Capítulo 037 — Procedimentos existem por um motivo.
Taref chegou tropeçando no próprio fôlego. Trancou a porta, conferiu a janela duas vezes, puxou as cortinas. O quarto era pequeno: uma cama ruim, uma mesa torta, uma lamparina meia-vida. Ele largou o pacote sobre a mesinha com todo o cuidado do mundo, como se fosse morder.
— Nosso artesão precisa muito disso aí — disse uma voz que não vinha da porta.
Taref gelou. Duas sombras já estavam na sala, coladas aos cantos como mofo. Ele ergueu as mãos.
— Levem. Não… não precisa pagar. Só… só não falem meu nome pra ninguém. Eu nem tava lá.
— Os Divisores não pretendiam te pagar mesmo — respondeu a segunda sombra, um sorriso que não precisava de rosto.
— Eu só fiz a entrega. Não tenho nada a ver com—
A outra sombra se moveu. Rápida. O som foi curto. Taref caiu de joelhos, depois de lado, olhos abertos para lugar nenhum.
— Não devia ter dito o nome para esse lixo — a voz murmurou, já limpando a lâmina num pano.
A lamparina piscou. As sombras pegaram o pacote como quem recolhe correspondência e saíram sem tocar na porta.
***
O Artesão observou as sombras entrarem, sem pressa.
— Onde está a Maryse? — perguntou, sem levantar os olhos. — Ela me trouxe o berílio e ainda não voltou com a selenita.
— Presa — disse a primeira sombra, colocando o pacote na bancada velha. — Nós trouxemos a selenita.
As mãos dele desembrulharam a selenita verde pura como quem abre um livro. O Artesão assentiu, estendeu a mão até uma caixa estreita e de lá tirou um colar de metal, polido, veios rúnicos gravados a frio.
— Conseguem levar até ela?
— Não há nada que a gente não alcance — respondeu a segunda, guardando o colar.
— E a demonstração? Quando você prova que isso vale o risco?
O Artesão guardou a selenita com cuidado clínico. O sorriso veio fino.
— Em breve. — Ele tocou de leve na bancada. — E eu já tenho a cobaia certa.
***
Marco não conseguia desviar o olhar do mapa da cidade-floresta: linhas coloridas cruzavam o desenho em níveis, uma por cima da outra, formando um emaranhado legível só para quem morava ali.
“Passarelas suspensas,” Nova informou na cabeça dele. “Níveis 1 a 4. Tráfego de guarda em vermelho, mercadorias em azul, manutenção em amarelo… e a laranja é a que você quase caiu ontem. De nada.”
Ele também notou a diferença de território: o gabinete de Grithin não era igual ao de Yhe-for. Lá, Lou-reen tratava papel como rocha sedimentar: camadas que se formavam sozinhas e a coitada da Venia vivia empilhando, carimbando, pedindo licença às avalanchas. Aqui, tudo era cirúrgico: pastas alinhadas por etiqueta, cantos batendo a régua, lápis apontados no mesmo ângulo, até o peso do mapa posicionado como se fosse peça de xadrez. Nada fora do lugar, exceto as pessoas.
A sala pesava com todo mundo em ponto de ebulição controlada. Lou-reen encostada, braços cruzados; Kalamera imóvel demais para estar calma; Jenff na porta, palma na guarda da espada; Venia silenciosa; Mavren Solk com a pena correndo, tinta espirrando pequenas ameaças. Grithin Kazo de pé, mãos na mesa:
— Me conta, o que aconteceu lá.
Kalamera não hesitou.
— Suspeitei que ela compraria selenita verde pura pra usar com berílio e fui confirmar. Nós presenciamos o cabo Taref entregando um pacote a ela; fomos averiguar. Ela me atacou quando me viu …— lançou um sorriso breve para Marco e só então continuou: — nós duas entramos em combate e eu… não consegui contê-la. O Marco interveio e tentou me ajudar. Nesse meio-tempo, o Taref sumiu com o que ia entregar.
