Capítulo 040 — Isto é o futuro.
As Forjas Antigas eram muitas oficinas, empilhadas como ninhos ao redor de troncos imensos, uma sobre a outra, ligadas por passarelas que já cederam em trechos e por escadas de ripa que o tempo mastigou. Quando o setor foi abandonado, levaram tudo que era de metal: martelos, bigornas, grampos, ferragens. Ficou a madeira, bancadas inchadas, moldes de barro rachados, vigas comidas nas bordas, e a floresta foi engolindo com calma, dedo a dedo.
No meio da ruína, uma exceção: uma oficina ainda respirava. Luz vazava por frestas e um pouco de fumaça saía de uma chaminé.
A mata ali pesava mais. A lua minguante riscava um fio nas copas. O zumbido dos insetos preenchia o fundo; um pássaro riscou o escuro; madeira rangeu distante. Marco e Kalamera chegaram abaixados, pisando onde a ripa ainda aguentava.
Pararam junto ao tronco ao lado, um patamar acima.
— Qual é o plano? — sussurrou Marco.
— A porta inchou com a umidade e as dobradiças estão por dentro — disse Kalamera, baixo, olhando a estrutura. — Não vai ser fácil abrir por fora. Pela lateral tem uma treliça frouxa; dá pra entrar sem ruído. A gente entra e…
Um grito de dor cortou o chiado das lanternas. Vinha de dentro da oficina.
Marco virou o rosto e Kalamera já estava no ar, saltando do patamar do tronco ao lado; os dois braços direitos se alinharam num direto duplo, todo o peso no avanço. O impacto arrebentou a porta para dentro, madeira voando e o batente cedendo num só estouro. Marco pulou logo depois e parou ao lado dela, a espada de Faey já na mão.
“E ela disse que a porta não ia abrir fácil. Toc. Toc.”, disse Nova na cabeça dele, impressionada.
Eles entraram e o ar quente da oficina bateu no rosto deles. Lanternas jogavam luz curta nas bancadas. No centro, de bruços, um elfo adolescente gemeu; o peito subia em respirações curtas e as juntas do equipamento vibravam num ritmo tenso. Ele tentou apoiar a mão, escorregou, e o metal raspou no piso.
Kalamera correu até ele e se abaixou. O peitoral era de berílio: chapa recente, correias de couro novo travando os encaixes no ombro e nas costas. As runas estavam limpas, traço firme, alinhadas às costelas como canais; a selenita verde pulsava fraco a cada respiração, mantendo a condução estável. Ela acompanhou com o olhar a passagem de energia pelas ranhuras, conferiu soldas, distância entre marcas, folga de rebites: tudo no lugar, trabalho de quem sabe o que está fazendo.
— Vieram ver os bastidores do ápice da forja Wynrae? — a voz desceu do mezanino.
Marco e Kalamera ergueram o rosto. No alto, um elfo velho, braços cobertos por peças de armadura talhadas, runas por toda parte, selenita verde cravada como veias.
— Eu devia imaginar que você não desistiria, Hersperon — disse Kalamera, seco, desdém no fio da voz.
Ele abriu os braços, orgulhoso.
— Desistir? Jamais. Isto é o futuro. Veja — apontou o adolescente no chão. — O berílio funciona. As runas se mantêm. Minha visão, enfim, sai do papel.
Marco deu um passo.
— Chamar de “futuro” não apaga o que você faz no caminho. Queimar gente não é progresso. É tirania fantasiada de ciência.
Hersperon riu. O som correu pelo galpão como metal frio.
— O mundo sempre foi assim, garoto. A história pertence a quem ousa. O avanço vem de qualquer jeito. Quem não aceita, é esmagado.
Kalamera cerrou os punhos.
— Quantas vidas você queimou? Quantas falhas jogou em soldados? Eu fui uma. Você me usou de cobaia.
Por um instante o sorriso dele cedeu; voltou duro.
— E olhe pra você. Mais forte do que todos. Você é a prova do meu acerto.
Ele bateu o punho na mureta; as runas pulsaram.
— Agora termino a minha arma definitiva. Nada me impede.
Marco manteve a voz baixa.
— Esse “futuro” não vai passar por cima de crianças. O berílio vai sair daqui. Serve pra construir, não pra matar.
Kalamera alinhou ao lado dele.
— E a sua obsessão termina hoje.
Hersperon sorriu, frio.
— Querem o berílio? Tirem do cadáver do garoto. Se conseguirem. Já me ofereceram um material melhor; vindo de gente que tem visão e não veste farda. Não preciso mais do Império.
Nas costas deles, o adolescente ergueu o rosto, febre nos olhos.
— Agora… agora vão ver. Eu vou esmagar todos e passar no exercício. A Academia vai ter que me aceitar.
Marco e Kalamera recuaram meio passo, abrindo espaço.
Hersperon virou-se para ir. O garoto puxou fôlego, os ombros vibraram e, num salto carregado, atravessou a parede lateral e sumiu na noite, rumo às passarelas.
Kalamera armou o corpo para subir atrás do velho. Marco segurou seu antebraço.
— O garoto.
Ela ficou um segundo indecisa: maxilar travado, os quatro punhos fechando e abrindo. A respiração subiu e desceu. Depois soltou o ar pelo nariz, baixou o queixo e virou para a passagem externa.
A voz de Hersperon soou como lâmina:
— Está na hora dos Wynrae ocuparem o lugar que sempre mereceram. Espero que você não manche meu nome.
Parou um passo antes da sombra.
— …filha.
Kalamera piscou quando ouviu “filha”. Foi um tranco curto antes dela disparar pela abertura da parede. Marco foi atrás, finalmente entendo o por quê a elfa queria parar Hersperon pessoalmente.
As ripas rangiam sob o passo, o vento cortava entre os troncos. Lanternas espaçadas deixavam fendas de sombra. Adiante, lampejos de selenita verde apareciam e sumiam no escuro, pulando de passarela em passarela. O brilho mudou de direção de repente, pegando uma linha lateral que descia para as vias que levavam de volta à cidade.
— Aonde você acha que ele vai? — Marco, correndo ao lado.
— Ele quer se provar — disse Kalamera, respirando no ritmo da corrida. — Falou em passar no exercício. O Colégio deve estar fazendo exercício noturno.
— Pela esquerda então — Marco.
Eles desviaram por uma escada de ripa mais íngreme. O brilho verde saltou dois níveis abaixo, riscando a madeira. Um estrondo abafado veio de longe; o chão tremeu de leve. Do outro lado da floresta, no meio da cidade, um clarão de chamas subiu por trás das copas e ficou dançando no céu.
Marco e Kalamera se olharam por um instante.
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