A sala do hospital estava silenciosa, exceto pelo som do vento batendo contra as janelas e o leve estalar das velas queimando em suportes de ferro, o cheiro de ervas medicinais impregnava o ar.

    Lou-reen entrou com passos firmes, sua silhueta recortada pela luz do corredor. Sobre a cama, Elucydor estava completamente enfaixado, com apenas a boca visível. Apesar da cegueira, sua voz fraca e carregada de dor soou precisa ao pronunciar seu nome:

    — General Lou-reen.

    Ela parou ao lado da cama, estreitando os olhos.

    — Como sabe que sou eu?

    Elucydor soltou uma risada rouca, que logo se transformou em um gemido de dor.

    — Eu passei a vida transformando essência em luz, fazer o inverso… é tranquilo para mim, não preciso dos meus olhos para enxergar.

    Lou-reen cruzou os braços.

    — Vai me dizer quem te contratou?

    Ele sorriu, mesmo com o rosto contorcido pelo sofrimento, e depois retomou a expressão fria e indiferente.

    Lou-reen observou a figura abatida diante dela. Antes, Elucydor fora um dos soldados mais promissores do exército imperial, um combatente implacável, um estrategista temido, agora, era só um vulto enfaixado.

    — Você era tenente, por que largar tudo pra virar mercenário?

    Elucydor respirou fundo.

    — Queria dizer que foi pelo dinheiro, mas foi pela liberdade. Sob o uniforme, eu só podia ir até onde a lei deixava. Como mercenário, fui até onde consegui.

    Lou-reen assentiu, seca.

    — Nós soubemos o que você andou fazendo em Eryndor.

    Elucydor deixou escapar um leve sorriso, quase imperceptível sob as bandagens. Havia orgulho ali.

    — Mas nenhuma das suas ações lá afetava o Império — ela continuou. — Então por que voltar?

    Ele hesitou por um momento.

    — O pagamento era alto e o trabalho… parecia simples.

    — Não sabia que ia ter que passar por mim?

    — Eu sabia. Por isso o plano deles era te pegar ocupada, não esperavam resistência, muito menos que ele… ainda tivesse um jeito de te chamar sem o colar.

    Lou-reen estreitou os olhos.

    — Como você sabia do colar? Essa informação era confidencial.

    Elucydor virou levemente a cabeça na direção dela, a voz mais baixa:

    — Meu contratante sabia de muita coisa.

    Lou-reen permaneceu em silêncio por alguns segundos. O som do vento nas janelas preenchia o espaço como um lembrete de que o mundo lá fora continuava girando, apesar de tudo.

    — Você sabe o que aconteceu em Aertha? — ela disse, a voz firme como lâmina. — Um milhão e meio de mortos por causa do cetro, por causa de um lunático que achou que podia controlar o mundo.

    Elucydor manteve-se calado.

    — Era isso que seu contratante queria repetir? — ela insistiu. — Porque é esse o caminho. Você pode fingir que não sabia, mas sabia o bastante pra não fazer perguntas.

    Nada.

    Ela se aproximou mais da cama. O rosto dela agora estava a menos de um palmo do dele.

    — Você não tem ninguém no Império? Nenhum parente? Nenhum amigo? Nenhum velho colega que ainda carrega seu nome na ficha como exemplo?

    A respiração dele se alterou levemente.

    — Não sente nada? Nem respeito por quem te treinou, te formou, te deu o título que você usou pra impressionar esse maldito contratante?

    A bandagem na testa de Elucydor tremeu. Por um instante, pareceu que ele ia gritar, ou rir, mas o que veio foi um sussurro cansado:

    — Você acha que tudo isso foi fácil pra mim?

    Lou-reen não respondeu.

    — Não foi um contrato comum, eu não fui atrás, eles me encontraram. Disseram que acompanhavam meu trabalho e que respeitavam minha trajetória, que tinham uma proposta… ousada.

    Ele virou a cabeça lentamente, como se buscasse um ponto fixo no escuro.

    — Um estrangeiro com um cetro, protegido por uma general do Império. O pagamento seria alto, o plano, eficiente. Eles cuidariam da logística, e eu só precisava fazer o que sempre fiz.

    Lou-reen fechou as mãos em punhos.

    — Quem são eles?

    Elucydor hesitou por um momento e depois murmurou:

    — Não me deram nomes, só disseram… que falavam em nome de um grupo. Um que tinha ideias “além do horizonte”, gente que acredita que o Império perdeu o rumo, que estamos engessados, presos a dogmas antigos.

    Ele respirou fundo, como se soubesse que o que viria a seguir selaria algo.

    — O nome deles… Divisores.

    Lou-reen empalideceu.

    Então, uma batida na porta.

    — General Lou-reen — chamou Venia. — Há uma reunião urgente na Base.

    Lou-reen não tirou os olhos dele. O nome ainda reverberava em sua cabeça. Ela saiu sem olhar para trás, deixando Venia parada na porta, empalidecendo ao ver o estado do ex-tenente.

    ***

    Na sala silenciosa do observatório, os mapas estavam organizados, os pergaminhos empilhados, e os instrumentos limpos e alinhados. Tudo pronto para a ausência de Marco.

    Ele ajustava um pequeno estojo de madeira quando estendeu para Maera dois objetos: uma estaca marcada com anotações minuciosas e uma pequena esfera de selenita polida, quase translúcida.

    — Quando o sol estiver no zênite, finque essa estaca e meça o ângulo da sombra. Ao mesmo tempo, farei o mesmo em Ayas-Kin.

    Maera pegou os objetos com firmeza, analisando a estaca.

    — A distância entre as cidades é suficiente?

    — Suficiente pra gerar uma diferença mensurável no ângulo. Com os dois dados e um pouco de trigonometria, o planeta se revela.

    Ela assentiu, quase imperceptível.

    — Acha que vai dar certo?

    — Com sua ajuda, tenho certeza.

    Ele guardou o estojo, fechando com um estalo discreto. Depois de alguns segundos de silêncio, Marco ajeitou a correia da bolsa no ombro.

    — Ah, quase esqueci. Lou-reen conseguiu um destacamento pra te ajudar enquanto eu estiver fora.

    Ele deu alguns passos para o lado, conferindo o pergaminho dobrado sobre a mesa.

    Maera respondeu sem levantar os olhos:

    — Claro, a Lou-reen resolve tudo.

    — Eles vão cuidar das medições secundárias, ângulos, horários, essas coisas. Você só precisa coordenar os registros e garantir a continuidade das observações. Nada além do que já faz.

    Ela apenas assentiu de novo.

    Marco sorriu sozinho, satisfeito com o plano.

    — Vai ser bom. Se Ayas-Kin for mesmo como dizem, com bons ferreiros e engenheiros, talvez eu consiga montar algo mais potente, o bastante pra ver muito mais do que vemos daqui.

    Ela não respondeu.

    — Certo… então é isso. Preciso arrumar a mala.

    Ele fez um gesto breve com a mão, mais instintivo do que pensado, e saiu quase no mesmo ritmo em que chegou. Os passos ecoaram pelo corredor de pedra até desaparecerem.

    Maera ficou parada, segurando a esfera de selenita.

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