Grithin mordeu a pergunta e soltou o rugido:
— Você agiu sozinha… COM UM CIVIL ESTRANGEIRO DE SUPORTE?! E ainda atravessou uma investigação do Império!
— Eu trouxe a ladra terrorista viva — rebateu, seco. — E, pelas suas palavras mais cedo, capturá-la era a prioridade. Foi isso que eu fiz.
Grithin encarou, gelo no rosto, algo mais quente nos olhos. O punho fechou, abriu.
— Procedimentos existem por um motivo.
— O tempo era curto — disse Kalamera. — Mais gente, menos chance.
Grithin inclinou-se um pouco, a voz baixou um tom:
— Material a gente perde e substitui. Você, não.
Lou-reen virou em Marco, ferro na voz, um passo mais perto do que conforto permite:
— Eu não te treinei pra ir a campo sem autorização. Corrente de comando existe por um motivo. Você me informa, eu aprovo. Não o contrário.
Marco a encarou.
— Foi isso ou perder o rastro — disse, por fim.
Ela respirou pelo nariz, ainda tensa.
— Você não improvisa operação porque “deu na veia”. Última vez. Entendeu?
Ele sustentou o olhar. “menos uau ela fica linda brava, mais sim, senhora” Nova o provocou.
— Entendi.
Ela o encarou mais um segundo, o aço ainda no rosto… e amoleceu meio milímetro.
— Ainda bem que você voltou vivo.
O canto da boca quase cedeu, quase. Marco percebeu o orgulho guardado ali.
Bateram à porta.
— General, a Maryse acordou.
Grithin assentiu, já andando.
— Eu faço o interrogatório. Lou-reen, comigo. — Mavren e Venia se levantaram com as pastas. — Jenff, fica aqui e vigia a sargento e o civil. Até segunda ordem, ninguém sai desta sala.
— Sim, senhor. — Jenff tomou a porta, mão na guarda da espada.
Os demais saíram. A sala encolheu num silêncio de quartel. Marco e Kalamera foram para o fundo; Jenff não tirou os olhos.
Ela sussurrou sem tirar os olhos da porta:
— Eu tenho quase certeza de quem está por trás de tudo. Se ao menos eu tivesse olhado melhor a runa no bracelete dela…
Marco abriu a boca:
— Eu também n—
“Sério, Marco? Como você conseguiu ser aprovado no Programa Espacial Brasileiro sem prestar atenção em nada?” Nova cortou, seca. “Toma: replay em HD.”
A imagem surgiu na mente dele: o aro de madeira, veios, matriz rúnica perfeita.
Marco olhou por cima do ombro, puxou um pergaminho da mesa e começou a desenhar.
Jenff deu dois passos, espiando.
— O que está fazendo?
Kalamera nem olhou:
— O general disse que não podemos sair. Não proibiu conversar e desenhar.
Jenff fechou mais a cara, mas voltou para o posto.
Marco finalizou: linhas limpas, três hexágonos, anel de fluxo, veios. Kalamera viu… e empalideceu.
— Eu sei quem fez isso. Ele com certeza mandou roubar o berílio. E se ele já tem o metal e agora já deve ter a selenita verde pura, então só falta montar e testar. Eu preciso impedir.
— A gente não pode sair — Marco lembrou, baixo. — Ordem direta.
Kalamera se levantou e caminhou até Jenff. Ele puxou a lâmina dois dedos para fora.
— O que você quer? Volte a se sentar.
— Água. — Ela disse, simples, estendendo um braço para a jarra na mesa ao lado dele. Os outros três se moveram como quem não quer nada; um ajuste de ombro, um gesto no ar.
Jenff acompanhou a mão da jarra com o olhar.
Kalamera usou outra: um golpe seco no queixo, curto, limpo. O tenente apagou na hora, escorregando pela porta até virar peso.
— Vamos embora, Marco.
Ela abriu a porta e saiu. Marco olhou o tenente por um segundo, respirou fundo e foi atrás.

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