Índice de Capítulo

    Löerg girava o florete entre os dedos como se fosse leve demais para matar alguém.

    O chão de pedra irregular, coberto de areia fina, estava riscado de sangue, cascalho solto e marcas de impacto. Em volta, o barulho era de arena inteira em colapso: aço batendo, gritos nas arquibancadas, o Imperador dando ordens lá em cima enquanto mais soldados se engalfinhavam. No centro daquele círculo de pedra, Grithin e Löerg se encaravam.

    — General Grithin Kazo — a voz de Löerg saiu limpa, sem pressa. — Dizem que você manda na floresta. Vamos ver o que faz nesse chão de pedra.

    Ele não esperou resposta. A ponta do florete alinhou, o corpo inclinou, e a primeira estocada veio seca, direta ao coração.

    Grithin quebrou o tempo num passo mínimo para o lado. A ponta raspou o peito da armadura. Antes que pudesse retaliar, o segundo avanço já estava em cima. Löerg encurtava e recuava num ritmo quase musical, florete entrando e saindo no mesmo eixo.

    O elfo tentou travar a linha com um corte diagonal. Löerg só recuou meio passo, girou o punho, deixou o aço inimigo passar no vazio e respondeu com uma picada curta no ombro exposto.

    O impacto soou mais como tapa do que como corte, mas o sangue apareceu mesmo assim, marcando o tecido sob o metal.

    — Primeiro toque — Löerg comentou, recuando para a distância perfeita. — Gosto quando começam cedo.

    Grithin não respondeu. O ombro ardeu, mas a dor era velha conhecida. O que pesava mais era o chão.

    Pedra seca e areia morta. Nada que respirasse.

    Ele cedeu espaço.

    Recuou dois passos, depois três, desviando o eixo do duelo para uma das aberturas laterais. Löerg acompanhou sem pensar, satisfeito por manter a pressão. Cada vez que Grithin recuava, a ponta do florete avançava, procurando juntas na armadura, costuras, espaços entre placas.

    — Fugir não é uma estratégia muito criativa, general — o homem de Malrath riu baixo. — Mas é comum.

    Grithin passou pela primeira coluna do corredor de serviço. O som da arena morreu meio tom. As paredes de pedra estreitavam o caminho; colunas alternadas criavam sombras e ângulos. Ele ajeitou a pegada na espada.

    — Não estou fugindo.

    Quebrou o ritmo de novo, dessa vez usando a coluna como terceiro jogador. Avançou junto com ela, sumiu um instante atrás da pedra, reapareceu num ângulo impossível. Löerg se adiantou para estocar o vazio; o florete esbarrou na coluna. O som metálico ecoou apertado.

    Grithin aproveitou a vibração, entrou por dentro da guarda e desceu o aço em diagonal.

    Löerg torceu o corpo numa torção quase elástica. A lâmina do general raspou a lateral do elmo azul e rasgou um pedaço da ombreira. Centímetros abaixo, pegaria pescoço.

    — Melhor — Löerg admitiu, recuando de lado, usando a parede para não perder o eixo. — Mais uma.

    O elfo não insistiu ali. Continuou a recuar, puxando o duelo corredor adiante. Cada coluna era uma batida nova, cada sombra um pedaço a mais entre o centro da arena e onde ele queria estar.

    Lá fora, o som explodia em ondas: metal, gritos, alguém ruindo uma arquibancada. O Império inteiro se matava alguns metros atrás deles. Grithin filtrou tudo. Só ouviu a respiração do homem à sua frente.

    A luz mudou.

    O corredor de pedra abriu para uma saída lateral, onde jardineiras de pedra guardavam fileiras de arbustos baixos, raízes contidas em terra escura. Mais adiante, o verde ficava denso; o parque interno da Fortaleza respirava como um pedaço roubado de Loryndel no meio da pedra.

    Quase lá.

    Löerg percebeu a abertura e apertou o passo. Ali a ponta não trombava em colunas; tinha espaço.

    — Chega de passeio.

    Ele quebrou o padrão e avançou em linha reta, sem o recuo educado de antes. A primeira estocada veio em diagonal, mirando a junção do elmo. Grithin tirou a cabeça do eixo, sentiu o vento do florete roçar a orelha. A segunda veio baixa; o elfo abaixou o tronco e girou o quadril, espada segurando a linha.

    A terceira foi maldosa.

    Löerg desceu a ponta num arco curto, mirando a perna dianteira. Grithin tentou recolher a passada, mas a sola escorregou um pouco na areia misturada com o pó da jardinagem. O florete entrou de raspão pela coxa, cortando a carne por baixo da placa.

    O calor do sangue escorreu pela perna, preenchendo a bota.

    — Dois — Löerg murmurou, recuando o braço sem tirar os olhos do general. — O ombro e a perna. Está somando, general?

    Grithin prendeu o ar por um instante, só para dar formato ao foco, e soltou devagar. A dor estava lá. Ótimo. Dor lembrava que ele estava vivo.

