Capítulo 033 — Vocês do exército são tão previsíveis.
Marco subia lentamente pelas estruturas entrelaçadas das árvores colossais de Ayas-Kin, o telescópio óptico amarrado às costas com tiras de couro. Cada degrau nas raízes suspensas exigia cuidado : não era uma escalada difícil, mas tampouco algo que ele pudesse fazer distraído. A brisa noturna soprava entre as folhas gigantes, espalhando o aroma fresco da floresta úmida.
Quando alcançou um dos platôs naturais formados por galhos entrelaçados, parou para recuperar o fôlego. Então a viu.
Lou-reen estava sentada na borda de uma das plataformas mais altas, encarando o céu, e havia algo na forma como mantinha as costas retas e os braços cruzados, um tipo de solidão silenciosa que não combinava com sua figura sempre imponente.
Marco ajeitou a alça do telescópio no ombro e continuou a subida. Quando chegou ao lado dela, se sentou.
— Como foi a reunião?
Lou-reen demorou um instante para responder.
— Nada demais. Só tive que informar outro general sobre algo. Nós ainda vamos decidir como proceder.
O tom dela era desinteressado, como se sua mente estivesse longe.
Marco se levantou e começou a montar seu telescópio, ajustando as lentes com cuidado. Quando terminou, apontou para o céu e olhou através da ocular.
Lou-reen observava de canto de olho.
— Quer ver? — ele perguntou.
Ela hesitou por um segundo antes de aceitar e ir. Se inclinando para frente, colocou os olhos no telescópio e ficou em silêncio.
Marco sorriu ao vê-la prender a respiração.
Era uma visão diferente de qualquer coisa que ela já tinha visto antes. O céu, sempre presente acima dela, de repente parecia próximo, repleto de detalhes que a olho nu não poderiam ser percebidos.
— Você realmente é um tipo diferente de maluco.
Marco riu.
— Prefiro o termo “gênio inovador”.
Ela revirou os olhos, mas seu sorriso era genuíno.
Até que Marco, sem pensar, soltou:
— Kalamera vai gostar disso também.
A expressão de Lou-reen mudou instantaneamente.
— Ah, é? — disse ela, o tom mais seco.
Antes que ele pudesse responder, ela lhe deu um empurrão forte.
Marco sentiu o mundo girar por um segundo até perceber que estava caindo.
— Que-
Antes que ele pudesse xingar em voz alta, a voz de Nova soou em sua mente com um tom quase divertido:
“Alerta vermelho! Gravidade detectada! Chance de impacto letal: 32%!”
Ele atingiu um galho mais abaixo, se segurando a tempo de evitar um tombo pior. O impacto arrancou o ar de seus pulmões, mas ele estava bem.
Lá em cima, Lou-reen já tinha se afastado, sem sequer olhar para baixo.
Marco suspirou, massageando o ombro dolorido.
“Incrível! Um gênio da astronomia, capaz de calcular com precisão a posição das estrelas a milhares de quilômetros, mas incapaz de perceber um meteoro emocional vindo em sua direção.”
— Obrigado pelo aviso, Nova. Da próxima vez, tenta falar antes de eu despencar.
Marco rolou os olhos e começou a descer, resmungando algo sobre guerreiras temperamentais e inteligências artificiais sem compaixão.
***
Kalamera estava tão concentrada em ajustar um componente que não percebeu a sombra além da janela. A intrusa entrou como se a oficina fosse dela, com passos leves, cadenciados, o corpo inclinado de predadora. Pele de ônix, olhos âmbar… e, coroando o cabelo, uma cobra branca enroscada como tiara viva, a língua bifurcada provando o ar. Seu nome era Maryse Alyn.
— Manipulação de essência: transfiguração — murmurou.
Seu braço esquerdo se transformou em uma serpente, o corpo sinuoso se esticando e se movendo com uma velocidade letal. Com os dentes afiados à vista, a serpente se lançou em direção às costas de Kalamera, pronta para atacar seu pescoço.
