Capítulo 057 — Você tem que passar por mim.
Tarde da Noite – Forja Imperial
O calor das brasas morrendo preenchia o ambiente com um leve brilho alaranjado.
Gorthen Valdik caminhava lentamente entre as bancadas de pedra escura, com uma garrafa de vinho pela metade na mão e os passos arrastados. O lugar estava em silêncio, exceto pelo som distante das brasas estalando.
— Cinquenta e três invernos… e essa forja continua com o mesmo cheiro — murmurou. — Suor, ferro e… orgulho.
Ele passou a mão por uma bigorna, parando por um instante.
Caminhou até as portas internas e empurrou-as sem esforço. A sala principal da forja estava escura, exceto por um brilho fraco vindo de um caldeirão. Tudo parecia no lugar. Até que ele notou.
As portas não deveriam estar destrancadas.
Algo cortou a penumbra pela lateral, baixo e rápido como se tivesse sido atirado por um caldeirão, e caiu a um palmo da bota dele: um martelo de guerra. Ele reconheceu na hora. Era o seu martelo, aquele que ficava pendurado na parede dos fundos, ao lado da bancada principal.
Gorthen virou o rosto na direção do corredor do fundo quando uma voz conhecida falou.
— Sempre acaba voltando pra esse fogo. Eu só precisei esperar, Gorthen.
Gorthen encostou a ponta da bota no martelo, testou o peso conhecido e o chutou para cima. Não em guarda; apenas tomou de volta o que era dele.
— Expulso do Exército e ainda pisa na minha forja, Hersperon?
— O Exército me expulsou. O fogo não. E esta forja sempre aceitou quem sabe trabalhar, Gorthen.
Ele avançou um passo para a luz do caldeirão.
O peitoral tomou forma primeiro: placas justas, lisas, de um brilho frio. Não era o aço comum da casa; a liga tinha um tom e um peso no desenho que Gorthen nunca tinha visto ali. O traço, porém, era conhecido: a runa de potencialização de Hersperon corria em diagonal pelo peito.
— Um dia eu te respeitei — Gorthen disse, sem erguer a voz. — Hoje você não passa de criminoso. Devia ter vergonha de se chamar de ferreiro.
A linha do queixo de Hersperon contraiu. Ele manteve-se no alto, firme no corrimão.
— Você e o Império podem não reconhecer meu valor — falou, frio. — Mas eu finalmente encontrei quem reconhece. É uma pena que você não vá viver para ver o que eu mostrarei ao mundo amanhã.
— O que você quer aqui, Hersperon?
— Estou satisfeito com este… mirthril que me deram para trabalhar — ele tocou o peitoral com um dedo. — E me pediram pouca coisa em troca: a sua cabeça cortada e a chave que você carrega na corrente, no pescoço.
Gorthen gelou. A mão foi, por reflexo, até a gola. Aquilo não era para ninguém saber.
— Pois é — Hersperon disse, sem pressa. — Me contaram uma história boa esses dias. Sobre uma tal Espada da Chama Eterna. Confesso que me interessei. Sempre quis saber como eles mantêm as fornalhas do Império acesas dia e noite. E imaginei que você saberia o que ela faz quando trabalha junto do Bracelete de Solun.
Gorthen respirou fundo.
Longe dali o som da cidade ainda vinha em retalhos: risos, tambores, celebração. O Império comemorava.
— Eu devia saber que você estava por trás do roubo ao museu — disse. — Não há limite para a sua ambição. Você usou a própria filha como cobaia.
Hersperon sorriu.
— Sinceramente? — a voz veio limpa. — São os meus novos amigos que querem as relíquias. Eu não tenho interesse nessas velharias. Mirthril é o futuro, e ele será moldado pelas minhas mãos.
Ele tocou o próprio peitoral com dois dedos. As linhas de runa ganharam brilho contido e emitiram um pulso seco, denso, que vibrou no ar.
— E eu não me importo em passar por cima de ninguém.
Gorthen já estava no ar, o martelo indo em direção à cabeça do elfo. Hersperon apenas ergueu a mão e o segurou, como se aparece o golpe de uma criança teimosa. O impacto desceu inteiro pelo corpo e varreu o piso, a pedra rachando sob seus pés.
— Ainda sabe bater — disse, tranquilo.
Gorthen puxou a arma de volta.
O sulco no chão seguia do calcanhar de Hersperon até a base do caldeirão, fino e fundo. O elfo desceu o queixo um grau, avaliando.
— Entregue a chave, Gorthen. Poupamos o resto deste lugar.
— Vem pegar.
Hersperon deu um passo à frente e, por um instante, pareceu sumir do lugar.
Gorthen só teve tempo de erguer o martelo. O encontro veio seco, direto no cabo. O corpo dele perdeu o chão e atravessou o corredor até bater na bancada da parede. Madeira cedeu, ferramentas voaram, pregos e limas riscaram o ar antes de desabarem pelo piso.
Hersperon já estava de novo no centro, estável, o peitoral assentado no peito, como se tivesse apenas corrigido a distância.
