Capítulo 008 — Você olha para o céu.
Sentado dentro da carruagem, Marco sentia cada solavanco da estrada de terra enquanto o veículo avançava. O balanço constante e o ranger das rodas eram um lembrete de que ele não estava mais cercado por tecnologia avançada—não havia amortecedores inteligentes, nem sistemas de estabilização. Apenas madeira, metal bruto e o ritmo cadenciado dos cavalos.
Ele girou a esfera de selenita entre os dedos, observando suas veias cristalinas refletirem a luz do sol. Luminor a havia lhe dado, mas não explicara exatamente como funcionava.
— Nova, o que exatamente é isso?
A voz dela ecoou diretamente em sua mente, animada como sempre:
“Ótima pergunta, Marco! A esfera de selenita é um dispositivo de comunicação que utiliza essência primordial para criar um vínculo energético entre duas esferas sintonizadas. Ao adicionar essência a ela, a esfera emite um pulso de energia que se propaga e se conecta à sua contraparte, permitindo a transmissão de som. Pense nisso como um rádio primitivo, mas com magia!”
Marco arqueou uma sobrancelha.
— Então são basicamente ondas eletromagnéticas, só que em vez de eletricidade, usam essência?
“Perfeito! Se eu tivesse um sistema de pontuação, você ganharia um prêmio por essa dedução! A essência primordial vibra em uma frequência específica, que pode ser ajustada para se conectar a outra esfera previamente sintonizada. Mas, atenção: a qualidade da comunicação pode variar! Interferências ambientais, campos de essência instáveis ou até a distância podem enfraquecer o sinal!”
Marco girou a esfera mais uma vez, pensativo.
— E como eu uso?
“Simples! Basta infundir uma pequena quantidade de essência e falar. A esfera transmitirá suas palavras para a outra, onde quer que esteja. Mas, aviso importante: se você exagerar na energia, pode acabar criando um pulso forte demais e causar distorções na mensagem!”
Ele riu, imaginando se era possível gritar tão alto através da essência que estouraria os tímpanos de Luminor do outro lado.
— Bom saber. Pelo menos, se eu precisar falar com ele, já sei como fazer.
Marco ficou em silêncio por um momento, olhando para a esfera de selenita em suas mãos. Se aquelas “ondas de essência” funcionavam como sinais de rádio, uma pergunta lhe veio à mente.
— Nova, você conseguiria interceptar essas transmissões? Quero dizer… captar sinais de outras esferas ao redor?
A resposta veio quase instantaneamente, carregada do entusiasmo usual de Nova.
“Ahá! Finalmente uma pergunta divertida! Sim, Marco, eu consigo. E para sua informação, estamos cercados por elas. Há diversas esferas de selenita por perto, e algumas estão constantemente enviando sinais.”
Marco se endireitou, interessado.
— Sério? Então você pode ouvir conversas de outras pessoas?
“Tecnicamente, sim! Mas, calma lá, espião espacial, eu não faço isso sem permissão. Pelo menos, não ainda.”
Marco suspirou, cruzando os braços.
— E como você consegue fazer isso?
Nova adotou um tom quase orgulhoso.
“Simples! Enquanto uma esfera comum apenas recebe e transmite pulsos de essência dentro de sua frequência sintonizada, eu sou um sistema muito mais avançado! Meus circuitos quânticos permitem que eu analise e decodifique padrões energéticos complexos, e, graças ao Cetro, eu consigo interagir diretamente com essas ondas de essência.”
Marco franziu o cenho.
— Então, sem o Cetro, você não conseguiria?
“Não da mesma forma. Meu hardware sozinho não foi feito para interpretar essência primordial. Mas o Cetro… ah, ele é especial! Ele me dá acesso direto às estruturas energéticas desse mundo. É como se eu tivesse uma antena mágica acoplada à minha tecnologia. Um híbrido perfeito entre ciência e magia!”
Marco encarou a esfera de selenita mais uma vez, sentindo o peso daquela revelação.
— Isso significa que podemos ouvir qualquer coisa que esteja acontecendo por perto…
“Ou até interagir, se quisermos. Mas só se for necessário, viu? Eu ainda gosto de pensar que sou uma IA ética. Pelo menos 72% do tempo.”
Marco soltou uma risada nasal, balançando a cabeça.
— Isso ainda me assusta um pouco.
