Capítulo 053 — O Distrito da Forja
O Distrito da Forja fervilhava com atividade.
O som rítmico dos martelos contra o aço, o sibilo agudo do metal mergulhado em água fria, e o eco dos comandos entre aprendizes e mestres criavam uma sinfonia própria: crua, orgânica e ancestral.
Ali, as fornalhas não dormiam. Desde a fundação do Império, o fogo ardia dia e noite. Todos sabiam que era alimentado por essência, mas ninguém ali já tinha ido até o fundo da forja para ver como as fornalhas eram mantidas.
Quando alguém insistia demais em perguntar, os mais velhos só respondiam:
— É o sopro da Fortaleza. — E mudavam de assunto.
Enquanto os estádios militares se enchiam de gritos, bandeiras e trombetas, ali, nas entranhas de pedra e fogo de Ga-el, outro tipo de batalha se desenrolava. Para muitos dos que se reuniam naquele distrito, a verdadeira olimpíada acontecia ali, entre bigornas, runas e fornalhas.
Eram homens e mulheres que, embora não possuíssem músculos para a arena, sustentavam os exércitos com sua genialidade e suor. Sem eles, não haveria armaduras para proteger nem espadas para empunhar.
E naquela manhã, Kalamera Wynrae atravessava a entrada da Forja Imperial.
Seu casaco leve balançava ao vento enquanto suas botas ressoavam no chão de pedra. Os quatro braços mecânicos, elegantemente dobrados às suas costas, se moviam com precisão e harmonia, como se fossem parte de seu corpo desde o nascimento. Um grupo de aprendizes a viu passar e se calou, apenas observando, com olhos arregalados e respeito silencioso. Ela não era apenas famosa, ela era lendária naquele lugar.
Uma Wynrae, elfa de um clã que, desde antes da fundação do Império, era citado como o aço mais forte do mundo, donos de lâminas únicas e inquebráveis. E ela não ficava atrás: honrava o sobrenome ao ganhar todas as competições das olimpíadas que participara.
A Forja Imperial trazia memórias.
Kalamera estivera ali anos atrás, ainda uma jovem cadete da Academia, cheia de dúvidas e frustrações. Foi ali que ela criara suas próteses, com noites em claro, construindo os braços que havia perdido e descobrindo, aos poucos, um novo jeito de existir. Naquele lugar que começara a usar os quatro braços movidos por essência, não por vaidade, mas por necessidade, por sobrevivência, por inovação.
Claro, todos também sabiam do trágico fim de Hersperon. Sua mente, brilhante demais, começou a se perder nos próprios projetos.
Kalamera sabia de tudo isso, carregava tudo isso.
Por isso, ao passar sob o grande arco da competição, onde dezenas de ferreiros afiavam suas lâminas e ajustavam engrenagens mágicas, ela sentia um frio percorrer-lhe a espinha, não de medo, mas de expectativa.
Ali, ela não era apenas “a garota de braços mecânicos” que causava olhares estranhos no exército. Ali, era uma Wynrae.
— Então voltou pra brincar com fogo de verdade? — disse uma voz grave, cortante, vinda de um dos pavilhões laterais.
Kalamera parou. Reconheceu o tom antes mesmo de virar o rosto.
Nareth Dovar.
De avental grosso de couro e mangas arregaçadas, Nareth tinha os braços cobertos de fuligem até os cotovelos, e os olhos castanhos a observavam com o mesmo desprezo de sempre. Um lenço escuro prendia os cabelos curtos para trás, revelando um rosto endurecido pelo calor das forjas.
Ele havia sido seu colega na Academia. Brigavam pouco com palavras, mas muito em ideias. Enquanto Kalamera buscava leveza, eficiência, adaptação, ele batia na mesa com o punho e dizia que uma espada boa não precisava ser bonita, só mortal.
— Achei que você fosse continuar envernizando espadas delicadas com suas mãozinhas mágicas lá em Ayas-Kin — ele falou, cruzando os braços. — Mas talvez tenha sobrado alguma ambição nesse metal polido.
Kalamera não respondeu de imediato. Apenas olhou para ele com a calma de quem já ouvira aquilo antes e vencera.
— E eu achei que você já teria aprendido a afiar a língua além do aço — disse ela, com um meio sorriso.
Nareth inclinou levemente a cabeça, como se saboreasse o momento.
— Hm. Talvez. Mas palavras não matam inimigos. Espadas sim. E eu prefiro deixar minhas obras falarem por mim… — Ele fez uma pausa, o olhar afiado como lâmina recém-temperada. — A não ser, claro, que você tenha herdado essa preferência pelo experimental.
Kalamera manteve o olhar firme.
— Hersperon Wynrae. Gênio maluco, criador de maravilhas instáveis… e prisioneiro do próprio orgulho. Dizem que enlouqueceu de vez recentemente. — Nareth deu de ombros. — Uma pena. Esperava vê-lo aqui hoje. Ele seria um Wynrae digno de se duelar.
Ela não se moveu. Mas os dedos da mão inferior direita se contraíram levemente.
— Ah, é verdade — continuou ele, agora com um sorriso enviesado — ele não foi o responsável por você perder os braços? Sempre achei isso… poético. Um pai que constrói armas brilhantes e uma filha que vira cobaia do fracasso dele. Vocês dois têm talento, Kalamera. Só precisam cuidar pra não tornar isso uma tradição de família.
Antes que Kalamera respondesse, uma terceira voz ecoou entre eles, cortando o ar denso da forja com autoridade.
— Nareth. Kalamera.
Ambos se viraram.
Entre a fumaça e os estalos do metal, surgiu um homem robusto, com um avental chamuscado e os braços grossos cobertos de fuligem até os cotovelos. O rosto marcado pelas décadas junto ao fogo carregava cicatrizes, mas os olhos brilhavam com nitidez. Sua presença fez os aprendizes mais próximos pararem o que estavam fazendo.
— Mestre Gorthen… — disse Kalamera, erguendo ligeiramente o queixo, surpresa e satisfeita. — Achei que já tivesse se aposentado.
— Me aposentar e deixar esses moleques achando que aço é só estética? Nem em mil invernos — ele respondeu, com um sorriso de canto de boca. Então voltou o olhar para Nareth. — Tem muita fumaça e pouca forja nesse canto. Se quiser vencer, Dovar, use o martelo, não a língua.
Nareth apertou o maxilar, mas não respondeu. Apenas deu meia-volta e sumiu de volta entre as cortinas de fumaça.
Gorthen virou-se para Kalamera, o tom já mais brando.
— E você… Eu soube que andou aprontando nos campos de batalha.
Ela soltou uma risada rápida.
— Um pouco. Mas nada tão complicado quanto dobrar aço mil vezes sem perder o fio. Lembra?
Ele a analisou por um instante, como se medisse o quanto ela havia mudado.
— Lembro, sim. Você tinha nos olhos o mesmo brilho que seu pai. Aquela inquietação maldita dos Wynrae… a queima de não aceitar limites. Hersperon foi meu rival e meu amigo. E agora você está aqui, para competir.
Kalamera assentiu com firmeza.
— Estou. E vim para vencer.
— Então venha. A bancada três é sua. E… Kalamera?
Ela se virou para ele uma última vez.
— Honre o nome Wynrae. Mas mais do que isso… construa o seu.

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