Estavam de volta à sala de Grithin, e, dessa vez, o general parecia ainda mais bravo.

     — Vocês nocautearam um oficial superior e…

    — Eu nocauteei. Marco só foi embora comigo. — Kalamera o corrigiu.

    O general a encarou por um instante, sem acreditar na ousadia de ter sido interrompido no meio de uma bronca.

    — Então VOCÊ nocauteou um superior e desobedeceu a uma ordem direta minha de permanecer nessa sala até eu retornar?

    — Eu precisava impedir o…

    —  Você, sozinha, não precisava fazer nada. Você agiu sem autorização.

    — Mas nós…

    — Vocês nada!

    O peso caiu na sala. Rilven se adiantou um passo, sem pedir licença.

    — General, se eles não estivesse lá, a gente tinha uma tragédia no Colégio. — A voz saiu limpa. — O garoto não recuava, ignorou ordem de comando, e aqueles golpes com o peitoral vinham com força fora de padrão. Eu estava perdendo a distância e a contenção. Quando vi, o próximo era no meu rosto.

    Grithin virou só os olhos na direção dele.

    — Relatório do acontecido.

    Rilven não enrolou.

    — O peitoral elevou a força do garoto ao nível de um coronel, talvez de um general. Marco e Kalamera chegaram num ponto decisivo. Ele travou o golpe que ia me apagar e entrou no duelo. Igualou primeiro, depois superou com técnica, sequências muito limpas. Quando abriu a brecha, saiu da contenção e foi pra matar. Nesse momento eu intervi e o segurei.

    Lou-reen ergueu o olhar para Marco; ele baixou a cabeça. O olhar dela desceu para a bolsa a tiracolo que ele nunca largava, ficou ali um segundo e voltou ao tenente.

    — Assim, Kalamera desmontou o peitoral: soltou uma pedra, quebrou uma correia, danificou uma marcação. Sem a peça, contivemos o garoto.

    Grithin passou o olhar do peitoral desmontado para o aro sobre a mesa.

    — Mesmo traço. Mesma lógica de puxar essência. — Tocou a borda, reconhecendo a mão. — O peitoral do garoto e o colar da Maryse parecem da mesma oficina. E são perigosos: amplificam, viciam a fonte e deixam quem usa achar que é invencível. Pena não termos tirado respostas junto com a peça; viva, ela diria quem assina isso.

    Kalamera respirou fundo, já em cima do assunto:

    — Isso é obra do Hersperon. Meu pai. Quando flagramos o cabo Taref entregando selenita verde pra Maryse, eu tive certeza. Eu conheço os projetos dele.

    Grithin cortou:

    — Taref está morto. — Deixou cair o dado sem enfeite. — A patrulha que enviei encontrou o corpo dentro de casa. Executado.

    O silêncio bateu e ficou.

    Grithin continuou, seco:

    — Provavelmente os mesmos que levaram o colar até a prisão e mataram dois guardas pra entregá-lo. Tem gente operando aqui dentro.

    Ele virou para Kalamera:

    — Onde está o Hersperon?

    — Fugiu. — Ela não hesitou. — Depois de prender o peitoral no garoto, disse que tinha um novo patrocinador e saiu pelas forjas antigas. Disse também que não tem mais interesse no berílio. Optamos por ir atrás do garoto quando percebemos que ele estava indo em direção ao colégio.

    Grithin assentiu uma vez, como quem fecha um quadro.

    — A prioridade mudou. — A voz não subiu, endureceu. — Encontrar Hersperon. Descobrir quem banca, o que quer, e por quê está disposto a matar dentro do Império.

    Virou para Kalamera.

    — Você está sem patente a partir de agora. E fora das oficinas de Ayas-kin até segunda ordem.

    Ela deu meio passo à frente, indignada.

    — Eu desobedeci pra salvar alguém de ter o mesmo destino que o meu, não foi por capricho.

    — Você desobedeceu ao general e agrediu um oficial superior por interesse direto. — Grithin não piscou. — É o mínimo.

    Kalamera sustentou o olhar por um segundo, fechou a mão, mas engoliu a resposta. Marco se mexeu ao lado dela, um passo de apoio que não virou palavra.

    Grithin voltou-se para ele.

    — Você não é Taeris. Não tenho autoridade pra puni-lo. — Pesou cada sílaba. — Mas enquanto estiver em Ayas-kin, não me arrume mais problemas. Termine seus projetos sem abrir outra frente de incêndio. A próxima confusão nem o Imperador vai te ajudar a permanecer aqui.

    ***

    O quarto de Marco era simples: cama estreita, mesa com ferramentas, janela para as copas. Ele entrou, fechou a porta com o ombro. Largou a espada na mesa; o Cetro ficou na mão um segundo a mais.

    — Por que você me mostrou aquilo? — perguntou baixo, sem dizer “eu ia matar o garoto”.

    “Eu não mostrei. — a voz de NOVA veio limpa na cabeça. — O Cetro impôs a memória sem a minha autorização.”

    — Como assim “impôs”?

    “Há muitos módulos que não dependem de mim. Ele mantém princípios do criador. Quando detecta um padrão que coincide ele injeta referência histórica para orientar a decisão.”

    Marco esfregou o rosto e encostou as costas na porta.

    — Então você não tem controle?

    “Tenho interface e filtros, não soberania. — Fez uma pausa. — Eu acesso e organizo memórias, chaves, protocolos. Posso retardar, avisar, atenuar. O núcleo, às vezes, decide. Foi o que aconteceu na clareira”.

    — Ele quis que eu finalizasse.

    Silêncio. Do lado de fora, folhas roçaram. Marco encarou o Cetro como se fosse alguém.

    — Como eu impeço isso?

    “Você não impede.” — NOVA respondeu sem rodeios. — “O Cetro é um carro que se dirige sozinho. Às vezes ele te dá o volante. E, quando decide, ele toma.”

    Marco fechou os olhos um instante.

    — Então o que a gente faz?

    “Segura junto quando ele permitir. Mantém a intenção alta, clara. Eu posso avisar, posso frear um pouco. Mas o núcleo pode assumir de novo.”

    — E escolher por mim.

    “Ele não assume.” — NOVA corrige. — “Não exatamente. O núcleo age como o criador agiria. Quando reconhece um padrão, aplica os princípios dele. Não é ‘assumir’, é orientar e, se essa orientação coincidir com sua intenção…”

    Marco fica um segundo quieto.

    — Então o que a gente faz?

    “Mantém tua intenção na frente. Eu posso avisar, atrasar, amortecer. Mas, se o padrão bater, ele vai propor o caminho que Clyve escolheria.”

    — E se o caminho dele for matar?

    “Você está com uma espada na mão e treinando pra se igualar a soldados de um império militar em outro planeta.” — NOVA cutucou. — “E se um dia você precisar matar alguém pra se salvar ou salvar alguém?”

    Marco respirou, encarou o vidro escuro da janela.

    — Eu vou fazer o possível pra não chegar nessa decisão.

    “E se um dia você quiser?” — a pergunta veio sem ênfase.

    Ele não respondeu. Deixou o Cetro sobre a mesa, apagou a luz e ficou ouvindo a floresta.

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