“Se serve de consolo, pelo menos você tem uma IA superinteligente para te ajudar. Estatisticamente, isso aumenta em 83% suas chances de sobrevivência!”
Marco revirou os olhos e guardou a esfera, tentando ignorar a sensação de que, com Nova e o Cetro, ele estava se tornando algo muito além de um simples astronauta perdido.
***
A noite se espalhava sobre o acampamento, e o calor das fogueiras contrastava com o frio que começava a se intensificar. Os soldados estavam relaxados, conversando, rindo e resolvendo problemas do dia a dia. Perto de uma carroça, um grupo tentava consertar uma roda quebrada.
— O truque é bater com jeito. — Um soldado veterano ergueu um martelo, avaliando a roda. — Nem muito forte, nem muito fraco.
Ele golpeou uma vez. Nada. Mais uma. Ainda nada.
— Bom… talvez seja melhor chamar alguém que entenda disso — concluiu, enquanto os outros caíam na risada.
Marco assistiu à cena de longe, encostado em uma árvore. Era estranho ver aquele lado mais descontraído do exército, quase familiar. Mas, depois de um tempo, decidiu se afastar um pouco.
Caminhou até uma colina próxima, onde o silêncio era maior e o céu se abria completamente acima dele. As estrelas brilhavam nítidas, livres da luz das fogueiras. Ele se sentou sobre a grama fria e tirou um pedaço de couro improvisado e um pedaço de carvão. Começou a traçar pontos e linhas, tentando registrar as constelações que conseguia identificar.
Os passos leves de Lou-reen cortaram o silêncio. Marco olhou de relance e a viu se aproximando, os braços cruzados contra o frio.
— Fugindo da confusão?
— Só queria ver as estrelas. — Ele apontou para cima.
Ela olhou para o céu, a expressão neutra, e depois voltou a encará-lo.
— Você faz isso sempre?
— Sempre que posso — Marco respondeu, voltando ao desenho.
Lou-reen ficou em silêncio por um momento, observando-o.
— Nunca vi ninguém prestar tanta atenção no céu.
Marco sorriu de leve.
— No meu mundo, olhar para as estrelas sempre foi um jeito de saber onde estamos.
Ela franziu levemente a testa.
— E aqui?
Ele traçou mais alguns pontos antes de responder:
— Aqui… acho que é um jeito de lembrar quem eu sou.
Lou-reen desviou o olhar para o céu mais uma vez, como se tentasse enxergar o que ele via.
— Nunca olhei para as estrelas desse jeito. Para mim, sempre estiveram só… ali.
Marco sorriu, notando algo raro nela: curiosidade.
— Talvez você só nunca tenha parado para olhar de verdade.
Ela o observou por um instante, então se sentou ao lado dele, sem dizer mais nada. O vento soprava leve, e o acampamento parecia distante dali. No silêncio, apenas o brilho das estrelas e o som tranquilo da noite os envolvia.
Lou-reen permaneceu ao lado dele, os olhos ainda fixos no céu. Marco percebeu que ela realmente tentava enxergar algo além do que sempre viu. Para ela, talvez as estrelas fossem apenas pontos de luz sem significado, mas agora, por algum motivo, parecia interessada.
— No que está pensando? — ele perguntou, sem tirar os olhos do couro onde rabiscava constelações.
Ela demorou um instante para responder.
— Em você.
Marco parou de desenhar e olhou para ela, surpreso.
— Eu sou um ótimo assunto, mas o que exatamente sobre mim?
Lou-reen desviou o olhar para ele, avaliando-o com atenção.
— Você é diferente de qualquer pessoa que eu já conheci.
Ele soltou um riso curto.
— Isso é porque você só conhece soldados.
Ela inclinou levemente a cabeça.
— Sim. Todos os homens que conheci desde criança tinham um único propósito: lutar pelo Império. Seguir ordens, obedecer a hierarquia, melhorar suas habilidades de combate. Mas você…
Ela hesitou por um momento, como se procurasse as palavras certas.
— Você olha para o céu.
Marco ergueu uma sobrancelha.
— Isso me torna diferente?
Lou-reen sorriu de canto.
— Isso faz de você um mistério.
O silêncio se prolongou entre eles, mas não era desconfortável. Marco percebeu que, para ela, ele era algo inesperado. Um homem que não via o mundo como um campo de batalha, que não vivia sob ordens rígidas.
