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    Kalamera ficou de frente para a “árvore” com as quatro mãos ocupadas: duas seguravam um fio, outras duas alinhavam um prisma de vidro que pegava a luz da lamparina e devolvia riscos finos na parede.

    — Isso fica mesmo pendurado? — Ela girou o prisma um dedo e parou quando a luz cortou o teto.

    — Fica. — Marco pegou uma esfera oca, leve demais pra parecer real. — A ideia é que brilhe.

    Ela encostou a esfera perto do rosto, avaliando o furo no topo.

    — Vocês gostavam de objetos inúteis.

    — A gente gostava de ter um dia que não era só sobreviver. — Ele amarrou a esfera com nó simples e prendeu num galho mais baixo. — Uma vez por ano.

    Kalamera prendeu outro enfeite, um disco fino que devolveu um risco branco no chão.

    — E por que uma árvore?

    Marco olhou o galho e pensou no tapete da casa da mãe. Pensou no tubo de plástico barato. Pensou no tripé fino demais.

    “Não vai chorar em cima de uma perene, astronauta.”

    — Porque era fácil de reconhecer. — Ele pegou o pingente de estrela de vidro. — E porque a gente precisava de um símbolo que coubesse na sala.

    Kalamera encarou a estrela como quem encara um erro de engenharia.

    — Isso não existe no céu.

    — Eu sei. — Marco prendeu a estrela no galho mais alto que alcançou. — Mas existe na cabeça das pessoas. Às vezes isso basta.

    Ela seguiu o fio com os olhos.

    — E o tal “Pai Noel”?

    Marco soltou um riso que morreu rápido, mais vergonha do que graça.

    — Um velho que entrega presentes de noite.

    Kalamera virou o rosto.

    — Como ele entra?

    — Pela… — Marco travou. — Pela chaminé, em algumas histórias.

    Ela ficou um tempo quieta, processando.

    — Vocês tinham um ladrão oficial.

    — Era um ladrão autorizado. — Ele deu de ombros. — E não era de verdade. Era… uma brincadeira. Uma desculpa.

    — Pra quê?

    — Pra dar coisa pros outros sem parecer fraco.

    Kalamera inclinou a cabeça, entendendo rápido demais.

    — Isso parece Taeris.

    Marco pegou mais dois prismas e foi pendurando, alternando tamanhos pra não pesar o galho. A árvore ganhou um brilho estranho, mais técnico do que bonito, e ainda assim bonito.

    Kalamera apontou para o chão.

    — E os presentes ficam embaixo?

    — Ficam.

    — E ele deixa tudo ali sem ninguém ver?

    Marco olhou para a porta.

    — Na minha casa, quem “deixava” era minha mãe. Só que a gente fingia. — Ele arrumou uma caixa pequena de pano no fundo, escondida pelo tronco e pelos galhos baixos. — Era o acordo.

    Kalamera agachou, curiosa, mas não tocou.

    — Você vai fingir comigo também?

    — Vou. — Ele respondeu rápido demais. — Essa parte é obrigatória.

    “Você acabou de impor um protocolo social a uma ferreira com quatro braços. Corajoso.”

    — Cala a boca.

    Kalamera ergueu uma sobrancelha.

    — O quê?

    Marco apontou o galho.

    — Nada. Pega esse disco aqui.

    Ela pegou, prendeu com o fio, puxou até firmar. A luz da lamparina atravessou o vidro e jogou um risco azul na parede de pedra, fino, tremendo.

    A porta rangeu.

    Marco travou por um instante. Kalamera também. Os dois olharam.

    Lou-reen entrou primeiro, manto escuro batendo na bota. Hamita veio atrás, com a mesma presença de sempre, como se a torre fosse uma arena e ela tivesse dono do lugar.

    Lou-reen parou na metade da sala e ficou olhando a árvore de vidro e resina, o chão com agulhas, o fio pendurado na mão de Kalamera.

    — Você me pediu pra passar aqui por isso?

    A voz saiu lisa. A cara, fechada. O olhar, atento demais.

    Hamita passou por ela e deu a volta na árvore, avaliando o brilho.

    — Tá estranho. — Ela apontou com o queixo, divertida. — Mas é bonito. Parece armadilha de luz.

    Kalamera soltou um som baixo, satisfeita com a definição.

    Marco limpou a garganta e colocou as mãos na frente do corpo, como se estivesse prestes a apresentar um relatório.

    — Eu… queria uma noite diferente.

    Lou-reen cruzou os braços.

    — Diferente de quê?

    — Diferente de guerra. De treino. De conserto. — Marco apontou o topo. — É uma tradição de onde eu vim.

    Hamita encostou o dedo num prisma e recuou quando a luz se partiu na parede.

    — Você inventa coisa demais.

    — Eu aprendi com o Império. — Marco rebateu, seco.

    Hamita deu uma risada e olhou de lado pra Lou-reen.

