Capítulo 023 — Taeris não é lar. É alvo.
— Manipulação de Essência: Acelerar.
A essência fluiu pelo corpo de Marco como um raio e, em um instante, ele avançou, a lâmina cortando o ar.
Faey mal teve tempo de reagir, mas sua experiência falou mais alto. Seu braço se moveu instintivamente, bloqueando o golpe com firmeza. O choque reverberou pelo metal e, antes que Marco pudesse continuar, ela girou a espada e contra-atacou.
Ele mal conseguiu desviar.
Os dois se engajaram em um duelo feroz, lâminas se chocando em alta velocidade. Marco pressionava com sua força recém-descoberta, cada golpe mais rápido que o anterior, mas Faey permanecia inabalável. Seu olhar analítico captava cada abertura, cada hesitação.
Lou-reen e Venia assistiam em silêncio. A general mantinha os braços cruzados, observando com atenção cada movimento.
— Ele está acompanhando o ritmo dela — comentou Venia, surpresa.
— Mais do que isso — murmurou Lou-reen. — Ele está forçando Faey a levá-lo a sério.
Marco avançou novamente, girando a lâmina em um corte lateral. Faey desviou com um passo ágil, girou o pulso e, em um movimento fluido, desarmou Marco.
A espada dele girou no ar antes de cravar-se no chão com um som seco.
Ofegante, Marco encarou a lâmina caída e depois Faey, que lhe lançou um olhar satisfeito.
— Nada mal. — disse ela.
Lou-reen interveio.
— Chega por hoje.
Lou-reen caminhou até ele e cruzou os braços.
— Você ainda está longe do nível dela, mas está fazendo um progresso impressionante.
Faey relaxou a postura, rodando a própria lâmina com destreza antes de guardá-la. Seu olhar avaliativo ainda recaía sobre Marco, como se estivesse medindo seu desempenho.
— Você tem uma boa base, — disse ela — mas precisa aprender a manter o controle da sua velocidade. Só ser rápido não basta se seus movimentos são previsíveis.
Marco assentiu, absorvendo o conselho.
— Vou trabalhar nisso.
— Trabalhe mesmo — respondeu Faey com um breve sorriso
Marco assentiu em silêncio, ainda recuperando o fôlego.
Ele sentia orgulho — isso era inegável. Já não era mais o homem que fora derrubado por Elucydor com meia dúzia de golpes. Agora conseguia acompanhar Faey, ao menos por alguns minutos. Isso significava alguma coisa.
Mas mesmo assim, lá no fundo, a dúvida mordia. A respiração ainda entrecortada, o suor escorrendo pelas têmporas, os músculos tremendo de esforço… e ela, Faey, mal parecia ter se aquecido.
Oficial de combate, tenente, criada para isso.
Ele, por outro lado…
— Tá tudo bem — murmurou para si mesmo. — Eu sou um cientista, um astronauta.
“E eu sou uma planta ornamental. Vamos continuar fingindo”, comentou Nova, na mente dele. Pausa breve. “Galileu usava luneta, você usa hematomas, cada um com sua metodologia.”
Marco soltou um riso seco, ainda ofegante. Pegou a espada caída, limpou a lâmina com um pano escuro e a embainhou com um suspiro longo. Tudo aquilo estava começando a se tornar familiar, estranhamente confortável.
Lou-reen, ainda de braços cruzados, soltou um leve comentário:
— Isso foi divertido, não foi?
Marco ergueu o olhar. Ainda ofegante, sorriu de canto.
— Foi, mais do que eu esperava.
Lou-reen assentiu com um canto da boca.
— É isso que combate faz com a gente. O sangue corre mais rápido, o corpo responde no limite e… por um momento tudo faz sentido.
Era sempre assim com Lou-reen. As palavras vinham simples, secas, mas carregadas de algo mais — um senso de urgência, de precisão. Cada treino com ela parecia uma missão. Errar custava caro, mesmo num ambiente controlado, e, paradoxalmente, isso o libertava. O corpo solto, a mente limpa. Era como correr sem destino, pular sem medir — algo que nenhuma simulação, nenhum gráfico, podia oferecer.
Com Maera, era outro mundo. As conversas fluíam sem direção fixa, uma pergunta levava a uma hipótese, que virava uma risada, que terminava em mais uma noite sem dormir, cercados de cálculos e anotações. O céu era exato, mas exigia paciência. Ficar, esperar, observar. Um exercício de constância.