Mas para ele, Lou-reen era algo igualmente surpreendente. Não apenas pelo seu poder inacreditável— uma guerreira que lutava como um personagem de anime, derrubando inimigos que exigiriam um exército inteiro — mas pela mulher que existia além disso.
Seus olhos brilhavam sob a luz das estrelas, e sua presença carregava uma força que não precisava de palavras para ser sentida. Ela era linda. Não só no sentido físico, mas na forma como existia no mundo: firme, determinada, inabalável.
— Você acha que algum dia vai deixar de me ver como um mistério?
Lou-reen o encarou e sorriu.
— Acho que prefiro continuar tentando te decifrar.
O vento soprou, frio, mas Marco quase não sentiu. Algo naquele momento fez o tempo desacelerar enquanto ele sorria de volta para ela.
Lou-reen já estava em movimento antes mesmo que Marco pudesse processar o ataque. Com um único giro de sua espada, ela rebateu a criatura para longe, lançando-a contra o chão com uma força casual, como se estivesse apenas afastando um inconveniente. O lobo rolou sobre a terra e ergueu-se de imediato, dentes à mostra e olhos brilhando no escuro.
Marco tropeçou para trás, respirando rápido.
— O que foi isso?! — Ele conseguiu dizer.
Lou-reen estreitou os olhos para a criatura, sua expressão se tornando sombria.
— Um Lobo-da-Névoa.
Antes que qualquer um deles pudesse se mover, um som baixo e ameaçador preencheu o ar. Olhos começaram a surgir na escuridão, primeiro dois, depois quatro… oito… doze.
Uma matilha inteira.
Lou-reen ficou tensa. Marco percebeu que não era apenas cautela—havia algo de errado.
— Eles não costumam sair da floresta — ela murmurou. — Nunca atacaram uma caravana antes.
— Por que eles estão nos cercando?
Lou-reen deu um passo à frente.
— Fiquem onde estão — ela ordenou, a voz firme, tentando manter o controle da situação.
De repente, mais vultos começaram a surgir ao redor deles. Não apenas na colina, mas abaixo também. O som de ferro contra carne e gritos abafados se espalhou pelo acampamento. O ataque não era só ali—os lobos estavam por toda parte.
Marco olhou ao redor, o coração disparado. Ele podia ver as tochas tremeluzindo conforme os soldados se moviam, gritos de alerta sendo lançados. Algo estava muito errado.
Lou-reen ergueu a lâmina em posição defensiva.
Outro lobo avançou. Lou-reen girou a lâmina e o cortou antes que chegasse perto demais. O sangue escuro espirrou na grama. O animal soltou um uivo baixo antes de cair imóvel.
Um dos lobos avançou rapidamente, dentes expostos, direto para Marco. Ele não teve tempo de reagir. Seu corpo estava paralisado de medo. Mas, antes que o lobo pudesse alcançá-lo, Lou-reen se moveu em um piscar de olhos, bloqueando o ataque com um golpe rápido e certeiro, fazendo o lobo recuar com um grunhido irritado. Contudo, logo outro lobo surgiu, e outro, todos se focando apenas em Marco, como se algo os atraísse para ele.
Lou-reen franziu o cenho.
— Isso não é normal — ela murmurou.
Lou-reen se posicionou entre Marco e os lobos, sua espada erguida, pronta para qualquer ataque. Cada movimento dela era preciso e calculado, mas algo estranho aconteceu: os lobos, em vez de se concentrarem nela, começaram a ignorá-la completamente. Seus olhos, selvagens e ferozes, estavam fixos em Marco.
— Eles estão caçando você. Não se mova — a voz de Lou-reen foi firme, cortante, como uma ordem indiscutível. Marco engoliu em seco, sentindo o peso da situação, mas permaneceu imóvel, seus olhos fixos nos lobos que o cercavam.
Os lobos pareciam completamente obcecados por Marco.
Um dos lobos saltou diretamente em Marco, mas Lou-reen reagiu sem hesitação. Com um movimento ágil, sua espada cortou o ar, desviando o ataque e obrigando o animal a recuar. No entanto, isso não os dissuadiu. A cada golpe repelido, os lobos pareciam cada vez mais obcecados por Marco, ignorando completamente a presença da general. Eles estavam em um frenesi incontrolável, como se uma força invisível os atraísse para ele.
