Capítulo 034 — Autorização está revogada.
A madrugada era fria, mas Marco mal sentia. Seu corpo vibrava com uma energia ansiosa, diferente de qualquer outra que já experimentara. Era quase como a adrenalina da primeira vez que voou ao espaço, mas agora era algo mais intenso, mais próximo. O projeto estava avançando rápido, e ele mal podia esperar para ver os próximos passos tomando forma.
Revirando-se na cama, tentou se forçar a dormir, mas não conseguia. Sua mente estava cheia de cálculos, possibilidades e ideias. Depois de algumas horas de luta interna, desistiu. Se era para ficar desperto, que pelo menos usasse o tempo para algo produtivo. Levantou-se, vestiu uma camisa e decidiu correr.
O ar gelado da madrugada revigorou seus sentidos enquanto ele passava pelas estruturas do complexo militar. O caminho o levou naturalmente até a oficina de Kalamera. Ele sorriu ao notar a luz acesa.
Ela também não consegue parar, pensou. Mas já era tarde demais para trabalhar, e ele decidiu entrar para convencê-la a descansar um pouco. Mas assim que abriu a porta, parou abruptamente.
Kalamera estava caída no chão.
Por um instante, seu cérebro se recusou a processar a cena.
O entusiasmo foi substituído por um aperto súbito no peito. Marco correu até ela, ajoelhando-se ao lado de sua figura imóvel.
— Kalamera!
Ela respirava com dificuldade, o rosto pálido e suado. Mas o que realmente o fez congelar foi a visão de seus braços. Ou melhor, da ausência deles.
Marco piscou, confuso.
— O quê…?
Foram necessários alguns segundos para que ele entendesse. Os braços dela… os superiores… eram próteses também.
O metal desmontado se espalhava ao redor dela como um quebra-cabeça quebrado.
Ele engoliu seco, sacudindo a cabeça para afastar o choque. Isso não importava agora. O que importava era o estado dela.
— Nova, eu preciso de você!
A IA respondeu imediatamente, sua voz ecoando em sua mente.
“Analisando… sintomas indicam envenenamento. Frequência cardíaca irregular, temperatura corporal elevada. Se não for tratada logo, as chances de sobrevivência caem drasticamente.”
Marco engoliu seco. Sua mão tremia. O calor do corpo dela começava a desaparecer. Ele apertou os olhos e murmurou:
— Essência da Restauração.
Um brilho dourado envolveu sua palma. Ele pressionou a mão contra o peito de Kalamera, bem acima do coração. A luz pulsou. Por um instante, pareceu funcionar , mas então, a luz se apagou como uma vela sufocada.
“Sem efeito,” disse Nova. “A Essência da Restauração não consegue quebrar o composto químico. O veneno está na corrente sanguínea e reagindo com o sistema nervoso. Precisamos de outra abordagem.”
— Outra abordagem como?!
“Analisando….”
O tom de Nova mudou levemente, saindo da ironia habitual para um foco intenso.
Marco segurava Kalamera com cuidado, tentando conter o pânico. A cada segundo que passava sua pele ficava mais fria e sua respiração, mais fraca.
— Nova, tem que ter algo que possa ajudar!
“A runa gravada na chapa de berílio! Foi projetada para extrair substâncias tóxicas do corpo. Provavelmente Kalamera não conseguiu ativá-la antes de desmaiar.”
Marco olhou ao redor e viu a chapa caída no chão, junto da barra de ferro que ela usara para desenhá-la. Ele a pegou e estudou as marcações queimadas no metal.
— Então isso pode salvar ela?
“Uma matriz de purificação. Se ativada corretamente, pode neutralizar o veneno. Mas, Marco, o processo será doloroso.”
Ele não hesitou. Com cuidado, pressionou a chapa contra o pescoço de Kalamera, bem onde os dentes da agressora haviam perfurado.
— Vamos lá.
Fechou os olhos e canalizou sua essência, sentindo o fluxo de energia correr por seus dedos até o metal. A runa começou a brilhar fracamente antes de esquentar subitamente. Em segundos, a chapa de berílio ficou abrasadora, fervendo contra a pele dela.
O corpo de Kalamera se enrijeceu e um gemido de dor escapou de seus lábios inconscientes. Uma névoa escura começou a subir do ferimento, como se algo estivesse sendo sugado para fora.
“Níveis de toxicidade caindo. Você precisa segurar firme, o veneno ainda está circulando.”
Marco sentiu o suor escorrer por sua testa. A chapa vibrava em suas mãos, a energia lutando contra a substância mortal. Ele pressionou um pouco mais, ignorando o calor que queimava a ponta de seus dedos.
