1º ESPECIAL DE NATAL — PARTE 5 DE 5
Kalamera ficou de frente para a “árvore” com as quatro mãos ocupadas: duas seguravam um fio, outras duas alinhavam um prisma de vidro que pegava a luz da lamparina e devolvia riscos finos na parede.
— Isso fica mesmo pendurado? — Ela girou o prisma um dedo e parou quando a luz cortou o teto.
— Fica. — Marco pegou uma esfera oca, leve demais pra parecer real. — A ideia é que brilhe.
Ela encostou a esfera perto do rosto, avaliando o furo no topo.
— Vocês gostavam de objetos inúteis.
— A gente gostava de ter um dia que não era só sobreviver. — Ele amarrou a esfera com nó simples e prendeu num galho mais baixo. — Uma vez por ano.
Kalamera prendeu outro enfeite, um disco fino que devolveu um risco branco no chão.
— E por que uma árvore?
Marco olhou o galho e pensou no tapete da casa da mãe. Pensou no tubo de plástico barato. Pensou no tripé fino demais.
“Não vai chorar em cima de uma perene, astronauta.”
— Porque era fácil de reconhecer. — Ele pegou o pingente de estrela de vidro. — E porque a gente precisava de um símbolo que coubesse na sala.
Kalamera encarou a estrela como quem encara um erro de engenharia.
— Isso não existe no céu.
— Eu sei. — Marco prendeu a estrela no galho mais alto que alcançou. — Mas existe na cabeça das pessoas. Às vezes isso basta.
Ela seguiu o fio com os olhos.
— E o tal “Pai Noel”?
Marco soltou um riso que morreu rápido, mais vergonha do que graça.
— Um velho que entrega presentes de noite.
Kalamera virou o rosto.
— Como ele entra?
— Pela… — Marco travou. — Pela chaminé, em algumas histórias.
Ela ficou um tempo quieta, processando.
— Vocês tinham um ladrão oficial.
— Era um ladrão autorizado. — Ele deu de ombros. — E não era de verdade. Era… uma brincadeira. Uma desculpa.
— Pra quê?
— Pra dar coisa pros outros sem parecer fraco.
Kalamera inclinou a cabeça, entendendo rápido demais.
— Isso parece Taeris.
Marco pegou mais dois prismas e foi pendurando, alternando tamanhos pra não pesar o galho. A árvore ganhou um brilho estranho, mais técnico do que bonito, e ainda assim bonito.
Kalamera apontou para o chão.
— E os presentes ficam embaixo?
— Ficam.
— E ele deixa tudo ali sem ninguém ver?
Marco olhou para a porta.
— Na minha casa, quem “deixava” era minha mãe. Só que a gente fingia. — Ele arrumou uma caixa pequena de pano no fundo, escondida pelo tronco e pelos galhos baixos. — Era o acordo.
Kalamera agachou, curiosa, mas não tocou.
— Você vai fingir comigo também?
— Vou. — Ele respondeu rápido demais. — Essa parte é obrigatória.
“Você acabou de impor um protocolo social a uma ferreira com quatro braços. Corajoso.”
— Cala a boca.
Kalamera ergueu uma sobrancelha.
— O quê?
Marco apontou o galho.
— Nada. Pega esse disco aqui.
Ela pegou, prendeu com o fio, puxou até firmar. A luz da lamparina atravessou o vidro e jogou um risco azul na parede de pedra, fino, tremendo.
A porta rangeu.
Marco travou por um instante. Kalamera também. Os dois olharam.
Lou-reen entrou primeiro, manto escuro batendo na bota. Hamita veio atrás, com a mesma presença de sempre, como se a torre fosse uma arena e ela tivesse dono do lugar.
Lou-reen parou na metade da sala e ficou olhando a árvore de vidro e resina, o chão com agulhas, o fio pendurado na mão de Kalamera.
— Você me pediu pra passar aqui por isso?
A voz saiu lisa. A cara, fechada. O olhar, atento demais.
Hamita passou por ela e deu a volta na árvore, avaliando o brilho.
— Tá estranho. — Ela apontou com o queixo, divertida. — Mas é bonito. Parece armadilha de luz.
Kalamera soltou um som baixo, satisfeita com a definição.
Marco limpou a garganta e colocou as mãos na frente do corpo, como se estivesse prestes a apresentar um relatório.
— Eu… queria uma noite diferente.
Lou-reen cruzou os braços.
— Diferente de quê?
— Diferente de guerra. De treino. De conserto. — Marco apontou o topo. — É uma tradição de onde eu vim.
Hamita encostou o dedo num prisma e recuou quando a luz se partiu na parede.
— Você inventa coisa demais.
— Eu aprendi com o Império. — Marco rebateu, seco.