Enquanto sua mão direita manobrava a espada com precisão, a esquerda permanecia ligeiramente erguida, a palma voltada para Marco. A cada movimento, a cada passo que dava, Lou-reen desenhava no ar traços invisíveis de essência, inscrevendo silenciosamente runas ao redor dele. Marco, atordoado pelo ataque, não percebeu nada disso. Tudo o que via era Lou-reen repelindo os lobos com sua habilidade impecável.
Impressionante. Marco pensou, o medo ainda prendendo seu peito. Seu corpo estava imóvel, o pensamento emaranhado. Ele não sabia o que fazer, não sabia como reagir. Mas não ousava se mover, não queria ser um estorvo.
“Manipulação de essência em andamento.” Nova interrompeu seus pensamentos, sua voz neutra. “Probabilidade de sobrevivência: 98,3%. Probabilidade de sobrevivência sem a presença de Lou-reen: melhor nem dizer.”
Enquanto Lou-reen seguia, seus movimentos eram como um trabalho meticuloso de escultura, criando a proteção sem sequer olhar para trás.
Dos arredores escuros da floresta, passos lentos e pesados quebraram o silêncio momentâneo entre um ataque e outro. Os lobos, que antes investiam contra Marco sem hesitação, começaram a se afastar, abrindo caminho para uma figura encapuzada que surgiu da névoa rasteira.
O homem parou a poucos metros de Lou-reen e Marco, um sorriso divertido se formando sob a sombra do capuz.
— Bem, era exatamente o que eu esperava de um general — disse ele, cruzando os braços. — Meros lobos jamais seriam o suficiente.
Lou-reen não abaixou a espada, seus olhos frios analisando cada detalhe do estranho.
— Você os controla. Quem é você?
— Ah, onde estão meus modos? Pode me chamar de Domador. E eu estou aqui por negócios. Um preço muito, muito alto foi colocado pela cabeça desse garoto. — Ele apontou para Marco com um gesto despreocupado. — E pelo cetro que ele carrega.
Lou-reen estreitou os olhos, avançando um passo.
— Um mercenário, então.
— Exatamente. E um mercenário de palavra. Me pagaram para levar o garoto. E eu pretendo cumprir.
Ela girou a lâmina levemente, assumindo posição de ataque.
— Pode tentar.
O Domador soltou um riso baixo.
— Eu imaginei que diria isso. Por isso trouxe algo especial… Algo à sua altura.
Ele estalou os dedos. No mesmo instante, o chão tremeu sob os pés de Marco e Lou-reen. O ar esquentou de repente, uma onda de calor ondulando pela floresta.
Dos arbustos queimados, uma criatura emergiu. Passos pesados rachavam o solo enquanto chamas dançavam ao redor de seu corpo. Parecia um leão, mas sua forma era muito mais feroz. Sua juba era puro fogo vivo, seu corpo um misto de calor sólido e energia bruta.
Nova, que até então calculava incessantemente a taxa de sucesso de Lou-reen contra os lobos, interrompeu-se abruptamente.
“Alerta vermelho! A temperatura subiu 63%! A criatura à frente é composta de um material termorresistente e exala calor superior a 1.200 graus! A chance de sobrevivência caiu para valores insignificantes!”
Marco mal conseguia respirar diante do calor sufocante.
Lou-reen, por sua vez, apenas apertou o cabo da espada, seus olhos fixos na criatura diante dela.
— Isso é…
— Um Leão-de-Qsia… — O Domador sorriu. — Pois é. Diziam que eles eram apenas um mito, mas… Bem, eu sou um homem cheio de surpresas.
O leão rugiu, e o som foi como um trovão rasgando a noite.
O mito vivo.
Sua pelagem de fogo iluminava o campo, com o corpo em chamas constantemente se moldando e mudando, em uma dança incandescente. O leão, com sua aura de calor abrasador, pairava sobre o chão com uma majestade letal. Sua presença era um presságio de destruição, uma força primordial que se aproximava do grupo de Marco e Lou-reen.
O leão rugiu com uma força tão tremenda que o som reverberou por toda a área. As chamas que formavam sua pelagem se intensificaram, criando uma onda de calor que fez até o ar ao redor de Marco ondular. O chão abaixo do leão se estilhaçou enquanto ele se aproximava lentamente, as chamas aumentando à medida que seu passo era dado.
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