Cidade de Yhe-for, Taeris

    O banheiro ficava no segundo andar da casa de Lou-reen, um espaço surpreendentemente amplo para uma construção medieval. As paredes de pedra sustentavam vigas de madeira escura, e o chão era revestido com tábuas polidas.

    Marco, com o cetro flutuando ao seu lado, encarava o balde de água à sua frente, apoiado sobre um suporte de ferro. Uma runa gravada na lateral esperando ser ativada. Marco suspirou e estalou os dedos, tentando se concentrar.

    — Certo… só preciso imbuir essência… — murmurou para si mesmo.

    Fechou os olhos e estendeu a mão sobre a runa. Sentiu a energia fluir de seu corpo, ainda desajeitada, mas suficiente para ativar a magia. O brilho na runa aumentou ligeiramente e, segundos depois, a água começou a esquentar.

    Marco tocou a superfície e sorriu ao perceber que, mesmo que mal e porcamente, havia conseguido deixá-la morna. Melhor do que o banho congelante de uma semana atrás.

    — Progresso é progresso…

    Pegou um pano áspero e começou a se limpar. O banheiro, embora funcional, ainda o deixava desconfortável. Não havia encanamento ou torneiras como em seu mundo, e tudo ali era um lembrete constante de que estava muito longe de casa.

    Mas pelo menos, hoje, não precisaria se lavar com água gelada.

    ***

    Marco desceu as escadas, ainda secando o cabelo com um pano áspero. Chegando ao térreo, encontrou Lou-reen ao lado da porta, alongando os braços. Vestia roupas leves de treino, uma camisa sem mangas e calças ajustadas que lhe davam mais mobilidade. Seus músculos definidos se moviam suavemente enquanto ela se aquecia, e Marco percebeu que, mesmo sem a armadura, a presença dela ainda era imponente.

    — Finalmente — disse ela, sem interromper os exercícios. — Vamos correr.

    Marco ergueu uma sobrancelha.

    — Isso quer dizer que você vai pegar leve comigo hoje?

    Lou-reen sorriu de canto, divertida.

    — Você que vai me dizer.

    Sem mais palavras, ela abriu a porta e saiu, começando a corrida sem hesitação. Marco seguiu logo atrás.

    As ruas de Yhe-for ainda estavam silenciosas àquela hora da manhã, com apenas alguns poucos soldados e trabalhadores despertos. Oficiais e soldados que os viam imediatamente se enfileiravam e prestavam continência à general. Os poucos civis acordados a cumprimentavam com respeito e até um certo entusiasmo.

    Marco corria ao lado dela, sentindo o ar frio da manhã contra o rosto. Seu corpo já estava mais acostumado à rotina exaustiva de Taeris, mas ainda não no nível de um soldado. O treinamento de astronauta o preparara para resistir à baixa gravidade e ao estresse físico, mas não para a brutalidade de um regime militar medieval. Ele conseguia acompanhar Lou-reen, mas sentia o esforço em cada passo.

    Ela o observou de canto de olho, avaliando sua resistência.

    — Parece que seu corpo já começou a entender o que é viver como um soldado — comentou.

    Marco sorriu, ofegante.

    — Me pergunto de quem é a culpa.

    Lou-reen riu baixinho e, sem aviso, aumentou ainda mais o ritmo.

    ***

    Marco parou ao lado do píer, observando a paisagem ao redor. O mar se estendia em direção ao horizonte, e, mais ao longe, um penhasco erguia-se como uma muralha natural. Ele se virou para Lou-reen, que parecia nem ter sentido a corrida.

    — Quão rápido você consegue correr? — perguntou, ainda recuperando o fôlego.

    Ela cruzou os braços, o olhar carregado de confiança.

    — Muito.

    Marco apontou para o penhasco distante.

    — Até lá?

    Lou-reen ergueu uma sobrancelha.

    — Fácil.

    — E voltar?

    Ela sorriu.

    — Antes que você pisque.

    Marco riu, balançando a cabeça.

    — Duvido.

    Lou-reen não respondeu de imediato. Ela apenas se movimentou sutilmente, como se estivesse mudando o peso do corpo de um pé para o outro, preparando-se. Então desapareceu tão rapidamente que pareceu que nunca estivera ali. Marco piscou instintivamente e ela já havia voltado.

    Sem aviso, ela estendeu a mão e segurou o braço de Marco.

    No instante seguinte, uma onda de choque os envolveu, e um forte deslocamento de ar sacudiu o píer.

    — Já fui e voltei — disse ela, o tom casual, como se não tivesse acabado de cruzar a distância em um instante.

    — Isso… isso é ridículo.

    Marco piscou novamente, desta vez de incredulidade, tentando processar o que havia acabado de acontecer, mas antes que pudesse reagir, a voz de Nova ressoou em sua mente, carregada de um raro tom de surpresa.

    “Analisando… Distância percorrida: 6 quilômetros. Tempo estimado: 2.79 segundos. Velocidade média: 2017.64 metros por segundo.”