— Mirthril é o único metal que aguenta o que eu penso — disse. — Vocês menosprezaram minhas criações porque o aço não suportava. Enquanto isso, ajoelhavam para o Bracelete de Solun.
Ele tocou o peitoral com os nós dos dedos, quase afetuoso.
— Sempre falei que o problema era o aço. Ninguém ouviu.
Gorthen limpou a poeira do ombro e endireitou o tronco.
— E agora devo aplaudir?
— Não. Só assistir — Hersperon respondeu, avançando um passo, calmo. — Hoje você aprende. Amanhã o resto do Império.
Hersperon avançou de novo e, por um instante, sumiu do lugar.
Dessa vez Gorthen saltou para o lado e bateu o martelo no chão. A pedra cedeu numa fenda que cortou a passagem; Hersperon perdeu o passo, tropeçou no desnível e abriu o peito. Gorthen girou o cabo e acertou a placa.
O elfo atravessou a sala e bateu na parede; o impacto abriu uma cratera na rocha que estava ali havia séculos.
Ele ergueu o rosto com um meio sorriso.
— A mão não enferrujou. Lembra de Pyrco, contra os invasores de Malrath? Você arremessava assim os inimigos por cima da muralha.
Gorthen já estava em cima dele outra vez, o martelo descendo.
Hersperon fechou o punho e atingiu a cabeça da arma no ar. O contato seco virou uma onda que correu pela nave da forja; as paredes tremeram, cinzas desceram do teto em fios finos, e o caldeirão vibrou no próprio aro.
— Você já viu, não já? — Hersperon perguntou, sem mover o pé. — A espada que alimenta tudo isso. É claro que já. Há quanto tempo você é o mestre ferreiro deste lugar? Você sabe para que Solun a forjou, não sabe?
Gorthen avançou com o martelo. Hersperon rebateu para o lado com o antebraço, como quem afasta poeira.
— Não me importa para o que ela foi forjada — Gorthen cuspiu.
— Este Império mentiu para nós, Gorthen! — a voz de Hersperon subiu pela nave. — E continua mentindo. Nós lutamos por uma farsa e você sabe disso. A espada vai mudar isso.
Gorthen travou meio passo.
— E o que vocês vão fazer com ela?
— Vamos começar este Império do zero — Hersperon disse, firme. — Começando por contar a verdade do que aconteceu com Ga-el aos soldados que forem fortes o bastante para sobreviver e aguentar.
— E depois?
— Depois, vamos esmagar nossos inimigos.
— Com as suas armas?
— As armas Wynrae trarão glória ao Império, como sempre fizeram.
— Você ainda tem que passar por mim.
— Isso será fácil.
Gorthen avançou em sequência, o martelo cortando o ar de lado, de baixo, de cima. Hersperon só girava meio ombro, inclinava um quadril, deixava passar. Displicente, os pés leves no mesmo eixo, o peitoral assentado.
Quando Gorthen recuou um passo para puxar fôlego, Hersperon entrou no espaço com um direto curto. O ferreiro ergueu o cabo e bloqueou no meio do caminho; respondeu com um giro de punho que tentou varrer as costelas do elfo. Hersperon travou no antebraço e empurrou de volta.
O choque se abriu em ondas pela nave. Ganchos de parede vibraram, correntes tilintaram, cinza caiu em véu fino. Mais um avanço, mais um encontro: braço contra cabo, placa contra cabeça de martelo, e a pressão voltou a espirrar do centro dos dois, fazendo o caldeirão tremer no aro.
Ninguém cedia. Passos curtos, ajuste de base, respirações firmes. Gorthen ancorado no peso; Hersperon fluido na cintura. Golpe, bloqueio, contragolpe; o mesmo impacto seco devolvido dos dois lados, em igualdade.
A porta rangeu e Nareth surgiu no vão, uma espada na mão, ofegante.
Os dois ferreiros o viram.
— Some daqui! — Gorthen gritou. — Corre e chama um oficial!
Hersperon desapareceu do lugar, num avanço direto ao rapaz. Gorthen cortou a linha no meio do caminho; o martelo entrou entre os dois e travou o golpe a centímetros do rosto de Nareth.
— Tá perdendo velocidade, velho elfo — Gorthen rosnou, empurrando. — Acho que esse seu mirthril também se desgas…
A frase morreu. Ele baixou o olhar.
A ponta de uma lâmina nascia do próprio peito. Atrás dele, o punho firme de Nareth, colado às suas costas, empurrava a espada até o fim.
Hersperon apenas estendeu a mão, gentil, e aparou Gorthen pela omoplata para não o deixar cair de imediato. A outra mão foi à corrente no pescoço do ferreiro. Um puxão seco e a chave saiu.
— É uma pena que você não vá ver as maravilhas do mirthril, Gorthen — disse, baixo.
Nareth retirou a lâmina num só gesto. Gorthen tentou respirar e não veio ar. O martelo escorregou dos dedos e tocou o chão.

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