Hamita deu uma risada e olhou de lado pra Lou-reen.
— Ele tá respondendo.
Lou-reen não devolveu o sorriso. O olhar dela ficou na árvore, depois no chão, depois no tronco preso por corda.
— E isso serve pra quê?
Marco foi direto, do jeito que ela sempre arrancava dele.
— Serve pra lembrar. Serve pra agradecer. Serve pra fingir que o mundo não vai cair hoje.
Kalamera prendeu mais uma esfera e afastou as mãos, observando o conjunto.
— E o velho ladrão?
Marco olhou pra ela, depois pra Lou-reen.
— Ele é a desculpa pra presentes.
Hamita ergueu a sobrancelha.
— Presentes?
Marco apontou pro chão, embaixo dos galhos.
— Eu deixei alguns ali.
Hamita agachou na hora, sem cerimônia. Pegou a primeira caixa de pano, sentiu o peso e olhou pra Marco.
Lou-reen soltou um som pelo nariz, impaciência pura.
— Isso é perda de tempo.
Ela já tinha virado o corpo pra porta. Marco deu um passo.
— Lou-reen.
Ela não olhou de volta.
— Eu tenho relatório pra ler. Tenho treino amanhã. Tenho um Império inteiro que não para porque você lembrou de uma história.
Marco sentiu a boca secar. A mão foi no pano que cobria a comida, só pra ter algo firme no mundo.
— Eu sei.
Ele não tentou convencer. Não explicou de novo. Só falou o que doeu.
— Se você sair agora, eu vou terminar isso sozinho. E vai ficar… vazio. Igual o resto do dia.
Hamita ergueu as sobrancelhas, surpresa de verdade. Kalamera baixou um pouco o fio, olhando a Lou-reen.
A general ficou imóvel um instante.
A mão dela tocou a maçaneta e não girou.
“Olha ele.” — Nova falou dentro da cabeça dele. “Quase um adulto.”
Lou-reen virou o rosto devagar.
— Você me chamou pra não deixar você se sentir patético?
— Eu te chamei porque eu queria que você estivesse aqui.
Silêncio.
Hamita soltou um som pelo nariz, satisfeita.
— Tá. Agora sim.
Lou-reen largou a maçaneta e voltou dois passos pra dentro, sem encarar ninguém por muito tempo.
— Fala logo o que você armou, Marco.
— Antes… isso.
Ele foi até o canto e trouxe um embrulho limpo, pesado de um jeito bom. O cheiro de canela saiu antes de aparecer comida.
Hamita abriu o pano com as duas mãos e viu a pilha.
— O que é isso?
— Rabanada. — Marco respondeu, simples. — É um doce. De Natal.
Lou-reen olhou a pilha como se fosse um relatório errado. Hamita pegou uma com os dedos, soprou a canela que subiu e mordeu.
A mastigação dela foi lenta. O olhar dela ficou no teto por um instante, calculando. Ela engoliu e apontou a rabanada pra ele.
— Isso aqui devia ser uma arma.
Kalamera pegou uma menor, cheirou primeiro, mordeu com cuidado. O olhar dela virou uma linha fixa no nada, e depois voltou pro prato.
— Isso… é bom.
Lou-reen não pegou.
Marco empurrou o prato um pouco mais perto dela.
— Pega.
— Eu não—
— Pega. — A ordem saiu no mesmo tom que ela usava. Marco se arrependeu no meio da palavra e já ia voltar atrás.
Lou-reen pegou. Mordeu só a ponta. Parou, olhando como se o pão tivesse que responder alguma coisa.
A expressão dela tentou não mudar. Tentou. A tentativa falhou por um detalhe no canto dos olhos.
Hamita viu na hora e abriu um sorriso largo.
— A general gostou.
Lou-reen apertou a rabanada na mão, como se fosse culpa dela.
Marco ficou de pé. Não encostou na árvore, não mexeu nos presentes. Só ficou ali, reto, com o calor da lamparina batendo no rosto.
— Eu queria… agradecer.
As três olharam.
Marco escolheu as palavras com esforço. Não tinha treinamento pra isso.
— Eu cheguei aqui sem entender nada. Eu fiquei cento e quarenta e quatro amanheceres tentando não virar peso. — Ele encarou o chão por um instante e voltou. — Vocês me seguraram em pé. Cada uma do seu jeito.
Hamita levantou a rabanada, como se brindasse.
— Ele tá falando sério.
Lou-reen não tirou os olhos dele.
Kalamera ficou imóvel, as quatro mãos paradas, uma com fio, outra com vidro, duas vazias.
Marco agachou e puxou a primeira caixa de pano de baixo da árvore. Empurrou pra Kalamera.
— Pra você.
Kalamera pegou sem pressa. Abriu o pano.