Finalmente, depois do que pareceram minutos intermináveis, a runa brilhou intensamente uma última vez antes de apagar. A névoa negra dissipou-se no ar.
Kalamera arfou, puxando o ar com força.
“Envenenamento neutralizado”, Nova anunciou. “Parabéns, doutor Marco, você acaba de adicionar ‘curandeiro improvisado’ ao seu currículo.”
Marco suspirou, aliviado.
“Ah, e só para constar”, Nova acrescentou. “Você pode ser um gênio da astronomia, mas é um completo pateta quando se trata de perceber coisas óbvias. Você realmente nunca reparou que os braços dela eram metálicos?”
***
O sol já estava alto quando eles se reuniram novamente na oficina de Kalamera. Tinham dormido pouco, mas o dever os chamava cedo. A luz do dia entrava pelas janelas em feixes dourados, iluminando o espaço bagunçado.
Kalamera estava sentada, envolta em um cobertor grosso. Sobre as pernas, uma tigela de sopa fumegante exalava o aroma de raízes e especiarias locais. Uma colher flutuava diante dela, controlado com precisão, e apenas um leve tremor nas sobrancelhas dela denunciava o esforço de manter o foco.
Lou-reen permanecia de pé próximo à porta, os braços cruzados, como se fosse incapaz de relaxar. Venia sentou-se ao lado de Kalamera, uma prancheta no colo, observando todos com olhos atentos.
Marco, por sua vez, estava escorado na parede, braços cruzados, tentando parecer calmo, mas era óbvio que não parava de lançar olhares discretos para Kalamera, como se ainda não acreditasse que ela estava bem.
A porta abriu. Jenff entrou, e Grithin veio junto, sem cerimônia, fechando a porta atrás de si com cuidado. Seu olhar passou rapidamente por todos até pousar em Kalamera.
— Espero que esteja em condição de ouvir, — disse ele, direto, mas sem frieza.
Kalamera assentiu lentamente, levando a colher à boca pela última vez antes de deixá-la repousar na borda da tigela.
— Vai fundo, Jenff.
— Pela descrição e modus operandi, se trata de Maryse Alyn. — Jenff fez uma pausa, relendo o pergaminho em mãos. — Naturalista, originária de uma vila que foi remodelada pelo avanço tecnológico. No passado, causou uma série de incidentes em protesto contra o que considerava uma destruição de sua terra natal. No entanto, ela desapareceu após isso. Não há registros sobre seu paradeiro atual, nem indícios de aliados conhecidos.
Kalamera levantou a sobrancelha, seus olhos se tornando mais sérios à medida que ouvia.
— E por que ela atacaria Kalamera? — Lou-reen perguntou, com a voz grave, a expressão sombria.
Jenff olhou para o pergaminho por um instante antes de responder.
— Ela é um enigma. — Jenff balançou a cabeça com um suspiro. — Nunca esteve no colégio, nem na academia. Se ela está aqui agora, significa que algo a motivou… e considerando o ataque, talvez tenha descoberto que vocês dois estão desenvolvendo algo inovador e decidiu impedir.
Lou-reen franziu a testa, cruzando os braços.
— Mas como ela teria descoberto? — perguntou, sua voz carregada de desconfiança. — Esse projeto não é exatamente público. Ela teria que ter contatos dentro do exército.
— Se ela tem acesso a informações do exército, então esse problema pode ser muito maior do que parece — ele disse, sério. — Ou alguém está vazando informações, ou ela tem meios de espionagem que ainda não identificamos.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Marco trocou um olhar rápido com Kalamera, que apertou os lábios, pensativa. Jenff não respondeu de imediato, apenas fechou o pergaminho que lia e o colocou sobre a mesa. Foi quando Grithin virou os olhos para Marco
— Eu sabia que você era problema. Um dia em Ayas-Kin e já perdeu algo que o Exército protege há quatorze anos. Me dê um bom motivo pra não achar que você faz parte do esquema e mandar te prender por traição.
Marco ficou imóvel. Lou-reen entrou na linha de tiro sem elevar o tom:
— Ele está sob minha responsabilidade. Não há provas contra ele.
Grithin sustentou o olhar por um segundo longo, depois cedeu um meio passo.
— Autorização está revogada. A partir de agora, Marco não requisita nada, não entra em depósito, não constrói nada. — A voz dele encheu a sala. — O objetivo é localizar Maryse e recuperar o berílio.
Virou-se para a porta.
— Façam seu trabalho. E não me deem motivo pra fechar esta oficina.
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