1º ESPECIAL DE NATAL — PARTE 3 DE 5
As perenes ficavam além do trecho mais aberto. O vento cortava mais ali e entrava por baixo da roupa, achando as frestas como se conhecesse o corpo dele.
O embrulho maior vinha preso no peito por duas tiras, ao lado da bolsa com o cetro. Pano grosso, nó apertado, cheio de vidro dentro. O menor ficava amarrado por cima, mais firme ainda.
“Você escolheu o pior dia pra carregar coisa frágil.”
— Eu escolhi o dia que eu tenho.
Marco seguiu sem olhar pra trás. O machado batia na perna, preso pela alça. Cabo gasto, lâmina boa, feita pra abrir gente e madeira com a mesma falta de delicadeza. Em Ga-el, aquilo existia em todo canto.
Ele passou entre pedras e raízes, medindo o caminho com o pé antes de botar peso. Não podia escorregar, não podia cair. A floresta não estava interessada no plano dele.
O cheiro de resina subia quando ele pisava em galho quebrado. O chão estava firme e seco, com folhas duras e agulhas de pinho que grudavam na sola.
Ele encontrou uma árvore pequena num ponto onde o vento batia menos. Não era a mais cheia, não era a mais reta, mas era a que dava pra carregar sozinho.
Marco parou, estudou o tronco e olhou pro alto. Calculou a queda, o espaço, onde que ia bater primeiro. Levantou o machado e ajustou as tiras do embrulho uma última vez, puxando o pano pra cima, mais colado no peito.
O machado ficou pronto na mão.
Um ruído baixo, rápido, veio da base.
Marco travou. Não girou o corpo todo. Só varreu em volta com os olhos, devagar, procurando movimento onde não devia ter. Deu um passo pra trás e achou a origem.
Um mamífero pequeno disparou pra cima dele, agressivo, sem hesitar. Dente, unha, cheio de raiva crua. Marco girou o machado no último instante, não pela lâmina, pelo cabo.
Ele deixou o embrulho fora da linha e encaixou a madeira entre os dois. O impacto subiu pelo braço e bateu no ombro. O vidro reclamou num tilintar abafado, e Marco travou o antebraço contra o pano, segurando tudo no lugar.
As unhas acharam uma fresta onde o cabo não fechou. Rasparam a manga, entraram na pele e abriram um risco comprido no antebraço. O sangue apareceu na hora, quente demais praquele vento, escorrendo até o punho e manchando a madeira.
Marco apertou o cabo. Não olhou.
O bicho tentou morder a perna dele.
Marco empurrou de lado com o cabo, sem bater. Só negou a linha e cedeu espaço. O animal voltou mais perto, insistindo, teimoso, com o mesmo ódio.
Marco repetiu a defesa. Não chutou, não esmagou. O machado ficou ali como cerca, não como arma.
Ele recuou mais um passo e ouviu.
Um som fino, frágil, vindo debaixo da raiz. Um movimento pequeno demais pra vento, pequeno demais pra folha.
Marco baixou os olhos e achou a entrada do ninho. Um buraco entre raízes e terra dura. Pontos se mexendo lá dentro, rápidos, escondidos.
A mão dele apertou o cabo do machado, mas a lâmina continuou alta.
— Tá. Entendi.
Ele começou a se afastar, lento, medindo o chão. O mamífero não recuou. Ficou entre ele e o ninho, peito subindo e descendo rápido, pronto pra morrer ali.
Marco não tinha vindo pra matar nada. Tinha vindo pra cortar madeira e fingir que uma noite podia mudar alguma coisa.
Um peso maior entrou no bosque.
O som não era de passo, era de arrasto. Casca raspando, folha esmagada, um corpo comprido abrindo caminho no chão.
Marco sentiu antes de ver: a pele atrás do pescoço avisou.
A serpente apareceu no limite entre as árvores. Grossa, do tamanho de Marco em comprimento, cabeça baixa, língua testando o ar. O olhar prendeu na raiz.
O alvo era óbvio: o ninho.
Marco entrou na frente sem pensar. Virou o machado na mão, cabo à frente, lâmina pra trás, e tomou a linha entre a serpente e a entrada. Firmou o pé no chão e prendeu o embrulho com o antebraço, como se estivesse segurando uma costela no lugar.
