Capítulo 035 — Pinho e vigilância.
Kalamera estava sentada no banco baixo, ainda sem braços. A pele do ombro mostrava os encaixes circulares, limpos, frios. Marco, de lado, tentava decidir onde pôr as mãos.
— Posso ajudar…?
— Pode não derrubar nada.
Kalamera se ergueu com o equilíbrio de quem já fez isso mil vezes usando só as pernas. Foi até a caixa reforçada no canto e chutou a tampa. As dobradiças rangeram, revelando quatro próteses diferentes das de bancada: placas espessas, curso curto, pivôs robustos. Feitas pra combate.
Kalamera prendeu o olhar na primeira. Inspirou. O metal vibrou leve. A prótese levitou, girou nos próprios eixos e encaixou no ombro com um clique limpo. A mão abriu, fechou, girou o punho. Natural.
A segunda veio suave, o corpo rearrumando o peso. Marco respirou, e só então falou:
— Kalamera, como você…?
Ela parou meio segundo. Respirou fundo, os olhos presos em algum ponto entre a parede e uma memória que doía.
— Foi uma falha. — A voz veio sem enfeite. — De alguém.
Ela caminhou até a bancada, já com dois braços respondendo, e pegou a chapa de berílio deixada ali na noite anterior, a mesma com a runa de restauração incompleta. Os traços refletiram na pupila como um mapa. A frase veio sozinha:
— Quando eu tinha seis anos…
Parou. Outra peça clicou por trás dos olhos.
— Se for ele, vai precisar de selenita verde pura.
Ela puxou as outras duas próteses, encaixou, testou. Punhos abrindo e fechando, postura voltando ao lugar.
— Marco, vem comigo. — Foi para a porta sem dar explicação.
***
Ayas-Kin cantava baixo na troca de turno: botas na madeira, risos curtos, cheiro de licor de pinho. A Taverna do Anel Norte ficava na beirada de uma passarela larga, vista boa do corredor da guarda.
— Taref termina a ronda e sempre vem pra cá — Kalamera disse enquanto andavam. — Nem toda selenita serve ao exército. O que é “ruim” pros testes vai pra artesão… e o que é bom demais vai pra quem paga. Quem roubou o berílio não compra direto do depósito. Compra do Taref.
— Contrabandista?
— Cabo na farda, comerciante onde não tem farda.
Eles tomaram posição no mezanino interno, de onde podiam ver sem ser vistos. De lá, dava pra ver a porta, o balcão e a mesa do fundo. Kalamera ajustou o corpo como quem monta um gabarito: um braço apoiado no parapeito, os outros livres, olhos varrendo as entradas.
— Ele vai sentar com a parede nas costas — ela avisou. — E vai pedir a mesma coisa de sempre pra não chamar atenção.
Taref chegou barulhento. Pegou um pão no balcão e já mordeu no caminho até a mesa de dados.
— De novo torto, recruta? — ele riu, olhando o dado encostado na borda. — Se o dado anda, a dívida também.
— Então paga o que me deve, cabo — rosnou o jogador da direita.
— Pago quando ele me pagar — Taref apontou pro parceiro de mesa.
— Eu? Eu não te devo nada!
— Ótimo, já estamos quase quitados — disse Taref, já se afastando com o pão na mão.
— Volta aqui!
— Anota num pergaminho, eu leio quando secar.
Sentou no fundo, parede nas costas, e a mesa virou porto: gente encostava, falava baixo, ia embora. Taref quase não abria a boca, só deslizava pacotes e recolhia moedas; pesava na palma, às vezes mordia uma, sumia no bolso, fim. Um por vez, nunca mais de um minuto. A cadeira dele ficava livre entre uma sombra e outra, enquanto o bar abafava qualquer palavra com risos, vidro e o rangido de botas na madeira.
— Como você sabia disso? — Marco.
— Porque todo mundo já fez negócio com o Taref um dia. — Ela manteve os olhos na porta. — O exército finge que não vê. É resto que não serve pros testes.
Uma garçonete elfa parou diante deles, bandeja na mão, orelhas pontudas atentas.
— Bebem algo… ou só estão vigiando do alto?
Kalamera nem disfarçou:
— Dois licores de pinho.
— Pinho e vigilância. Equilíbrio perfeito. — A garçonete sorriu de canto, anotou, seguiu.
Marco olhou de lado.
— Você podia ter dito “não”.
— E anunciar que estamos de tocaia? — Ela deu um meio sorriso. — Engenharia 101: se não dá pra ser invisível, pareça normal.
— E eu pareço normal?
— Ainda não, mas você melhora quando fica quieto.
Ele riu, breve.
— Você tá bem pra isso… depois de ontem?
— Não tô, mas funciono. — Ela falou sem peso. — Obrigada por ter me salvado.
Os licores chegaram. Marco só encostou os dedos no copo; Kalamera molhou a boca e voltou pros olhos da porta.
— De nada — Marco girou o copo sem beber. — Tava ao meu alcance.
Kalamera passou o dedo na borda do vidro, checando rebarba.
— Não tô acostumada. Por aqui é gente que só sabe dar e receber ordens.
A conversa na taverna baixou meio tom, não o bastante pra silenciar ninguém, só o suficiente pra avisar que alguém diferente entrou. Kalamera pousou o copo e endireitou os ombros.
— Atenção.
Maryse entrou como quem corta água. Pele de ônix, olhos âmbar, a cobra branca no cabelo provando o ar. Foi direto ao fundo e sentou sem pedir licença.
Taref deu o sorriso de sempre, o que ninguém confia.
— Sabia que tão caçando a sua cabeça… e a da sua cobrinha? Eu devia triplicar o preço.
Maryse puxou a manga e mostrou um bracelete de madeira escura.
— Talvez eu devesse levar a sua junto, se insistir.
O cabo engoliu seco. Baixou a voz:
— Isso é um dos trabalhos… dele?
Ela não respondeu. A mão ficou pousada no aro.
Bastou. Debaixo da mesa, Taref tirou um embrulho de pano cru; o verde filtrou a luz pelas fibras. Empurrou com a ponta dos dedos.
— Negócio fechado.
Quando Maryse estendeu a mão pelo pacote, Kalamera já estava ali.
Ninguém na mesa viu a aproximação, só sentiu o ar mexer.
O punho de prótese saiu em linha reta, curto e brutal.
As costelas estalaram e Maryse voou contra a parede; a madeira gemeu.
O pano do pacote assentou de volta na mesa, intacto, como se nada tivesse acontecido.
— Lembra de mim? — Kalamera perguntou.
Taref deu um pulo de rapina na mesa, indo em direção ao embrulho verde. Um dos braços de Kalamera desceu como uma prensa e travou o pacote no tampo.
O salão abriu espaço por instinto: cadeiras arrastaram, copos se afastaram, ninguém queria ser “testemunha ocular”. Marco correu e colocou a mão no ombro de Taref e o manteve na cadeira, pressão suficiente para dispensar explicações.
— Senta. — A voz veio baixa, suficiente.
Maryse se descolou da parede num gesto só, alisou as dobras do casaco, arrancou uma farpa do ombro e soprou o pó da madeira como quem apaga vela. A cobra branca no cabelo ergueu a cabeça, medindo o ar. Os olhos âmbar encontraram os de Kalamera; o sorriso veio curto e cortante.
— Lembrei. Quer repetir o experimento?
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