E traz de volta com a lâmina inteira.
O segundo ferreiro foi até um canto, puxou um machado de cabo gasto e jogou na mão de Marco.
— Se você voltar sem isso, a gente faz um cabo novo com o seu braço.
***
O vidraceiro já fazia movimento de fechar: pano por cima de bancada, ferramenta voltando pro lugar, fogo sendo domado.
Ele viu Marco e não escondeu a cara.
— Eu já ia embora.
— Eu sei.
O vidraceiro enfiou a mão debaixo da bancada e puxou um embrulho de pano grosso. Jogou na frente dele.
— Pega. E não deixa bater em nada.
Marco segurou com as duas mãos. O tilintar veio de dentro, baixo, irritante.
— Deu tempo?
— Deu tempo de eu perder o resto do dia. — O homem apontou com o queixo pro pano. — Tá aí.
Marco abriu o embrulho devagar, ponta por ponta.
Vidro liso. Peças de tamanhos diferentes, todas com furo no topo. Discos finos que pegavam a luz e devolviam um risco. Prismas pequenos, cortados com cuidado. No meio, a estrela.
Ele pegou a estrela e ergueu na direção da porta. A luz atravessou e riscou o chão.
— Ficou bom.
— Bom é o que me deixa trabalhar. — O vidraceiro encostou na bancada. — Isso aí eu faço uma vez. E acabou.
Marco largou a estrela de volta e puxou uma esfera. Girou na palma, procurando alguma falha. Não encontrou nada.
Ele levantou a esfera pro feixe que entrava torto pela entrada. O mundo do lado de fora entortou um pouco. A borda da porta virou curva.
O vidraceiro soltou um som pelo nariz.
— Pra pendurar, serve. Pra lente do seu brinquedo, você ia me encher.
Marco pegou um prisma e girou. A luz cortou a bancada e quebrou em duas linhas. Ele marcou o prisma num canto do pano, separado dos mais frágeis.
— Esse aqui tá limpo.
— Esse aqui me deu raiva. — O homem apontou com o dedo sujo de pó. — Eu não faço mais fino do que isso. — Se quebrar, não volta aqui chorando.
Marco assentiu e juntou as peças por tamanho, rápido.
Ele já ia fechar o embrulho quando o vidraceiro puxou outro pacote, menor, amarrado.
— E isso aqui.
Marco segurou.
— É o que você pediu depois. — O homem encarou Marco. — Não abre aqui.
Marco travou um instante.
— Por quê?
— Porque eu não quero ninguém vendo. — A voz saiu baixa, seca. — Eu fiz. Você leva. E você não volta com pedido desses em cima da hora.
Marco prendeu o pacote menor junto do maior, apertou os nós e testou o peso no antebraço.
— Da próxima eu te aviso antes.
— Ótimo. — O vidraceiro apontou com o queixo pra saída. — Vai logo. Antes que eu mude de ideia.
Marco guardou tudo contra o peito e saiu.
O vidro reclamou uma última vez dentro do pano.
“Você acha mesmo que ela vai gostar disso?” Nova falou dentro da cabeça dele.
— Eu espero que sim.

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