O sol da manhã iluminava Ga-el, refletindo nas imponentes muralhas da cidade-castelo. As ruas estavam cheias, o burburinho de milhares de vozes se misturava com o toque de tambores e trombetas. Era o dia da abertura das Olimpíadas Militares de Taeris.

    Marco manteve o ritmo de Lou-reen pelas passarelas. O destino era a Arena Imperial, toda construída em ferro e pedra, já vibrando antes da abertura.

    Pelotões inteiros desciam para a Arena Imperial em linhas limpas, mesma passada. Ele era brasileiro; já conhecia o empurra-empurra de estádio: alegria barulhenta, bagunça boa. Ali, o oposto: nada de correria, nada de cotovelada, os cruzamentos fluíam como se alguém tivesse desenhado o caminho.

    — Vocês sempre foram organizados assim? — ele perguntou.

    — Desde o colégio a gente aprende a andar junto. Levar isso pra fora do combate é o esperado.

    Passaram por um pelotão vindo no sentido contrário. Os escudos brilhavam com o brasão do dia. Na esquina, um cartaz novo trazia o desenho de um bracelete antigo e a ordem de entregar qualquer pista ao posto mais próximo.

    Dois meninos contavam nos dedos quantos “invernos” faltavam para poderem assistir à arena sozinhos. O som subiu de novo, blocos diferentes batendo no mesmo compasso. A cidade parecia construída para isso.

    Lou-reen começou ali mesmo, sem cerimônia:

    — Antes do Império, o continente era repleto de vilas espalhadas, cada uma lutando por si. Taeris era uma delas. Ga-el Dorbeos nasceu ali. Não era só o melhor guerreiro, era alguém que queria aprender tudo. Saiu pelo mundo, visitou outras vilas, fez amigos, troca de técnica por técnica. Voltava mais pesado de saber do que de armadura.

    Marco sentiu um arrepio subir pela nuca. Aquilo soava estranhamente familiar: sair de casa, andar, aprender, juntar pedaços de mundos diferentes.

    Lou-reen hesitou um instante, depois seguiu:

    — Então surgiu um demônio, varrendo tudo no caminho. Ga-el juntou os amigos e foi à luta com eles. Ele e a companheira se sacrificaram para destruir a coisa. Os seis amigos que restaram uniram as vilas debaixo de uma mesma bandeira. Assim nasceu o Império de Taeris. A intenção era simples e dura: todo mundo treinando, todo dia, pra que se outro demônio viesse, a gente tenha força pra derrubar sem precisar de mais sacrifícios.

    As trombetas invadiram o corredor: o anúncio de abertura.

     — Vamos.

    O estádio, uma construção colossal de pedra e metal, estava lotado. Delegações das seis grandes regiões do império ocupavam suas seções, ostentando seus estandartes com orgulho. O entusiasmo era palpável. Os melhores guerreiros e atletas haviam sido enviados para competir, e a expectativa para as disputas era enorme.

    No camarote dos Generais, Marco observava tudo com fascínio. Sentado ao lado de Lou-reen, ele não conseguia esconder sua surpresa diante da grandiosidade do evento. As arquibancadas vibravam com a energia da multidão, e a arena era tomada por luzes, essência e aplausos.

    Todos os generais estavam presentes, ocupando seus lugares no camarote imperial, e algo chamava atenção: cada um trazia sua arma de costume. Uma lâmina pendia da cintura de Aamerta, simples, mas afiada como a rigidez de sua postura. Luminor mantinha sua lança encostada ao lado da cadeira, a ponta coberta por um fino pano dourado. Hamita, sempre confiante, repousava as mãos sobre as duas espadas curtas que carregava, como se fosse natural trazê-las até mesmo para um evento festivo.

    Marco já havia notado isso antes: eles nunca se afastavam de suas armas. Nem mesmo em reuniões, nem durante refeições, nem ali, na cerimônia de abertura. Como se o dever nunca dormisse. Como se, a qualquer instante, estivessem prontos para lutar.

    Ele olhou para Lou-reen ao seu lado. Ela mantinha a postura relaxada, mas os olhos seguiam atentos a cada movimentação na arena. A espada dela, presa com firmeza na cintura, era tão parte dela quanto os próprios pensamentos.

    Marco suspirou.

    — Eu sabia que seria grande, mas… isso é inacreditável. — Marco comentou, enquanto seus olhos percorriam as arquibancadas lotadas.

    Lou-reen deu um meio sorriso, mas seu olhar estava distante.

    — Como General não posso mais competir. — Sua voz carregava um toque de tristeza.

    Luminor, sentado ao lado, soltou uma risada baixa ao perceber o semblante melancólico da colega.

    — Não se engane, Marco. Lou-reen seria uma competidora temível, aposto que ela estava esperando para quebrar algum recorde. — Ele se virou para Marco, assumindo um tom mais explicativo. — As competições incluem duelos divididos por patentes, provas de arco e flecha, tiro com essência, corrida, natação e, claro, o grande destaque: a Conquista Imperial.

    — Conquista Imperial? — Marco ergueu uma sobrancelha.

    — Uma simulação de cerco, como uma grande batalha de estratégia e resistência. Cada equipe deve tomar a bandeira do adversário dentro de um cenário que simula uma cidade fortificada. É uma tradição antiga. — Luminor explicou com entusiasmo.

