Índice de Capítulo

    A cozinheira virou o rosto e viu o estado dele: poeira na roupa, marca de corda no pulso, arranhão no braço, o olho cansado.

    Ela apoiou a faca na tábua, sem pressa.

    — Você tá com cara de quem brigou com um bicho grande.

    — Briguei com um bicho médio.

    — Tá. E ganhou?

    Marco deu um aceno, mais pra encerrar do que pra contar história.

    — Preciso de uma coisa.

    Ela deixou o olhar descer pro pulso dele, pra corda marcada na pele, e voltou pro corte no braço. O canto da boca dela levantou, mínimo, como se ela tivesse achado graça do desastre.

    — Você chega aqui assim e ainda fala “preciso” como se fosse um general?

    Ela pegou um pano e, antes que ele reagisse, encostou no braço dele e pressionou em cima do arranhão, firme. Os dedos dela seguraram o lugar como se o sangue fosse só mais um problema da cozinha.

    Ela não desviou os olhos do rosto dele.

    — Aqui você pode comer o que quiser… desde que pare de fingir que não tá doendo.

    — Eu tô bem.

    Ela inclinou um pouco a cabeça, olhando Marco de cima a baixo de novo, sem pressa nenhuma.

    — E me diz logo: você veio pedir comida… ou arranjou uma desculpa pra me ver?

    — É pra comer.

    — Que pena. — ela inclinou a cabeça, avaliando o rosto dele com mais atenção do que a pergunta exigia. — O homem do céu pedindo apenas comida na minha cozinha.

    Marco franziu a testa.

    — Homem do céu?

    — Não tem muito estrangeiro andando do lado dos generais quando o lugar vira guerra.

    — Eu falhei nessa parte.

    — Falhou. — Ela assentiu, como se a falha fosse um detalhe aceitável. — Mas ainda está quase inteiro pra contar a história.

    Marco tentou volta pro assunto.

    — Eu preciso fazer uma receita.

    — Receita de onde?

    — De onde eu vim.

    O olhar dela ficou mais afiado.

    — Você vai me dizer que lá de onde você veio vocês brigam com “bicho médio” e comemoram com comida?

    Marco não respondeu na hora.

    — Tá. — Ela mesma concluiu. — Isso explica bastante.

    Ela puxou uma tigela e colocou na frente dele.

    — Fala o que você quer fazer.

    Marco tirou um pergaminho dobrado do bolso e abriu na bancada. Lista curta, rabiscada de memória. Ele apontou um item de cada vez, tentando manter o pedido prático.

    A cozinheira leu e soltou um som baixo, divertindo-se.

    — Pão velho.

    — Seco.

    — Leite.

    — Se tiver.

    — Ovo.

    — Dois.

    Ela olhou pro rosto dele por cima do papel.

    — Você tá tentando alimentar uma pessoa ou pedir desculpa pra um batalhão?

    — Uma pessoa.

    — Hm. — ela segurou esse “hm” mais do que precisava e deixou o papel na bancada sem devolver. — Uma pessoa… importante.

    Marco encostou o pano no braço de novo, sem saber o que fazer com a própria cara.

    — É… uma noite importante.

    A cozinheira pegou dois ovos e bateu na tigela com uma mão só. O movimento foi limpo. Confiante. Ela mexeu com um garfo e empurrou a tigela na direção dele.

    — Então mexe. E mexe direito.

    Marco pegou o garfo.

    Ela ficou perto demais pra alguém que só queria cozinhar. O ombro dela quase encostou no dele quando ela apontou a consistência.

    — Mais lento. Você tá com a mesma pressa de quem correu de coisa com dentes.

    — Eu não tava correndo.

    — Claro que não. — ela disse. — Você tava “recuando estrategicamente”, igual os generais.

    Marco parou o garfo por um instante e olhou pra ela.

    — Você gosta mesmo de falar disso.

    — Eu gosto de ver alguém que não nasceu pra isso… e mesmo assim está aqui. — ela pegou a tigela da mão dele, mexeu duas vezes e devolveu. — Só que eu prefiro ver você voltando inteiro depois.

    Marco piscou. Não entendeu na hora.

    Ela já tinha virado pra panela, deixando o comentário cair no chão da cozinha como se fosse normal.

