— Era disso que eu tava falando!

    Marco parou na entrada, os olhos varrendo o interior da casa adaptada para a festa. Luzes penduradas, panos coloridos cobrindo as vigas de pedra, mesas improvisadas cheias de garrafas, risos altos e cheiro de comida quente no ar. Soldados dançavam, cantavam, suavam. E, pela primeira vez desde que chegara a Taeris, Marco viu um lugar que parecia… não militar.

    Lou-reen parou ao lado dele. Mesmo fora da farda, a postura continuava firme. Não haviam dado três passos para dentro quando uma voz cortou o som da música e do riso.

    — O Brilho do Amanhecer chegou!

    Luminor Mandilyn, camisa aberta, pulseiras de couro nos braços e um copo erguido como uma tocha, estava de pé sobre uma mesa. A lança presa às costas reluzia sob as luzes penduradas, um lembrete de que, por trás do sorriso largo e das piadas exageradas, ainda estava ali um dos generais de Taeris.

    O salão inteiro voltou os olhos para a porta. Lou-reen parou e Marco virou o rosto pra ela.

    — Ele adora você, né?

    — Infelizmente.

    O salão respondeu com gritos e saudação informal. Um grupo bateu palmas ritmadas, outro começou a cantar uma variação bizarra do hino de Ga-el, trocando os versos por elogios improvisados a Lou-reen.

    — BRILHO! DO! AMA-NHE-CER! — gritou Luminor, como um líder de torcida bêbado.

    — Dê uma chance a eles. — disse Marco.

    Lou-reen respirou fundo, cruzou os braços e olhou em volta com aquela cara de quem aceitava tudo isso… por enquanto.

    Ela avançou com passos firmes, abrindo caminho entre os grupos de soldados como uma lâmina invisível. Não precisava empurrar, as pessoas saíam do caminho sozinhas. Marco seguia logo atrás, sorrindo ao ver os olhares que ela atraía, não de desejo, nem de temor puro. Era admiração absoluta, quase religiosa.

    Uma jovem soldado se colocou na frente deles, visivelmente tensa, tentando controlar a respiração. Tinha o uniforme aberto no colarinho e os olhos arregalados demais.

    — G-ge-general Lou-reen… — a voz saiu fina, esganiçada. — É… é uma honra indescritível…

    Lou-reen parou. Apenas assentiu.

    — Continue servindo bem, soldado.

    A garota travou. Os olhos viraram, o corpo amoleceu e ela desabou no chão como um saco de farinha.

    Dois colegas a seguraram antes da queda completa. Um deles fez sinal de que estava tudo sob controle, o outro abanava com um pedaço de pano.

    Marco olhou pra Lou-reen, levantando uma sobrancelha.

    — Você devia avisar antes de falar com as pessoas. Tá perigoso.

    Ela ignorou o comentário e seguiu adiante. Logo chegaram a um espaço mais aberto no centro da sala, onde alguns soldados dançavam em pares ou em grupos descoordenados. Alguém batucava em barris vazios no fundo, e havia música de verdade, bagunçada, com alma, e totalmente fora de sintonia com o Império.

    Marco parou ao lado dela, largou o copo numa mesa e estendeu a mão.

    — Anda. Uma dança. Só uma. Não precisa nem sorrir.

    Lou-reen olhou pra mão dele como se fosse uma adaga afiada. Depois levantou os olhos.

    — Eu não danço.

    — Tá, então só caminha comigo em círculos no ritmo da música. A gente finge.

    — Fingir não é meu ponto forte.

    — E recusar convites simpáticos é?

    Ela ficou em silêncio por um segundo.

    Marco ergueu as sobrancelhas. Lou-reen suspirou.

    — Se eu for, você para de falar até essa música acabar?

    — Prometo tentar.

    Ela encarou mais um segundo, depois deu um passo à frente.

    — Um círculo. E só.

    — Fechado.

    Ele tomou a mão dela com leveza, sem puxar, sem pressão. E os dois se moveram, não exatamente dançando, mas também não parados.