Mas antes que a cobra pudesse alcançá-la, um dos braços inferiores de Kalamera agarrou a serpente, interrompendo seu ataque com rapidez e força. Ela se virou, assustada, seu coração disparando.
As duas se encararam, respirando pesadamente, os olhos de Maryse cheios de diversão e o brilho de uma luta iminente. Kalamera, ainda em alerta, olhou para o outro lado da oficina, onde uma esfera de selenita estava posicionada. Era um alarme, que ela poderia ativar para chamar reforços.
O olhar de Maryse seguiu o movimento, percebendo rapidamente o que Kalamera estava tentando fazer.
— Você não vai chegar até lá. — disse Maryse, com um sorriso frio.
A cobra que havia se transformado de seu braço esquerdo se esticou ainda mais, quase alcançando o rosto de Kalamera. Ela foi rápida e desviou, afastando-se da bancada para ganhar espaço.
Agora com os quatro braços prontos para se defender, Kalamera se posicionou, como uma boxeadora, com um semblante sério. Maryse, no entanto, parecia ainda mais divertida, sorrindo com desdém.
— Vocês do exército são tão previsíveis — Maryse zombou, e, logo em seguida, seu outro braço se transformou em mais uma serpente, avançando na direção de Kalamera com a mesma agilidade.
As cobras se moviam como se tivessem uma mente própria, ágeis e imprevisíveis. Maryse, com a flexibilidade de um réptil, conseguiu desviar facilmente dos contra-ataques de Kalamera, que tentava bloquear e contra-atacar com seus quatro braços. Usando a vantagem da agilidade, Maryse pisou sobre um dos braços inferiores de Kalamera, prendendo-o na bancada, imobilizando-o momentaneamente, enquanto os braços-cobra se enroscavam nos braços superiores da elfa.
Antes que Kalamera pudesse usar o braço restante, a cobra branca presa ao cabelo de Maryse deslizou por sua cabeça como uma flecha viva, enrolando-se no último braço livre de Kalamera com precisão quase cruel.
A luta virou um jogo de força e resistência, mas Kalamera sentiu a pressão aumentar quando Maryse sorriu, percebendo que a vantagem estava toda do seu lado.
— Vocês não fazem ideia de como lidar contra algo que não seja como vocês, não é mesmo? Então vocês destroem. — Maryse provocou, sua voz baixa, enquanto as cobras ao redor de seus braços superiores se apertavam com força, fazendo Kalamera perder a capacidade de controlar a situação.
Os braços-cobras de Maryse apertaram com ainda mais força, seus músculos serpenteantes se enrolando nos braços de Kalamera, que se esforçava para se libertar, mas sem sucesso. Com um som seco e brutal, os ossos de Kalamera começaram a ceder sob a pressão.
O movimento foi rápido e Kalamera tentou reagir, mas a força das cobras era esmagadora. Com um giro final, os braços-cobras se enroscaram ainda mais nos braços superiores de Kalamera. Um estalo ecoou no ambiente quando as articulações dos braços da elfa foram quebradas uma a uma.
— Agora — disse Maryse, com uma expressão satisfeita, observando o trabalho que havia feito com as cobras — não vai ser tão fácil para você se mover.
Ela sorriu, saboreando a sensação da vitória.
Ela esperava ouvir um grito de dor, sentir o estalo seco dos ossos se partindo, ver o sangue escorrendo pelos braços da oponente. Mas não houve nada disso. O silêncio que se seguiu era errado.
Algo estava fora do lugar.
Maryse franziu a testa, desconcertada. Então, percebeu.
As serpentes que substituíam seus braços haviam rasgado as mangas da engenheira, expondo algo que não era carne, nem osso. As garras das cobras não haviam afundado em pele, mas em metal. Kalamera ofegou quando sentiu os braços superiores tremerem, perdendo completamente o controle sobre eles. Com um estalo seco, os braços começaram a se desmanchar.
Centenas de pequenas peças metálicas se soltaram e caíram no chão, tilintando contra o piso como uma chuva mecânica.
Maryse piscou, surpresa.