    — Põe a chapa no fogo. E lava esse braço antes de encostar na comida. Se eu tiver que te dar bronca duas vezes, eu cobro.

    Marco virou pro tanque de água no canto. Ga-el cozinhava do mesmo jeito que lutava, sem enfeite algum. Só o que funcionava: pedra escurecida de fumaça, gancho no teto com panela pendurada, saco de farinha encostado na parede, barril de sal, uma mesa pesada que já tinha visto mais faca do que gente.

    Ele molhou a mão, esfregou o antebraço com cuidado. A água ardeu no corte e levou o sangue que tinha virado crosta.

    A cozinheira não largou a bancada.

    — Não esfrega igual um soldado lavando a armadura. Você vai abrir de novo.

    — Tá.

    Ele enxugou com o pano que ela jogou e voltou pro fogão.

    — Chapa.

    A cozinheira apontou com o queixo pra uma placa de metal grossa, já escurecida de uso. Ficava sobre duas pedras, com brasa viva embaixo.

    — Essa. Fogo pequeno. Você quer dourar, não marcar território.

    Marco agachou, puxou brasa pra um lado com o gancho e abriu espaço. O calor ficou mais baixo, mais controlado. Ela encostou perto demais pra alguém que só estava “ajudando”, palma acima da placa, sentindo.

    — Se você apressar, eu vou saber. E eu vou rir.

    Marco olhou pra mão dela, depois pra cara dela.

    — Isso é uma ameaça?

    — Ameaça, não. Cuidado. E eu gosto quando você faz certo. Agora põe o pão. Devagar.

    “Ah, se você obedecesse a Lou-reen com essa facilidade… a nossa vida aqui seria tão mais simples.”  Nova falou dentro da cabeça dele.

    Ela colocou um pote de leite perto e um jarro pequeno de mel ao lado. Um saquinho de canela já estava ali, fechado com corda.

    Marco olhou pra canela e parou um instante.

    A mãe dele mexia rabanada no Natal com uma colher de pau que tinha a ponta queimada. A casa cheirava doce antes de qualquer presente.

    Ele piscou e voltou. Ela empurrou uma tigela funda e uma caneca de barro.

    — Leite aqui. Só o suficiente pra molhar. Se encharcar, vira mingau.

    Marco despejou o leite com cuidado.

    — Ovo?

    — Já tá ali. — ela apontou pra tigela que ele tinha mexido antes. — E para de olhar pra porta a cada tranco. Ninguém vai te prender por fazer sobremesa.

    — Eu não tô…

    Ela inclinou o rosto, sorriso de lado.

    — Tá, sim. Você vive no alerta. Isso cansa.

    Marco cortou o pão com a faca serrilhada. O som foi seco. A lâmina entrou com esforço.

    — Isso aqui vai quebrar.

    — Vai quebrar se você tratar igual pedra. — ela pegou o pão da mão dele, virou o pulso dele com a ponta dos dedos e devolveu. — Mão firme. Sem raiva.

    “Ela acabou de corrigir sua técnica de corte e sua vida inteira.”

    Marco ignorou.

    Ele cortou de novo. Mais limpo. A cozinheira assentiu, satisfeita, e encostou perto demais quando ele colocou as fatias na tigela de leite.

    — Uma de cada vez. Conta até… — ela pensou, fez um cálculo próprio, e deu de ombros. — Conta pouco. Tira antes de cair.

    — “Conta pouco” é a unidade oficial de Taeris?

    — Aqui é. — ela pegou a primeira fatia, virou no leite e tirou rápido. — Viu? Umedece, não afoga.

    Marco imitou. A fatia dele ficou mais tempo.

    A borda começou a desmanchar.

    — Tá vendo? — ela apontou. — Você tem talento pra estragar coisas com carinho.

    — Eu não tô estragando.

    Ela pegou a fatia dele antes que partisse e passou no ovo.

    — Tá. Agora na chapa.

    Marco colocou a fatia no metal.

    O som subiu e o cheiro começou a aparecer. Por um segundo, a cozinha ficou com cara de Natal.

    A cozinheira encostou o ombro na parede, braços cruzados, olhando-o trabalhar como se fosse um teste.