    A princípio, os passos de Lou-reen eram tensos, calculados. Quase uma marcha disfarçada no ritmo da música. Ombros retos, queixo erguido, olhar fixo em algum ponto no horizonte, como se cada giro fosse uma manobra militar que precisava ser executada com perfeição.

    Marco segurava a mão dela, sorrindo sozinho. Não forçava, só guiava no ritmo, leve.

    — Tá vendo? Nem dói — comentou, só pra provocar.

    Lou-reen não respondeu, nem olhou pra ele.

    Mas, aos poucos, o ambiente foi vencendo a rigidez. A música estava longe de ser perfeita, mas tinha uma batida contagiante, desalinhada, cheia de improviso. Gente batucando em barris, palmas fora de compasso, risadas misturadas aos acordes.

    O corpo de Lou-reen começou a se ajustar, não porque ela queria mas porque tentar resistir parecia mais estranho do que simplesmente… deixar acontecer.

    Marco percebeu. Ela já não estava tão rígida. Os passos ganharam mais fluidez, o olhar menos travado. E, num momento breve, ela até girou meio sem perceber, seguindo a mão dele, como se fosse natural.

    — Viu só? — Marco comentou, quase no ouvido dela, sem intenção real de provocar. — Quase parece que você gosta disso.

    Lou-reen virou o rosto pra retrucar e foi aí que desequilibrou. Um dos pés escorregou no piso liso, o corpo cedeu, e, por um segundo, a general de Taeris, o Brilho do Amanhecer, a lenda viva, perdeu totalmente a compostura.

    Marco reagiu rápido, segurando-a pela cintura antes que ela fosse pro chão. A mão dele se fechou firme nas costas dela, puxando no reflexo. O movimento foi seco, direto, tão automático quanto prender a respiração.

    — Calma aí, General — disse, segurando o riso. — Isso não tava no plano.

    Ela ficou imóvel por meio segundo. Depois olhou pra ele… de muito, muito perto.

    — Isso não conta como cair — respondeu, séria. — Eu não cheguei no chão.

    Marco segurou a risada, segurando-a.

    — Técnica perfeita. Zero pontos de penalidade.

    Lou-reen respirou fundo. E só então percebeu que as mãos dele ainda estavam na cintura dela. E que a mão dela, sem perceber, estava segurando o ombro dele.

    Ao redor, fingindo que não olhavam, todo mundo olhava.

    E, do outro lado da sala, ainda em cima da mesa, Luminor balançava um copo no ar, apoiando-se na lança pra não tombar, enquanto discursava pra ninguém e pra todo mundo ao mesmo tempo.

    — Eu falo, e ninguém me escuta! — apontava pra algum lugar no infinito. — As mulheres de Rokhala… ah… as mulheres de Rokhala! — abriu os braços, tropeçando de leve. — Lindas e perigosas.

    Levantou a garrafa, meio escondida atrás da lança, e balançou no ar.

    — E o vinho deles… — deu um gole —… igual! Suave… no começo. Depois te derruba sem nem avisar. — Gargalhou, quase tropeçando, e apontou pra pista de dança. — Aí, olha lá! Eu aposto quatro moedas que aquele sargento vai errar o giro. Quatro!

    Ninguém deu muita atenção. Um soldado riu, outro balançou a cabeça, e alguém no fundo comentou que ele já tava falando com a própria lança.

    No centro da sala, Lou-reen ajeitou a roupa, endireitou os ombros e repetiu, mais pra si mesma que pra Marco:

    — Um círculo. E só.

    Marco cruzou os braços, sorrindo.

    — Aham. Só um.

    Lou-reen sustentou o olhar dele por um instante, deixou escapar um meio suspiro e assentiu sozinha

     — Chega de dançar. — Apontou com o queixo a porta lateral. — Vamos pegar um ar.

    Era o final do primeiro dia das Olimpíadas. E a noite… ainda tava longe de acabar.

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