Capítulo 018 — Me obrigue a me mover
Marco estava profundamente relaxado em seu sono, o corpo leve após uma longa noite de observação das estrelas com Maera. Seu rosto estava sereno, a respiração tranquila enquanto ele se entregava completamente ao descanso. O som suave da brisa entrando pela janela e o silêncio da madrugada envolviam-no, criando um ambiente perfeito de paz. Finalmente, ele havia encontrado um pouco de alívio depois de dias de treinamento exaustivo e desafios constantes.
Porém, a tranquilidade foi quebrada de forma brutal.
A porta do quarto se abriu com um estrondo, e Lou-reen entrou como uma tempestade. Ela estava visivelmente mais brava do que no dia anterior, seus olhos ardendo de raiva. Antes que Marco tivesse tempo de sequer abrir os olhos ou fazer qualquer movimento, ela já estava ao seu lado, em pé, com uma expressão que não deixava espaço para discussão.
Com um gesto rápido e implacável, ela pegou Marco pela camisa e, sem nenhum esforço visível, o lançou pela janela aberta. Marco mal teve tempo de processar o que estava acontecendo antes de se ver projetado para o ar, o vento cortando seu rosto enquanto ele caía.
— O quê?! — foi tudo o que conseguiu gritar, antes de aterrissar de pé, com as pernas ligeiramente dobradas para amortecer o impacto. Mesmo com o treinamento físico, a queda não foi das mais suaves, e Marco se levantou rapidamente, atordoado.
Ele olhou para a janela de onde viera, esperando ver a figura de Lou-reen se aproximando.
Ela apareceu logo em seguida, com a mesma expressão dura. Marco, ainda massageando os ombros, não conseguiu esconder a irritação.
— Isso não é justo! Eu estava dormindo! — ele protestou.
Lou-reen, com os braços cruzados e um olhar implacável, respondeu sem perder a compostura.
— E se você acha que pode descansar, está muito enganado. Hora de treinar! O tempo não vai esperar por você, Marco.
Nesse momento, uma voz irritantemente animada se fez ouvir dentro de sua mente, através de sua conexão com o Cetro de Clyve.
“Alerta vermelho! A chance de sobrevivência é tão baixa que prefiro chamar de ‘sorte!” Nova comentou.
Marco olhou para o céu, suspirando. Muito útil, Nova. Muito útil mesmo.
— Você é a definição de “não ter piedade”, sabia?
Lou-reen apenas o encarou com um olhar feroz.
— Exatamente o que você precisa!
Assim que saíram da casa, uma rajada de vento frio os envolveu. Marco abraçou o próprio corpo por reflexo, mas Lou-reen já caminhava em passos firmes.
— Hoje vamos aumentar a intensidade, Marco. Espero que tenha descansado.
Ele franziu a testa. Se Lou-reen já o fazia treinar até a exaustão normalmente, o que significava “aumentar a intensidade”?
A resposta veio rápido.
A corrida daquela manhã não se parecia em nada com as anteriores. Lou-reen não apenas acelerou o ritmo, como também aumentou brutalmente a distância. Marco sentia os pulmões queimarem, as pernas pesadas como chumbo a cada passo. O suor escorria por seu rosto, misturando-se ao ar gelado da manhã, e cada respiração parecia uma luta.
Quando seus pés começaram a fraquejar, quando sua mente gritou por descanso, ele tentou abrir a boca para protestar.
Mas antes que pudesse soltar uma palavra, um impacto seco acertou sua lateral.
O chute de Lou-reen o desequilibrou e quase o jogou ao chão.
— Se tem forças para reclamar, tem forças para correr mais rápido! — A voz dela veio cortante, sem espaço para discussão.
Marco se recuperou cambaleando, rangendo os dentes, e obrigou-se a continuar. Não adiantava argumentar. Não adiantava pedir descanso. Lou-reen não iria parar. E, naquele momento, ele percebeu algo: ou ele corria… ou caía.
***
Marco estava jogado no chão da entrada da casa como uma peça de roupa esquecida. O peito arfava, o suor escorria pela testa, e os braços pareciam feitos de chumbo.