O metal apareceu primeiro: uma armação leve, feita na forja. Sem ponta. Sem rebarba. Ajuste simples. E duas peças escuras encaixadas, vidro domado, tom fechado.
Kalamera segurou na altura do rosto, como se fosse uma peça proibida.
— Isso…
— Proteção. — Marco falou. — Pra clarão do fogo não te deixar cega no fim do dia. E pra quando você não quiser que ninguém veja seu olhar.
Hamita assobiou baixo.
— Tá, isso é bom.
Kalamera colocou devagar. Ajustou com duas mãos, firme. As lentes escureceram o mundo e deixaram o brilho da árvore mais controlado.
Ela virou o rosto pra Marco.
— Eu consigo ver… mas tá escuro.
A frase saiu baixa. Limpa. Marco assentiu.
— Era a ideia.
Lou-reen deu um passo, sem perceber. A mão dela foi ao próprio peito e voltou, incerta. Marco puxou a segunda caixa, menor, embrulho de pano bem fechado. Colocou na mão de Lou-reen.
— Pra você.
Lou-reen olhou o pano como se fosse uma lâmina.
— Eu não pedi nada.
— Eu sei.
Ela abriu.
Um cordão fino apareceu, metal escuro e fecho simples. No fim dele, um coração azul bem escuro, liso, pesado na medida certa, cheio de pontos brilhantes presos dentro da pedra, como um céu esmagado.
Lou-reen parou.
Hamita inclinou o rosto, curiosa de verdade.
— Que pedra é essa?
Marco assentiu, sem tirar os olhos do pingente.
— Eu chamo de pedra-estrela. Eu vi uma parecida lá… de onde eu vim.
— E ainda botou nesse formato aí. — Hamita mostrou os dentes, divertida. — O que é isso? Uma folha torta?
Marco olhou pro pingente na mão da Lou-reen. Engoliu seco.
— É um coração.
Hamita franziu a testa, olhando de novo, como se a resposta fosse pior que a pergunta.
— Coração… não é dentro do peito?
— É.
— Então por que tá para ser pendurado no pescoço dela?
Marco ficou um instante sem achar a frase certa.
— Lá de onde eu vim… a gente desenha o coração assim pra dizer… — ele apontou com dois dedos, sem encostar — pra dizer que alguém importa.
Hamita soltou um som baixo, quase uma risada.
— Ele se importa com você, Lou-reen.
Lou-reen apertou o cordão entre os dedos, ainda muda, encarando Marco como se quisesse xingar e agradecer ao mesmo tempo.
Lou-reen fechou a mão no cordão, puxou o pingente pro peito e olhou pra Marco. O rosto tomou o tom do cabelo.
— Você é um idiota.
— Eu tô tentando. — Marco respondeu.
Kalamera, de óculos escuros, virou a cabeça pra Lou-reen e ergueu uma sobrancelha.
— Isso combina com ela.
Lou-reen apertou o pingente mais forte e não soube o que fazer com as mãos.
Marco olhou pra Hamita.
— Eu… não sabia que você vinha. Não fiz nada pra você.
Hamita levantou da cadeira e veio sem pedir. Passou o braço por trás dele e puxou contra o peito num abraço que esmagou costela e orgulho ao mesmo tempo.
Marco ficou duro no primeiro instante. Depois cedeu.
Hamita falou no ouvido dele, rindo.
— Você tá me dando o melhor presente que eu podia ganhar.
Marco tentou respirar e não conseguiu direito.
— Qual?
Hamita soltou ele só o bastante pra apontar com o queixo pra Lou-reen.
— Ver a cara da Lou-reen do tom do cabelo dela. Isso aí vale uma campanha inteira.
Lou-reen travou, pior ainda.
— Hamita.
— O quê? — Hamita abriu os braços. — Ele fez um ritual, trouxe doce, deu vidro, deu coração. Você queria que eu fingisse que não vi?
Lou-reen olhou pro chão, depois pra árvore. Depois pra Marco. Ela parecia procurar um lugar pra enfiar o rosto e não achar.
Marco deu um passo e abriu os braços sem pensar. Ficou ali, oferecendo, quieto.
Lou-reen entrou no abraço com força. Não delicada, não tímida. Forte, como se quisesse prender ele no lugar. A cabeça dela encostou no peito dele. A mão com o pingente ficou presa entre os dois.
Marco fechou os braços em volta dela e segurou.
A sala ficou menor. O barulho da fornalha lá embaixo sumiu. O vento do lado de fora ficou distante.
Hamita mordeu outra rabanada, satisfeita, e apontou pra Kalamera.
— Você vai usar isso na forja amanhã.
Kalamera ajustou as lentes com dois dedos e respondeu, simples.
— Vou.
Lou-reen não soltou Marco. E Marco não apressou o fim.

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