Estava tudo bem em errar com Maera, tudo bem em não saber.
Com Lou-reen, não saber era falha, e falha precisava ser corrigida.
Mesmo assim, ele gostava dos dois mundos.
Gostava da ideia de correr e da ideia de pensar.
Gostava da espada na mão… e do telescópio no alto da torre.
Difícil seria o dia em que precisasse escolher entre eles.
Marco ergueu o olhar para o céu. O sol já estava quase a pino, projetando sombras curtas no chão de pedra.
— Preciso ir — disse, limpando o suor do rosto com a manga. — Hora de medir a elevação no gnomon e revisar algumas anotações.
Lou-reen acompanhou sua saída com o olhar, os braços ainda cruzados. Seu rosto estava impassível, mas seus dedos tamborilavam contra o próprio cotovelo.
Faey arqueou uma sobrancelha ao perceber o silêncio incomum da general, mas não comentou nada.
Venia, por outro lado, notou o brilho incômodo nos olhos dourados de Lou-reen e se preparou. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, uma explosão de chamas consumiu mais uma árvore no pátio.
Venia suspirou, levando a mão ao rosto.
— Oitava…
Lou-reen virou-se bruscamente e começou a caminhar para longe, sem dizer uma palavra.
Faey e Venia trocaram um olhar antes de irem atrás dela.
***
O pátio lateral do quartel estava vazio. Silencioso, salvo pelo som abafado do vento raspando nas paredes.
Marco ajustou a base de pedra do gnomon e conferiu o alinhamento. O sol a pino projetava uma sombra curta, quase imperceptível. Ele esperou os minutos certos, depois mediu.
— 72,80° — murmurou, rabiscando o valor no caderno preso à lateral da perna. — Elevação máxima.
Sentou-se na beira da mureta baixa, limpando o suor da testa com a manga já úmida. Fechou os olhos por um instante, respirou fundo.
— Me explica uma coisa, Nova. — A voz saiu mais baixa, exausta. — A que ponto exatamente eu achei que seria boa ideia fazer tudo isso ao mesmo tempo?
“Você está tentando sobreviver, documentar um planeta alienígena, construir um observatório astronômico no meio de um império militar e entender um cetro ancestral com uma consciência instável. Parece bem razoável.”
Marco soltou um riso seco.
— Eu perguntei o por quê, não o quê.
“Ah, nesse caso, não faço ideia.” Pausa. Depois, mais séria: “Você quer voltar pra casa ou transformar Taeris numa casa?”
Marco encarou o céu, olhos semicerrados por causa da luz.
— É isso, né? — murmurou. — Cada medição, cada lente, cada mapa. Não sei mais se estou montando uma ponte de volta… ou cavando mais fundo aqui.
“Você poderia só admitir que está fazendo as duas coisas ao mesmo tempo. E, honestamente, fracassando com elegância.”
— Obrigado. Muito reconfortante.
Nova não respondeu, mas Marco já esperava. Aqueles silêncios eram parte do contrato.
Ficou ali por mais um minuto, observando a sombra mínima recuar com lentidão. Escreveu mais uma nota no canto do caderno, depois fechou com um estalo leve e ficou em silêncio. A brisa agora trazia cheiro de metal aquecido, talvez das armas guardadas na forja próxima.
Levantou-se devagar.
— Será que eu conseguiria? — murmurou. — Transformar Taeris. Tornar isso aqui… um lar. Um lugar de ciência, não de guerra.
O impacto foi imediato.
Um calafrio subiu pela espinha, seguido de um peso súbito no ombro. Marco levou a mão à alça da bolsa — o cetro parecia ter ganhado densidade, como se o próprio tecido estivesse prestes a rasgar.
Uma pontada aguda percorreu seu braço esquerdo, do bíceps até a ponta dos dedos. Ele recuou meio passo, trincando os dentes.
Não era dor comum. Era algo mais profundo: uma rejeição.
Instintiva.
O cetro não queria aquilo.
O peso, a repulsa, o aviso silencioso: Taeris não é lar. É alvo.
Por um momento, ele se sentiu sozinho. Inteiramente sozinho.
A dor cessou tão rápido quanto viera, mas o braço ainda formigava, e a bolsa pesava mais do que deveria.
Marco abaixou os olhos. Respirou fundo.
— Entendi — sussurrou. — Você não quer que eu construa nada aqui.
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