    — Ele tá respondendo.

    Lou-reen não devolveu o sorriso. O olhar dela ficou na árvore, depois no chão, depois no tronco preso por corda.

    — E isso serve pra quê?

    Marco foi direto, do jeito que ela sempre arrancava dele.

    — Serve pra lembrar. Serve pra agradecer. Serve pra fingir que o mundo não vai cair hoje.

    Kalamera prendeu mais uma esfera e afastou as mãos, observando o conjunto.

    — E o velho ladrão?

    Marco olhou pra ela, depois pra Lou-reen.

    — Ele é a desculpa pra presentes.

    Hamita ergueu a sobrancelha.

    — Presentes?

    Marco apontou pro chão, embaixo dos galhos.

    — Eu deixei alguns ali.

    Hamita agachou na hora, sem cerimônia. Pegou a primeira caixa de pano, sentiu o peso e olhou pra Marco.

    Lou-reen soltou um som pelo nariz, impaciência pura.

    — Isso é perda de tempo.

    Ela já tinha virado o corpo pra porta. Marco deu um passo.

    — Lou-reen.

    Ela não olhou de volta.

    — Eu tenho relatório pra ler. Tenho treino amanhã. Tenho um Império inteiro que não para porque você lembrou de uma história.

    Marco sentiu a boca secar. A mão foi no pano que cobria a comida, só pra ter algo firme no mundo.

    — Eu sei.

    Ele não tentou convencer. Não explicou de novo. Só falou o que doeu.

    — Se você sair agora, eu vou terminar isso sozinho. E vai ficar… vazio. Igual o resto do dia.

    Hamita ergueu as sobrancelhas, surpresa de verdade. Kalamera baixou um pouco o fio, olhando a Lou-reen.

    A general ficou imóvel um instante.

    A mão dela tocou a maçaneta e não girou.

    “Olha ele.” — Nova falou dentro da cabeça dele. “Quase um adulto.”

    Lou-reen virou o rosto devagar.

    — Você me chamou pra não deixar você se sentir patético?

    — Eu te chamei porque eu queria que você estivesse aqui.

    Silêncio.

    Hamita soltou um som pelo nariz, satisfeita.

    — Tá. Agora sim.

    Lou-reen largou a maçaneta e voltou dois passos pra dentro, sem encarar ninguém por muito tempo.

    — Fala logo o que você armou, Marco.

    — Antes… isso.

    Ele foi até o canto e trouxe um embrulho limpo, pesado de um jeito bom. O cheiro de canela saiu antes de aparecer comida.

    Hamita abriu o pano com as duas mãos e viu a pilha.

    — O que é isso?

    — Rabanada. — Marco respondeu, simples. — É um doce. De Natal.

    Lou-reen olhou a pilha como se fosse um relatório errado. Hamita pegou uma com os dedos, soprou a canela que subiu e mordeu.

    A mastigação dela foi lenta. O olhar dela ficou no teto por um instante, calculando. Ela engoliu e apontou a rabanada pra ele.

    — Isso aqui devia ser uma arma.

    Kalamera pegou uma menor, cheirou primeiro, mordeu com cuidado. O olhar dela virou uma linha fixa no nada, e depois voltou pro prato.

    — Isso… é bom.

    Lou-reen não pegou.

    Marco empurrou o prato um pouco mais perto dela.

    — Pega.

    — Eu não—

    — Pega. — A ordem saiu no mesmo tom que ela usava. Marco se arrependeu no meio da palavra e já ia voltar atrás.

    Lou-reen pegou. Mordeu só a ponta. Parou, olhando como se o pão tivesse que responder alguma coisa.

    A expressão dela tentou não mudar. Tentou. A tentativa falhou por um detalhe no canto dos olhos.

    Hamita viu na hora e abriu um sorriso largo.

    — A general gostou.

    Lou-reen apertou a rabanada na mão, como se fosse culpa dela.

    Marco ficou de pé. Não encostou na árvore, não mexeu nos presentes. Só ficou ali, reto, com o calor da lamparina batendo no rosto.

    — Eu queria… agradecer.

    As três olharam.

    Marco escolheu as palavras com esforço. Não tinha treinamento pra isso.

    — Eu cheguei aqui sem entender nada. Eu fiquei cento e quarenta e quatro amanheceres tentando não virar peso. — Ele encarou o chão por um instante e voltou. — Vocês me seguraram em pé. Cada uma do seu jeito.

    Hamita levantou a rabanada, como se brindasse.

    — Ele tá falando sério.

    Lou-reen não tirou os olhos dele.

    Kalamera ficou imóvel, as quatro mãos paradas, uma com fio, outra com vidro, duas vazias.

    Marco agachou e puxou a primeira caixa de pano de baixo da árvore. Empurrou pra Kalamera.

    — Pra você.

    Kalamera pegou sem pressa. Abriu o pano.

