Taref chegou tropeçando no próprio fôlego. Trancou a porta, conferiu a janela duas vezes, puxou as cortinas. O quarto era pequeno: uma cama ruim, uma mesa torta, uma lamparina meia-vida. Ele largou o pacote sobre a mesinha com todo o cuidado do mundo, como se fosse morder.

    — Nosso artesão precisa muito disso aí — disse uma voz que não vinha da porta.

    Taref gelou. Duas sombras já estavam na sala, coladas aos cantos como mofo. Ele ergueu as mãos.

    — Levem. Não… não precisa pagar. Só… só não falem meu nome pra ninguém. Eu nem tava lá.

    — Os Divisores não pretendiam te pagar mesmo — respondeu a segunda sombra, um sorriso que não precisava de rosto.

    — Eu só fiz a entrega. Não tenho nada a ver com—

    A outra sombra se moveu. Rápida. O som foi curto. Taref caiu de joelhos, depois de lado, olhos abertos para lugar nenhum.

    — Não devia ter dito o nome para esse lixo — a voz murmurou, já limpando a lâmina num pano.

    A lamparina piscou. As sombras pegaram o pacote como quem recolhe correspondência e saíram sem tocar na porta.

    ***

    O Artesão observou as sombras entrarem, sem pressa.

    — Onde está a Maryse? — perguntou, sem levantar os olhos. — Ela me trouxe o berílio e ainda não voltou com a selenita.

    — Presa — disse a primeira sombra, colocando o pacote na bancada velha. — Nós trouxemos a selenita.

    As mãos dele desembrulharam a selenita verde pura como quem abre um livro. O Artesão assentiu, estendeu a mão até uma caixa estreita e de lá tirou um colar de metal, polido, veios rúnicos gravados a frio.

    — Conseguem levar até ela?

    — Não há nada que a gente não alcance — respondeu a segunda, guardando o colar.

    — E a demonstração?  Quando você prova que isso vale o risco?

    O Artesão guardou a selenita com cuidado clínico. O sorriso veio fino.

    — Em breve. — Ele tocou de leve na bancada. — E eu já tenho a cobaia certa.

    ***

    Marco não conseguia desviar o olhar do mapa da cidade-floresta: linhas coloridas cruzavam o desenho em níveis, uma por cima da outra, formando um emaranhado legível só para quem morava ali.

    “Passarelas suspensas,” Nova informou na cabeça dele. “Níveis 1 a 4. Tráfego de guarda em vermelho, mercadorias em azul, manutenção em amarelo… e a laranja é a que você quase caiu ontem. De nada.”

    Ele também notou a diferença de território: o gabinete de Grithin não era igual ao de Yhe-for. Lá, Lou-reen tratava papel como rocha sedimentar: camadas que se formavam sozinhas e a coitada da Venia vivia empilhando, carimbando, pedindo licença às avalanchas. Aqui, tudo era cirúrgico: pastas alinhadas por etiqueta, cantos batendo a régua, lápis apontados no mesmo ângulo, até o peso do mapa posicionado como se fosse peça de xadrez. Nada fora do lugar, exceto as pessoas.

    A sala pesava com todo mundo em ponto de ebulição controlada. Lou-reen encostada, braços cruzados; Kalamera imóvel demais para estar calma; Jenff na porta, palma na guarda da espada; Venia silenciosa; Mavren Solk com a pena correndo, tinta espirrando pequenas ameaças. Grithin Kazo de pé, mãos na mesa:

    — Me conta, o que aconteceu lá.

    Kalamera não hesitou.

    — Suspeitei que ela compraria selenita verde pura pra usar com berílio e fui confirmar. Nós presenciamos o cabo Taref entregando um pacote a ela; fomos averiguar. Ela me atacou quando me viu …— lançou um sorriso breve para Marco e só então continuou: — nós duas entramos em combate e eu… não consegui contê-la. O Marco interveio e tentou me ajudar. Nesse meio-tempo, o Taref sumiu com o que ia entregar.