Venia apareceu primeiro, os cabelos trançados e o olhar gentil. Faey veio logo atrás, com as mãos cruzadas nas costas e a expressão neutra de sempre.
As duas pararam assim que viram a cena.
Lou-reen estava de pé, braços cruzados, olhando para Marco como se ele fosse um projeto de arma que falhou miseravelmente.
— Ele tá… morto? — Venia perguntou, hesitante.
— Quase. — Lou-reen respondeu.
Marco ergueu uma mão trêmula do chão.
— Só… inutilizado.
— Isso foi só a corrida? — Faey perguntou, sem mudar o tom.
— Só o aquecimento. — respondeu Lou-reen, seca.
Nova falou dentro da mente de Marco com sua habitual empolgação desnecessária:
“Estatisticamente, você deveria estar inconsciente. Mas parabéns por ainda conseguir se manter aqui.”
Lou-reen caminhou até ele e cutucou sua perna com a ponta da bota.
— Levanta. Ainda temos conjuração pra treinar.
— Eu não tenho mais pernas, Lou-reen. Elas evaporaram em algum ponto entre o quilômetro vinte e o inferno.
Faey arqueou uma sobrancelha.
— Lou-reen, não acha que isso já é castigo suficiente?
Lou-reen respondeu sem olhar.
— Ainda não morreu. Então não.
Marco gemeu e tentou se sentar.
— Vocês são todas malucas… eu só queria estudar estrelas.
— Estude enquanto corre, então. — Lou-reen retrucou.
Ela virou-se e foi em direção à casa.
— Venham. Café da manhã. Ele aparece quando conseguir se arrastar.
Faey a seguiu. Venia hesitou por um instante, depois sorriu para Marco e entrou.
Na mesa do café da manhã, Marco estava mexendo em seu prato, distraído, mas sua mente estava em outro lugar. A noite anterior, conversando com Maera, e os planos que ela tinha ajudado a elaborar para as observações astronômicas estavam ocupando todos os seus pensamentos.
Ele finalmente se virou para Lou-reen, com um olhar curioso.
— Lou-reen, vou precisar de mais moedas. Eu preciso comprar algumas ferramentas…
Lou-reen, que estava comendo com a expressão fechada, o olhou com desconfiança.
— Ferramentas? — ela perguntou, arqueando uma sobrancelha. — O que você pretende fazer com elas?
Marco hesitou por um instante, um pouco tímido pela dúvida no olhar de Lou-reen, mas rapidamente explicou, sem esconder o entusiasmo.
— Quero registrar as minhas descobertas. Maera vai me ajudar a fazer medições das estrelas. A gente quer calcular distâncias, localizar constelações… Eu preciso de algumas ferramentas para que as anotações fiquem mais precisas.
Quando Marco mencionou o nome de Maera, um silêncio momentâneo se formou à mesa. Venia, que até então estava quieta e concentrada em seu chá, parecia ainda mais tímida do que de costume. Seu rosto corou ligeiramente, e seus olhos se dirigiram ao prato, evitando fazer contato direto com Marco. Então, com a voz quase imperceptível, ela perguntou:
— Quem é Maera?
A pergunta saiu baixa, mas claramente cheia de curiosidade. Faey, que estava calada até então, olhou de Marco para Venia com uma expressão de leve curiosidade.
— A Olaraeth? A sobrinha do Imperador Ivoney Olaraeth? — Faey questionou, sua voz firme e quase implacável, como se estivesse fazendo uma conexão rápida entre os nomes.
Marco parou, um pequeno lampejo de surpresa atravessando seu olhar. Foi como se uma peça de um quebra-cabeça se encaixasse em sua mente. Seus olhos se arregalaram, e seu rosto se iluminou com empolgação, como se tivesse acabado de perceber algo importante.
— Ah! — Marco exclamou, como se finalmente tivesse entendido. — Eu não sabia que ela era sobrinha do Imperador! Eu… Eu conheci Maera, e nós estávamos falando sobre as estrelas. Ela compartilha o mesmo interesse, sabe? Somos, bem, amigos agora, e estamos fazendo algumas medições juntos.