    O metal apareceu primeiro: uma armação leve, feita na forja. Sem ponta. Sem rebarba. Ajuste simples. E duas peças escuras encaixadas, vidro domado, tom fechado.

    Kalamera segurou na altura do rosto, como se fosse uma peça proibida.

    — Isso…

    — Proteção. — Marco falou. — Pra clarão do fogo não te deixar cega no fim do dia. E pra quando você não quiser que ninguém veja seu olhar.

    Hamita assobiou baixo.

    — Tá, isso é bom.

    Kalamera colocou devagar. Ajustou com duas mãos, firme. As lentes escureceram o mundo e deixaram o brilho da árvore mais controlado.

    Ela virou o rosto pra Marco.

    — Eu consigo ver… mas tá escuro.

    A frase saiu baixa. Limpa. Marco assentiu.

    — Era a ideia.

    Lou-reen deu um passo, sem perceber. A mão dela foi ao próprio peito e voltou, incerta. Marco puxou a segunda caixa, menor, embrulho de pano bem fechado. Colocou na mão de Lou-reen.

    — Pra você.

    Lou-reen olhou o pano como se fosse uma lâmina.

    — Eu não pedi nada.

    — Eu sei.

    Ela abriu.

    Um cordão fino apareceu, metal escuro e fecho simples. No fim dele, um coração azul bem escuro, liso, pesado na medida certa, cheio de pontos brilhantes presos dentro da pedra, como um céu esmagado.

    Lou-reen parou.

    Hamita inclinou o rosto, curiosa de verdade.

    — Que pedra é essa?

    Marco assentiu, sem tirar os olhos do pingente.

    — Eu chamo de pedra-estrela. Eu vi uma parecida lá… de onde eu vim.

    — E ainda botou nesse formato aí. — Hamita mostrou os dentes, divertida. — O que é isso? Uma folha torta?

    Marco olhou pro pingente na mão da Lou-reen. Engoliu seco.

    — É um coração.

    Hamita franziu a testa, olhando de novo, como se a resposta fosse pior que a pergunta.

    — Coração… não é dentro do peito?

    — É.

    — Então por que tá para ser pendurado no pescoço dela?

    Marco ficou um instante sem achar a frase certa.

    — Lá de onde eu vim… a gente desenha o coração assim pra dizer… — ele apontou com dois dedos, sem encostar — pra dizer que alguém importa.

    Hamita soltou um som baixo, quase uma risada.

    — Ele se importa com você, Lou-reen.

    Lou-reen apertou o cordão entre os dedos, ainda muda, encarando Marco como se quisesse xingar e agradecer ao mesmo tempo.

    Lou-reen fechou a mão no cordão, puxou o pingente pro peito e olhou pra Marco. O rosto tomou o tom do cabelo.

    — Você é um idiota.

    — Eu tô tentando. — Marco respondeu.

    Kalamera, de óculos escuros, virou a cabeça pra Lou-reen e ergueu uma sobrancelha.

    — Isso combina com ela.

    Lou-reen apertou o pingente mais forte e não soube o que fazer com as mãos.

    Marco olhou pra Hamita.

    — Eu… não sabia que você vinha. Não fiz nada pra você.

    Hamita levantou da cadeira e veio sem pedir. Passou o braço por trás dele e puxou contra o peito num abraço que esmagou costela e orgulho ao mesmo tempo.

    Marco ficou duro no primeiro instante. Depois cedeu.

    Hamita falou no ouvido dele, rindo.

    — Você tá me dando o melhor presente que eu podia ganhar.

    Marco tentou respirar e não conseguiu direito.

    — Qual?

    Hamita soltou ele só o bastante pra apontar com o queixo pra Lou-reen.

    — Ver a cara da Lou-reen do tom do cabelo dela. Isso aí vale uma campanha inteira.

    Lou-reen travou, pior ainda.

    — Hamita.

    — O quê? — Hamita abriu os braços. — Ele fez um ritual, trouxe doce, deu vidro, deu coração. Você queria que eu fingisse que não vi?

    Lou-reen olhou pro chão, depois pra árvore. Depois pra Marco. Ela parecia procurar um lugar pra enfiar o rosto e não achar.

    Marco deu um passo e abriu os braços sem pensar. Ficou ali, oferecendo, quieto.

    Lou-reen entrou no abraço com força. Não delicada, não tímida. Forte, como se quisesse prender ele no lugar. A cabeça dela encostou no peito dele. A mão com o pingente ficou presa entre os dois.

    Marco fechou os braços em volta dela e segurou.

    A sala ficou menor. O barulho da fornalha lá embaixo sumiu. O vento do lado de fora ficou distante.

    Hamita mordeu outra rabanada, satisfeita, e apontou pra Kalamera.

    — Você vai usar isso na forja amanhã.

    Kalamera ajustou as lentes com dois dedos e respondeu, simples.

    — Vou.

    Lou-reen não soltou Marco. E Marco não apressou o fim.

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