    Grithin mordeu a pergunta e soltou o rugido:

    — Você agiu sozinha… COM UM CIVIL ESTRANGEIRO DE SUPORTE?! E ainda atravessou uma investigação do Império!

    — Eu trouxe a ladra terrorista viva — rebateu, seco. — E, pelas suas palavras mais cedo, capturá-la era a prioridade. Foi isso que eu fiz.

    Grithin encarou, gelo no rosto, algo mais quente nos olhos. O punho fechou, abriu.

    — Procedimentos existem por um motivo.

    — O tempo era curto — disse Kalamera. — Mais gente, menos chance.

    Grithin inclinou-se um pouco, a voz baixou um tom:

    — Material a gente perde e substitui. Você, não.

    Lou-reen virou em Marco, ferro na voz, um passo mais perto do que conforto permite:

    — Eu não te treinei pra ir a campo sem autorização. Corrente de comando existe por um motivo. Você me informa, eu aprovo. Não o contrário.

    Marco a encarou.

    — Foi isso ou perder o rastro — disse, por fim.

    Ela respirou pelo nariz, ainda tensa.

    — Você não improvisa operação porque “deu na veia”. Última vez. Entendeu?

    Ele sustentou o olhar. “menos uau ela fica linda brava, mais sim, senhora” Nova o provocou.

    — Entendi.

    Ela o encarou mais um segundo, o aço ainda no rosto… e amoleceu meio milímetro.

    — Ainda bem que você voltou vivo.

    O canto da boca quase cedeu, quase. Marco percebeu o orgulho guardado ali.

    Bateram à porta.

    — General, a Maryse acordou.

    Grithin assentiu, já andando.

    — Eu faço o interrogatório. Lou-reen, comigo. — Mavren e Venia se levantaram com as pastas. — Jenff, fica aqui e vigia a sargento e o civil. Até segunda ordem, ninguém sai desta sala.

    — Sim, senhor. — Jenff tomou a porta, mão na guarda da espada.

    Os demais saíram. A sala encolheu num silêncio de quartel. Marco e Kalamera foram para o fundo; Jenff não tirou os olhos.

    Ela sussurrou sem tirar os olhos da porta:

    — Eu tenho quase certeza de quem está por trás de tudo. Se ao menos eu tivesse olhado melhor a runa no bracelete dela…

    Marco abriu a boca:

    — Eu também n—

    “Sério, Marco? Como você conseguiu ser aprovado no Programa Espacial Brasileiro sem prestar atenção em nada?”  Nova cortou, seca. “Toma: replay em HD.”

    A imagem surgiu na mente dele: o aro de madeira, veios, matriz rúnica perfeita.

    Marco olhou por cima do ombro, puxou um pergaminho da mesa e começou a desenhar.

    Jenff deu dois passos, espiando.

    — O que está fazendo?

    Kalamera nem olhou:

    — O general disse que não podemos sair. Não proibiu conversar e desenhar.

    Jenff fechou mais a cara, mas voltou para o posto.

    Marco finalizou: linhas limpas, três hexágonos, anel de fluxo, veios. Kalamera viu… e empalideceu.

    — Eu sei quem fez isso. Ele com certeza mandou roubar o berílio. E se ele já tem o metal e agora já deve ter a selenita verde pura, então só falta montar e testar. Eu preciso impedir.

    — A gente não pode sair — Marco lembrou, baixo. — Ordem direta.

    Kalamera se levantou e caminhou até Jenff. Ele puxou a lâmina dois dedos para fora.

    — O que você quer? Volte a se sentar.

    — Água. — Ela disse, simples, estendendo um braço para a jarra na mesa ao lado dele. Os outros três se moveram como quem não quer nada; um ajuste de ombro, um gesto no ar.

    Jenff acompanhou a mão da jarra com o olhar.

    Kalamera usou outra: um golpe seco no queixo, curto, limpo. O tenente apagou na hora, escorregando pela porta até virar peso.

    — Vamos embora, Marco.

    Ela abriu a porta e saiu. Marco olhou o tenente por um segundo, respirou fundo e foi atrás.

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