Capítulo 039 — Vamos juntos.
A noite cobria a floresta em camadas de sombra. Lanternas pendiam dos cabos, desenhando poças de luz pálida que oscilavam com o vento. As passarelas se estendiam em linhas sobre o vazio, a madeira cedendo um fio sob o passo de Kalamera. Marco vinha meio passo atrás, olhos no escuro entre as copas e no corredor às costas, como quem espera ver um elmo surgir a qualquer instante.
Ele parou e pegou o antebraço dela. Não foi um puxão, só o bastante para ela se virar.
— A gente devia voltar — disse. — Avisar os generais. Do jeito que foi… não tá certo.
Ela olhou para a mão dele, depois para o rosto.
— Certo pra quem?
— A gente nocauteou um oficial.
— Eu nocauteei — corrigiu, sem mudar o tom. — Você só veio.
Ele manteve a mão onde estava mais um segundo, e então soltou.
— Isso pode dar ruim pra você. Pra nós.
— Pior é esperar e deixar alguém perder o que eu perdi. — Ela apontou com o queixo o caminho adiante. — Anda.
Marco ficou um instante, ainda parado na poça de luz. Depois alcançou o passo dela. A lua filtrava por entre as folhas e riscava o piso de claro e escuro enquanto os dois seguiam.
— Eu tinha seis invernos — Kalamera disse, mais para a noite do que para ele. — Fizeram um teste comigo, sem permissão. Uma manopla “aprimorada”. Disseram que ia ser rápido, que era só encaixar e acender a runa. Ela puxou mais essência do que deveria e a peça começou a tremer no meu braço. Alguém falou “calma, segura”, e aí veio o clarão. Quando acordei, não tinha mais os braços.
Marco não achou palavra nenhuma que prestasse.
— O Império sempre teve próteses simples: duas articulações movidas por essência. Seguram uma caneca, empurram uma porta. Servem para o dia-a-dia.
Ela respirou, sem drama.
— Me deram um desses braços simples. Eu botava no lugar e ele obedecia… até eu tentar levantar um martelo. Aí tremia, falhava, perdia toda a minha cabeça só pra mexer um alicate. Não era o bastante. Então eu desenhei outro. Depois mais outro.
Um brilho rápido cruzou o olhar.
— E não só o cotovelo: rotação, pinça, palma, punho. Passei a falar com metal como quem fala com gente. Voltei pra forja e consegui entrar no Colégio. No começo me olharam estranho, então comecei a usar as mangas compridas para esconder. Reclamaram que meus socos doíam mais por causa do metal, então comecei a usar próteses de metais mais leves. Meus socos ainda doíam.
Caminharam mais alguns passos.
— No último ano tem o exercício de sobrevivência noturno. Reclamaram que eu teria vantagem por causa dos braços de metal. Eu fiz a prova sem eles e fui a primeira a terminar. Pararam de reclamar.
Marco assentiu, sem achar comentário melhor que o próprio passo.
— Na Academia, duas mãos não davam mais. Fiz as outras duas e, em pouco tempo, virou automático. Quatro braços como se sempre tivessem sido meus. As mangas nos de cima ficaram por costume.
— E agora você quer impedir que alguém passe pelo que você passou — ele disse, mais como constatação do que pergunta.
O alarme soou.
Uma nota grossa, comprida, varrendo as passarelas. Outra respondeu mais longe. Depois mais uma, ainda mais distante.
Kalamera travou na passarela.
— Já estão atrás da gente.
Marco não parou.
— Então a gente continua na frente. Vem.
Ela correu dois passos e brecou.
— As forjas antigas… eu não lembro o caminho por aqui.
Marco fechou os olhos um instante e puxou da cabeça o mapa: níveis, pontes, curvas.
Nova, rota pras forjas antigas. Agora.
“Até que enfim,” ela bufou. “Sobe duas plataformas, pega a passarela do corrimão duplo, rampa espiral, atravessa o arco grande. Depois segue reto até a passarela larga.”
— Por aqui. — Ele apontou. — Duas plataformas, corrimão duplo, rampa espiral… arco grande, e reto.
Correram.
— Como você decorou tudo olhando uma vez? — Kalamera perguntou, sem perder o fôlego.