    — Você tá fazendo isso pra Lou-reen.

    Marco parou com a mão acima da tigela.

    — O quê?

    — Não faz de bobo. — ela apontou com o queixo, direto. — Você não faz “noite importante” pra qualquer um.

    Marco virou a fatia com a espátula.

    — Eu… só quero agradecer.

    — Agradecer você agradece com frase. — ela disse. — Isso aí é outra coisa.

    Marco sentiu o rosto aquecer, e não era o fogo.

    — Você não conhece ela.

    — Eu não preciso conhecer. — ela respondeu. — Eu vi você no dia da invasão. Todo mundo correndo, general gritando ordem, e você no meio, tentando não morrer com uma ideia idiota na mão. Isso não é de soldado.

    Marco não achou resposta rápida.

    A fatia na chapa escureceu demais num canto.

    — Droga.

    — Vira. — a cozinheira falou, sem levantar a voz.

    Marco virou. A parte de baixo tinha um lado queimado.

    Ele travou.

    — Eu estraguei.

    — Você marcou. — ela corrigiu. — Estragar é jogar fora. Marca você raspa depois e finge que foi intenção.

    Ela pegou a faca e raspou a parte mais escura, sem drama, e devolveu a fatia pra ele.

    — Próxima.

    Marco trabalhou mais atento. Uma fatia por vez. Tempo menor no leite. Ovo cobrindo sem escorrer. Chapa com fogo baixo.

    A cozinheira ficou atrás dele por alguns minutos, perto o bastante pra ele sentir o cheiro dela: cebola, fumaça e alguma coisa cítrica que não combinava com fortaleza.

    — Você sabe que eu tô te ajudando porque eu quero, né?

    Marco virou o rosto.

    — Eu sei.

    — Então para de me olhar como se eu fosse te arrancar a cabeça se você errar.

    — Você acabou de prometer que ia cobrar.

    Ela deixou um riso escapar, baixo, e chegou perto o bastante pra ele sentir o cheiro de canela no avental dela.

    — Eu prometi cobrar se você me fizer repetir bronca. Ajuda eu cobro de outro jeito.

    Ela bateu de leve com o dedo no peito dele, bem acima do embrulho de pano.

    — Primeiro você acerta. Depois a gente conversa sobre o preço.

    Marco travou.

    — Outro jeito como?

    Ela apontou pro prato.

    — Me dá uma.

    Ele olhou a primeira que tinha ficado pronta. Dourada, com borda firme.

    Pegou com a espátula e colocou numa tigela pequena.

    A cozinheira passou mel por cima com uma colher, sem economizar. Depois soprou canela por cima, fino, deixando cair como poeira.

    Ela mordeu.

    A cozinha ficou em silêncio um instante. Ela mastigou, encarou Marco e engoliu.

    — Tá bom.

    Marco soltou o ar sem perceber que prendia.

    “Você acabou de receber aprovação técnica e social. Quase me emocionei.” — Nova.

    — Então dá pra fazer.

    — Dá. — a cozinheira apontou o dedo pra ele. — Mas não põe mel na chapa.

    — Eu não ia…

    — Ia, sim. Essa cara é de quem acha que mel resolve tudo.

    Quando a pilha de rabanadas cresceu, ela pegou um pano limpo e cobriu.

    — Leva isso pra sua torre. Protege do vento. E não deixa nenhum soldado meter a mão.

    — Eles vão tentar.

    — Então você morde. — ela falou, sem piscar. — Se funcionou com o “bicho médio”, funciona com soldado.

    Marco quase riu.

    Ela apontou com o queixo pra saída.

    — E agora fala a verdade.

    — Qual?

    — Você vai voltar aqui depois da sua noite importante?

    Marco travou, procurando resposta segura.

    — Eu… se sobrar tempo.

    A cozinheira deu um passo pra perto.

    — Se sobrar tempo, você aparece. Se não sobrar, você aparece também. É assim que funciona quando alguém te alimenta.

    Marco piscou.

    — Tá.

    Ela abriu espaço pra ele passar, ombro quase encostando no dele.

    — Vai lá, homem do céu.

    Marco pegou o pano com as rabanadas, ajeitou contra o peito, e foi pra porta.

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