O mamífero pequeno travou por um instante. Depois a fúria trocou de direção. Ele largou Marco e foi na serpente.
Entrou pelo lado, cravou os dentes e saiu antes da cabeça virar. Voltou pela outra lateral, rasgou espaço com as unhas e sumiu de novo pra fora do alcance.
Marco não tinha velocidade pra acompanhar aquilo, mas tinha alcance. Tinha posição, tinha a obrigação de não cair.
A serpente respondeu na hora.
O corpo fez um arco no chão, enrolou meio giro e disparou a cabeça como uma mola. A boca abriu grande, direto na altura do ombro dele.
Marco enfiou o cabo no caminho do bote.
O impacto sacudiu o braço inteiro. A cabeça desviou meio palmo do peito dele e bateu na madeira com um estalo seco. Marco perdeu meio passo, calcanhar raspando na terra, mas segurou.
O embrulho tilintou outra vez. Um aviso. E o arranhão no antebraço ardeu junto, lembrando que a pele já tinha pago a entrada.
O mamífero entrou no mesmo instante, cravou os dentes entre escamas e saiu. A serpente girou tentando alcançar e mordeu só ar.
Ela não desistiu.
A cauda varreu baixo e quase levou o joelho de Marco. Ele saltou pra trás sem baixar o corpo, sem deixar o peito ir pro chão. O pacote bateu contra as costelas e ele travou o antebraço com força, segurando o pano.
A cabeça veio de novo, mais rápida, mirando o rosto.
Marco encaixou o cabo no ângulo e empurrou de lado, braço travando. A boca passou perto o bastante pra ele sentir o bafo quente e o chiado da língua.
O próximo bote não ia errar.
O machado não podia descer. Um golpe errado ia atingir o ninho. Um golpe forte demais podia desequilibrar ele. E desequilíbrio, com vidro preso no corpo, era o fim da noite.
A mão livre abriu.
— Materialização de Essência: Esfera de Chamas.
A essência subiu e fechou na palma. A bola apareceu viva, girando, luz batendo nas escamas. Calor contido, obediente.
A serpente atacou no mesmo segundo, boca aberta.
Marco lançou a esfera na cara dela.
O fogo estourou no focinho e subiu pro olho. O ar chiou. A cabeça deu um tranco pra trás, sacudindo. O corpo inteiro se contorceu no chão num arrasto brutal, abrindo espaço sem querer.
O mamífero aproveitou a brecha e entrou de novo, rasgando o flanco e saindo antes da cauda voltar.
Marco avançou meio passo, só o necessário pra empurrar o recuo. O machado subiu como ameaça, lâmina guardada.
A serpente cedeu.
Recuou em arrasto, rápido, cabeça baixa, fugindo do calor e do alcance. Mais um metro, mais outro, até escolher a direção mais fechada e sumir entre as árvores.
Marco não correu atrás.
Ele ficou ali, peito subindo e descendo, sentindo o pano pressionar a respiração. O sangue do antebraço já tinha descido até a mão. A madeira do cabo estava escura e lisa, querendo escapar.
Marco passou a palma no embrulho sem abrir, só conferindo com pressão. Nada cedeu ou estalou. O mamífero pequeno voltou pro ninho e sumiu na raiz, ainda olhando pra ele como se ele fosse mais um problema.
Marco manteve distância. Não esticou a mão, não tentou contato. Só esperou o silêncio voltar pro lugar.
Quando o bosque assentou, ele olhou a árvore escolhida.
Ela ainda estava inteira.
Ele poderia cortar ali mesmo.
Marco olhou pra raiz, olhou pro buraco do ninho. Olhou pro chão onde ele teria que firmar o pé.
Guardou o machado no ombro.
— Não.
Ele recuou devagar, sem virar as costas de uma vez, e saiu dali pelo mesmo caminho, medindo cada passo.
Mais adiante, numa área mais aberta, ele achou uma perene caída, partida na base. Galhos ainda verdes, resina viva, tronco leve o bastante pra ele arrastar sem fazer o corpo brigar com o vidro no peito.
Marco cortou só o necessário. Golpe limpo, sem exagero. Um galho caiu, outro caiu. Serviria.
O sol já estava sumindo quando ele amarrou o tronco com uma corda simples e jogou no ombro. Ajustou o embrulho no peito outra vez e começou o caminho de volta.

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