Marco tocou a têmpora, meio sorriso.
— Eu te disse: consciência superior.
***
A cauda acertou a lateral de Lou-reen sem aviso. O ar saiu do peito dela num golpe mudo e a general foi lançada como pedra de funda. A primeira árvore entrou na trajetória e estourou ao meio quando o corpo dela atravessou o tronco e um anel de lascas voou em todas as direções. Antes que os pedaços caíssem, ela já tinha rasgado a segunda: madeira cedendo num estalo seco, um túnel irregular aberto de lado a lado. Folhas e pó de casca pairaram por um instante. Lou-reen sumiu na escuridão da mata, além dos troncos partidos.
Grithin entrou no vazio que Lou-reen deixou. A lâmina baixou pelo ombro e bateu em escama; o baque foi seco, a faísca riscou o ar e os cabelos-serpente se voltaram para ele em um estalo.
Ele recuou um passo, outro, deixando as bocas morderem o ar.
Parou alguns metros atrás. O piso de madeira vibrava sob as botas, um zumbido fino subindo pelo osso. O corrimão gemeu, a casca da árvore abriu micro fendas como quem repuxa pele. Ele sentiu a seiva correr fora do ritmo, não só Maryse. A floresta vibrava junto com ela.
Os olhos dele desceram para a base do pescoço dela: o colar. Metal rente à pele, runas respirando. Era por ali que Loryndel estava sendo puxada para dentro dela. Grithin firmou o punho na guarda e expirou, entendendo o que tinha diante de si.
Um cometa de chamas riscou o canto do olho dele: Lou-reen voltando à batalha em alta velocidade. Sem parar, ela cortou a lateral de Maryse num arco baixo. A lâmina entrou pela barriga e saiu nas costas, mas o rasgo mal teve tempo de abrir. Seiva escorreu grossa, e cipós finíssimos brotaram de dentro, costurando o ferimento como dedos nervosos.
Grithin puxou ar para avisar do colar, mas não deu tempo. Uma onda de essência estourou do peito de Maryse e correu pelo tronco como trovão abafado. Ele sentiu a batida mudar no miolo da árvore; ao lado, um pilar vivo se retorceu, galhos virando braços, raízes saindo do assoalho para pegá-lo pela cintura. Grithin girou a guarda, cortou uma raiz e pulou para o lado quando um galho desceu como clava.
Lou-reen elevou o calor e a lâmina brilhou; o ar ao redor estremeceu. Ela afundou o pé para partir de novo e o piso reagiu. Tábuas se ergueram em espiras, talas se torceram como cobras. Um laço de madeira fechou nos tornozelos dela, outro subiu pelo joelho. Lou-reen tentou arrancar no pulso; o chão puxou de volta.
Maryse veio primeiro com a cauda, varrendo baixo. Os braços-serpente avançaram no mesmo fôlego, cabeças abrindo, presas brilhando.
Lou-reen parou de lutar contra o puxão e afundou a lâmina nas próprias amarras. O aço acendeu e o calor subiu pela passarela. As talas chiaram, escureceram, viraram brasa e se quebraram num estalo. Lou-reen arrancou o pé, cortou o segundo laço com fogo.
Grithin caiu ao lado dela, a guarda alta.
— Sem incendiar a floresta, por favor.
Ela ia retrucar, mas viu as fagulhas caindo pelos vãos. Pedaços de tábua em chamas batiam nas plataformas de baixo. Um preso gritou por água, outro encolheu no fundo da cela.
O barulho de botas chegou rápido: soldados, elfos em sua maioria, com as lanças erguidas e olhos arregalados. Alguns já avançavam para a passarela.
— Ninguém entra! — Grithin segurou a linha com um gesto. — Contenham o fogo nas plataformas inferiores. Mantenham as rotas livres.
Lou-reen puxou o calor de volta para dentro da lâmina; só o fio ficou vivo. Maryse sorriu, o colar pulsando no pescoço. A madeira ao redor rangeu, pronta para obedecer.
— Vamos juntos — disse Grithin, sem tirar os olhos dela.
Lou-reen assentiu, pés firmes no centro da passarela, e foi para cima.
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