— Então é isso que está por baixo… — murmurou, divertindo-se.
Kalamera, ainda em choque, teve apenas um segundo para reagir. O olhar dela encontrou o de Maryse e então, sem hesitar, ela girou o quadril e lançou um chute certeiro no estômago da outra elfa. Maryse grunhiu ao ser empurrada para trás, mas o golpe não foi forte o suficiente para derrubá-la. Kalamera não esperou para ver a reação. Com as pernas ágeis, lançou-se em disparada, seu coração martelando no peito.
Mas Maryse era rápida.
Antes que Kalamera pudesse alcançar a porta, uma cobra se fechou em sua perna e a puxou com força. Kalamera caiu de cara no chão, o impacto tirando o ar de seus pulmões. Ela tentou se erguer, mas Maryse já estava sobre ela.
Com um movimento fluido e perigoso, Maryse segurou Kalamera pelos cabelos e forçou seu rosto contra o chão. Depois, com uma calma perturbadora, a virou e desceu sobre ela, o rosto perigosamente próximo.
Por um instante, seus lábios pairaram a milímetros dos de Kalamera. A respiração quente dela roçou a pele da engenheira, e seus olhos afiados analisavam cada detalhe de sua expressão.
Então, num movimento súbito, Maryse desviou o rosto e afundou os dentes no pescoço de Kalamera.
Kalamera arregalou os olhos, um gemido escapando de seus lábios enquanto um calor incômodo se espalhava pela mordida. Ela tentou se soltar, mas a força de Maryse a mantinha presa.
Quando Maryse finalmente a soltou, um rastro avermelhado ficou marcado na pele pálida da engenheira.
Kalamera tentou engolir o pânico e começou a se arrastar para trás, usando as pernas para se afastar, o coração disparado. Seu corpo tremia, os braços inutilizados deixando-a vulnerável como nunca.
Maryse se ergueu com tranquilidade. Os braços que antes eram serpentes voltaram à sua forma original e ela passou as mãos pelos próprios pulsos, satisfeita.
Ela caminhou até a bancada de trabalho e pegou o pedaço de berílio que Kalamera e Marco haviam conseguido. Girou o metal entre os dedos, apreciando seu peso.
E então, sem mais uma palavra, ela desapareceu pela janela, tão silenciosa quanto havia chegado.
Kalamera arfou, apoiando-se contra a bancada com as costas. Seu corpo tremia, os músculos queimavam, e o suor frio escorria por sua pele. O veneno se espalhava rápido, tornando cada respiração mais difícil. Mas ela não tinha tempo para se render.
Seus olhos fixaram-se na chapa de berílio à sua frente. Sem os braços, qualquer outra pessoa estaria indefesa, mas ela não era qualquer pessoa.
Fechou os olhos por um instante, sentindo a essência fluir. O metal respondeu. A chapa tremeu levemente e, aos poucos, ergueu-se no ar. Ao lado, uma pequena barra de ferro deslizou pela bancada, arrastando-se como se ganhasse vida própria.
Kalamera franziu a testa, lutando contra o próprio corpo. A barra de ferro começou a brilhar em um tom avermelhado conforme o calor aumentava. Controlar duas peças ao mesmo tempo naquele estado era exaustivo.
O cheiro de metal queimado invadiu o galpão quando a ponta incandescente da barra tocou a chapa de berílio. Tremores percorreram seu corpo, a visão ficou turva, mas ela continuou. Traço por traço, desenhou a runa.
Cada movimento exigia mais esforço. Seu corpo estava cedendo. As bordas da visão escureciam, como se o mundo estivesse se fechando ao seu redor.
O último traço brilhou fracamente. Ela tentou erguer a chapa, mas o controle falhou. O metal oscilou no ar por um instante antes de cair no chão com um ruído seco.
Kalamera tentou respirar fundo, mas o peito pesava. O mundo girou violentamente. Seu corpo perdeu as forças, e a última coisa que viu antes de desmaiar foi o reflexo fraco da runa brilhando no berílio, a única prova de que ela não havia desistido.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.