    Houve uma pausa curta, como se ela estivesse recalibrando os números, e então completou, com um tom ainda mais impressionado:

    “Isso equivale a Mach 5.88.”

    Você tá dizendo que ela foi e voltou do penhasco… a quase seis vezes a velocidade do som?!

    “Correto! Se eu tivesse um queixo, ele estaria no chão agora”.

    ***

    Assim que Marco e Lou-reen retornaram da corrida, a casa de pedra escura já não estava vazia. Antes mesmo de alcançarem a porta, viram duas figuras esperando ao lado da entrada.

    A primeira era Faey Tyrson, a séria tenente. De braços cruzados e postura rígida, ela mantinha o olhar fixo em um relatório, ignorando deliberadamente a presença da segunda mulher.

    Ao seu lado estava Venia Kalkalyn, a secretária de Lou-reen. Diferente da tenente, Venia parecia deslocada. Com as mãos unidas em frente ao corpo, ela baixava a cabeça de tempos em tempos, como se quisesse desaparecer ali mesmo.

    — General. — Faey saudou, sem desviar os olhos do documento.

    — Bom dia, general! — Venia disse em um pequeno sobressalto, sua voz baixa e hesitante.

    Lou-reen não parou. Apenas abriu a porta e fez um gesto breve com a cabeça para que entrassem.

    Todos seguiram para a cozinha, onde Nerys, um soldado de Taeris, já os esperava. Ele era um homem alto e robusto, com cabelo raspado e uniforme impecável. Sua função era auxiliar Lou-reen na manutenção da casa, o que incluía preparar as refeições.

    Assim que o grupo entrou, Nerys fez uma contingência contida antes de pousar os pratos sobre a mesa.

    — Bom dia, general. Tenente. Senhorita Venia. Marco.

    — Bom dia, Nerys. — Lou-reen respondeu, pegando um dos pratos e estendendo-o para Marco antes de se sentar.

    Todos tomaram seus lugares à mesa, e Marco olhou para a comida: carne seca, pão rústico e mingau de aveia com castanhas. Uma refeição robusta e prática, exatamente como se esperava de um café da manhã militar.

    Ele suspirou. Não era nada que parecesse apetitoso, mas, depois de meses com comida de astronauta, sabia que não podia reclamar.

    “Total ingerido: aproximadamente 1.200 calorias. Percentual adequado para reposição pós-exercício”.

    A voz telepática de Nova ressoou antes mesmo da primeira mordida.

    Marco revirou os olhos, pegou os talheres e começou a comer. Discutir com uma IA era inútil.

    Enquanto mastigava o pão seco, Venia pigarreou baixinho e ajeitou os papéis em suas mãos.

    — General, a agenda de hoje. — Sua voz era suave, mas profissional. — Pela manhã, está programado o treino do senhor Marco.

    Lou-reen assentiu sem desviar os olhos da refeição.

    — No período da tarde, há uma reunião com o coronel Lazlyre Yinvalor para discutir as operações nas fronteiras. — Venia continuou, os olhos correndo rapidamente pelas anotações. — E, logo após, a senhora tem uma visita à prisão para interrogar os bandidos capturados em Sadra.

    Ao ouvir isso, Faey ergueu os olhos do relatório e lançou um olhar atento para Lou-reen.

    — Vai interrogar pessoalmente?

    — Sim.

    Marco percebeu a troca de olhares entre as duas. Faey parecia aprovar a decisão, mas também ponderava sobre algo.

    — Quer que eu acompanhe?

    — Não. Isso eu resolvo sozinha.

    Marco abaixou o pão lentamente. Interrogatório? Ele ainda não sabia exatamente como Taeris lidava com criminosos, mas o tom na voz de Lou-reen não deixava dúvidas: aqueles bandidos iriam falar, quer quisessem, quer não.

    O silêncio pairou sobre a mesa por alguns instantes. Foi então que Venia respirou fundo, apertou os dedos contra o colo e, sem coragem de olhar para Marco, perguntou:

    — F-foi… foi você quem… matou Clyve?

    A mão de Marco parou no meio do caminho até o prato. Ele olhou para Venia, que tremia levemente, e então assentiu devagar.

    — Sim.

    Venia encolheu os ombros, desviando o olhar. Marco não sabia se era medo, surpresa ou algo mais profundo.

    Lou-reen apoiou os cotovelos na mesa e olhou diretamente para Venia.

    — Quando éramos crianças em Aethra, Clyve vivia te incomodando, certo?

    Venia ergueu os olhos, surpresa com a menção ao passado.

    — E-ele… — Ela hesitou. — Sim.

    Lou-reen assentiu.

    — Você sabe melhor do que ninguém que ele sempre foi cruel. Mas Marco não o matou por vingança.

    Venia abaixou a cabeça novamente, sem dizer nada.

    O silêncio retornou à mesa. Desta vez, pesado.

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