    Antes que Marco pudesse processar todas as informações, os tambores ressoaram mais alto, vibrando pelos pilares de pedra e aço do Coliseu Imperial de Ga-el. Um murmúrio percorreu a multidão: a cerimônia de abertura estava prestes a começar.

    No centro da arena, as tochas se acenderam em sequência, formando um círculo de chamas azuladas. Um clarim ecoou nos céus, e então, como manda a tradição, teve início a apresentação especial da região d’A Torre.

    Bailarinos e artistas surgiram, suas roupas vibrantes refletindo os brasões do Império. Com giros graciosos e saltos sincronizados, conduziam um espetáculo que misturava arte e magia. Ondas de essência primordial dançavam ao redor de seus corpos: pétalas de fogo flutuavam no ar, ilusões de criaturas místicas corriam entre eles, e arcos de luz se entrelaçavam como serpentes no céu.

    Era uma verdadeira obra viva. Um tributo ao talento, à disciplina e ao esplendor de Taeris.

    Quando os aplausos começaram a subir em ondas pela arquibancada, o som cessou repentinamente com um gesto do mestre de cerimônias. Os olhos do povo se voltaram para a plataforma elevada, onde o Imperador Ivoney se erguia, com seu manto azul oscilando ao vento. Ao seu lado, os generais se postavam em silêncio solene.

    Ivoney deu um passo à frente. Sua voz, amplificada por essência, ecoou firme e profunda:

    — Povo de Taeris! Guerreiros, criadores e filhos deste império!

    Ele estendeu o braço em direção à arena.

    — Hoje celebramos a tradição. A união de nossas seis regiões em um só coração, celebramos aqueles que vieram antes de nós, que levantaram este império com suor, sangue e essência. Celebramos a honra que carregamos, o dever que escolhemos, e o legado que deixaremos.

    O silêncio da multidão era reverente.

    — Nestes jogos, vocês verão coragem. Verão habilidade, astúcia, poder… Mas mais do que isso, verão espírito. A força invisível que mantém um povo unido mesmo diante do caos.

    O Imperador ergueu o punho cerrado.

    — Que todos se divirtam. Que todos vibrem. Mas que nunca se esqueçam de vigiar. Porque o mundo lá fora não celebra nossa força… ele teme. E por isso, nos observa.

    Seu olhar varreu o Coliseu.

    — Enquanto estivermos unidos, enquanto formos firmes em nossos princípios e ousados em nossos sonhos… nenhum traidor, nenhum invasor, nenhum monstro irá nos destruir.

    Um trovão de aplausos subiu, sacudindo a estrutura colossal. As chamas ao redor da arena se intensificaram, respondendo à vibração do povo.

    Enquanto a multidão aplaudia, Hamita Granlyn se inclinou para Marco e comentou, com um sorriso malicioso nos lábios:

    — Você sabia que generais já puderam competir nas Olimpíadas?

    Marco a olhou com curiosidade.

    — E por que isso mudou?

    — Porque quase destruíram esse estádio. — Hamita riu. — Na primeira edição, Merelda Mandilyn e Luska Dalamyr, dois dos primeiros generais, se enfrentaram em um duelo. Ambos sabiam da resistência um do outro, então lutaram com força total. O impacto de seus golpes rachou a arena ao meio. Desde então, generais são proibidos de competir.

    Marco arregalou os olhos, impressionado. Mas o nome “Mandilyn” o fez franzir a testa.

    — Espere… esse nome me parece familiar. — Ele olhou para Luminor, esperando uma explicação.

    O General d’A Torre sorriu, como se já soubesse que essa pergunta viria.

    — Os Mandilyn fazem parte da história desde que Taeris foi unificada, mil invernos atrás. Nossa família sempre teve um representante entre os generais.

    Marco encarou Luminor por um momento, assimilando o peso da tradição que carregavam. A história daquele império estava viva, e ele, um estrangeiro, começava a perceber o quão profundamente enraizada era a cultura de Taeris.

    ***

    A arena inteira silenciou.

    A competidora de Eley-Vine estava imóvel, o arco estendido, os olhos fixos no alvo à distância.

    535 metros.

    Era o disparo mais longo da prova e talvez o mais importante.

    No camarote, Marco notou que até os generais haviam parado. Lou-reen não piscava. Hamita cerrava os punhos. O imperador observava como se o tempo tivesse congelado.

    A flecha disparou.

    Um sibilo seco cortou o ar, seguido de um silêncio denso. A ponta do projétil cruzou os céus com leve curvatura, desaparecendo contra o brilho do sol até surgir novamente, cravando-se no centro do alvo.

    O impacto foi sutil, mas perfeito.

    O estádio explodiu em aplausos.

    Marco piscou, surpreso.

    — Quinhentos e… trinta e cinco metros? — ele murmurou. — Como eles medem isso?

    “Sistema taeriano de distâncias baseado em segmentos de marcha e comprimento médio de lâminas. Não é equivalente ao sistema métrico terrestre.”

    A voz de Nova surgiu clara em sua mente, serena como sempre.

    “Mas eu converto tudo automaticamente para você. É mais fácil.”

    Marco assentiu sozinho, tentando não sorrir.

    — Então tecnicamente… eu nunca saberei como eles medem as coisas?

    “Você saberia, se eu achasse que era útil.”

    Ele soltou um suspiro leve, voltando os olhos para a arena.

    A flecha ainda vibrava no centro do alvo.

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