Lou-reen, que já estava começando a perder a paciência com toda a conversa sobre Maera, deu um suspiro audível. O garfo que estava segurando quebrou ao meio com um som claro e seco. Todos os olhos se voltaram para ela, mas Lou-reen não parecia notar o dano imediato.
— Bem, espero que todo esse interesse no céu não o faça esquecer do chão, Marco. Temos treinamento para fazer.
— Como se você fosse me deixar esquecer. Enfim, hoje à noite vou me encontrar com ela novamente para continuarmos anotando a trajetória de um planeta que estamos observando.
Venia, percebendo a tensão no ar, rapidamente mudou de assunto.
— Ah… Lou-reen, a agenda de hoje inclui uma reunião com Kaertien Dorbeos.
Lou-reen não respondeu de imediato, ainda mordendo o que restava de seu garfo quebrado. Após um momento, ela assentiu com a cabeça.
***
Marco parou no centro da área de treinamento, ainda digerindo o mingau militar do café da manhã. As articulações reclamavam em silêncio, e os músculos ainda ardiam da corrida infernal de mais cedo, mas ele sabia que reclamar só traria mais sofrimento.
Lou-reen girou o pulso e apontou com o queixo.
— Cetro. Agora.
Marco apertou a alça de couro da bolsa presa ao ombro, mas não se moveu. Seu olhar estava firme, embora cansado.
— Não.
Lou-reen arqueou uma sobrancelha.
— Está recusando uma ordem?
— Estou. — Ele inspirou fundo. — Não quero depender do poder de outra pessoa. Nem do cetro. Se eu vou conjurar magia, vai ser com o que eu tenho.
Por um instante, Lou-reen ficou apenas o observando. Seus olhos percorriam o rosto de Marco como se buscassem alguma hesitação. Mas não havia.
Ela cruzou os braços.
— Muito bem. Então me mostre.
Marco fechou os olhos. Respirou fundo. O ar estava fresco, quase frio. O campo estava vazio. A dor em seu corpo era constante, mas havia algo diferente naquela manhã: uma lembrança.
A imagem de Maera, na noite anterior, conjurando uma esfera perfeita — calma, girando como uma estrela. Aquilo não era uma arma. Era uma manifestação de beleza.
E ele queria fazer igual.
Marco abriu os olhos. Estendeu a mão à frente. Canalizou a energia, não como quem luta, mas como quem observa o céu.
O fluxo veio instável — como sempre —, mas ele não tentou forçar. Manteve o foco, lembrando da leveza. E então, pela primeira vez, sentiu a essência girar em torno de si com um ritmo próprio.
Uma esfera de chamas surgiu.
Flutuava acima de sua palma como uma pequena estrela viva. Quente, mas estável. Intensa, mas controlada.
Lou-reen não sorriu. Apenas apontou para si mesma.
— Não é pra decoração. Ataque.
Marco hesitou.
— Você quer que eu… jogue em você?
— Quero que acerte. — disse ela, com aquele tom que transformava qualquer frase em ameaça.
Ele engoliu em seco, ajeitou os pés, respirou fundo e jogou.
A esfera partiu girando no ar com um brilho alaranjado, traçando uma linha incandescente entre eles.
Lou-reen estendeu uma única mão e com um tapa displicente a rebateu.
Fumaça subiu, e o chão estremeceu com o deslocamento de calor. Lou-reen permaneceu imóvel. Apenas sacudiu a mão, como quem espanta uma faísca.
Marco franziu a testa.
— Eu gostei dessa.
— Ela foi… aceitável. — Lou-reen comentou, sem emoção. — Agora, de novo. Conjure, mire, ataque. Com intenção.
— Intenção?
— Está tentando fazer uma esfera ou pedir desculpas para o ar?
Marco respirou fundo. Estendeu a mão novamente. A essência respondeu mais rápido desta vez. A chama nasceu em meio a um círculo bem traçado, maior, mais densa. Ele girou o punho, e a esfera acompanhou o movimento.
Lou-reen observava em silêncio.
— Lembre-se — ela disse. — Poder sem direção é só calor perdido.
Marco lançou. E mais uma vez Lou-reen rebateu como se não fosse nada.
Marco arregalou os olhos.
— Melhor. Agora me obrigue a me mover.
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