    E ali, finalmente, havia verde.

    Ele deu meio passo para o lado, deixando as jardineiras entre eles. Aproximou a mão livre da borda de pedra. Sentiu o cheiro da terra úmida, o peso das raízes contidas, o grão das folhas.

    Puxou essência. O fluxo subiu pelo braço, espalhou calor nos ossos e desceu para o chão.

    O parque interno ocupava todo aquele setor da fortaleza: gramado espesso, árvores altas, trilhas de pedra entre canteiros. O som da arena chegava ali mais baixo, filtrado pelo verde.

    Grithin cruzou o limite da grama.

    — Está se escondendo no jardim? — Löerg entrou logo atrás, ainda seguro. — Vai pedir ajuda para as flores?

    O elfo não respondeu. Deixou o pé afundar no gramado e, dessa vez, não reteve nada.

    As raízes sob a grama começaram a subir em cristas, criando ondas rígidas no solo. A grama acompanhava, dobrada, traçando linhas novas. Galhos desceram dos lados, inclinando-se sobre as trilhas como se alguém puxasse cordinhas invisíveis. Folhagem se adensou, fechando corredores e recortando o espaço em canais estreitos.

    Löerg deu o primeiro passo à frente e quase perdeu o equilíbrio. A bota bateu numa crista de raiz que não estava ali um segundo antes. A ponta do florete desalinhou, saindo do eixo por um palmo.

    Grithin entrou no meio-tempo, espada buscando a linha entre ombro e pescoço.

    Löerg torceu o tronco por reflexo, plantou o pé no que achou que era chão firme e encontrou outra raiz subindo. O corpo cedeu para trás mais do que devia. A lâmina de Grithin cortou a gola azul, arrancando tecido e um fio de sangue.

    O homem de Malrath recuou um passo mais cuidadoso, com o olhar varrendo o gramado.

    — Ah — ele respirou, rindo pelo nariz. — Então é isso.

    Grithin sentia as árvores como músculos próprios. Cada raiz era parte do passo; cada galho, extensão do braço. Ele estreitou os olhos.

    — Você quis saber o que eu faço com pedra — falou pela primeira vez desde o corredor. — Com planta é mais fácil.

    A folhagem respondeu.

    Löerg testou outro avanço, dessa vez por um corredor lateral entre dois canteiros. Grama mexeu, raiz subiu no timing exato. A ponta do florete outra vez saiu da linha perfeita, inclinando um pouco para cima. O general não aproveitou.

    Queria que ele sentisse.

    Só dois avanços foram suficientes para Löerg entender que o chão tinha dono.

    Ele recuou, girou o florete entre os dedos como se aquecesse, e o sorriso no rosto mudou de tipo. Menos diversão, mais foco.

    — Certo — disse, baixo. — Se o terreno é seu… eu mudo o terreno.

    Grithin estranhou a frase antes de sentir qualquer coisa. O ar em volta de Löerg pareceu ficar mais denso, como se alguém tivesse apertado uma corda invisível ao redor dele.

    O florete alinhou, mas não veio de imediato.

    Löerg primeiro esticou o braço para o lado, desenhando um corte no vazio. Nada visível saiu. Só um som fino, quase um assobio engolido. As folhas mais próximas se abriram com o impacto. A grama ali na frente foi cortada pela raiz, como se uma lâmina invisível tivesse passado rente.

    Grithin sentiu o vento bater no rosto meio segundo depois.

    Löerg girou o punho, avançou um passo e começou a costurar o espaço com cortes que não estavam onde a espada dizia que estavam. Cada movimento do florete arrastava uma lâmina de ar um pouco à frente, estocadas que estouravam no vácuo e chegavam antes da ponta metálica.

    O alcance tinha dobrado.

    — Magia de vento — Grithin mordeu por dentro, reconhecendo o padrão. — Ótimo.

    A primeira lâmina de ar veio baixa, mirando sua canela. Ele moveu o pé para fora do eixo e sentiu a grama ser ceifada onde o tornozelo estava um instante antes. A segunda subiu direto para o peito; o elfo ergueu a espada, bloqueou o nada e ouviu o impacto do ar comprimido contra o aço. O golpe empurrou o braço para trás com força real.

    O parque começou a ser recortado.

    Folhas voavam em tiras. Grama saltava em pedaços. A própria arquitetura vegetal da armadilha virou alvo.

    Grithin não podia deixar.

    Puxou mais essência do tronco à esquerda. As copas de duas árvores próximas balançaram em direções opostas, criando uma espécie de cortina viva entre ele e Löerg. As lâminas de vento bateram naquela barreira de folhas densas; duas delas perderam força, atravessando já fracas o outro lado.

    Mesmo enfraquecidas, uma ainda marcou a armadura.

    Löerg riu.

    — Gostei. Defesa ativa.

    Grithin respondeu com o parque.

    Um galho grosso desceu de lado, como um martelo horizontal, mirando a linha do braço de Löerg. O homem girou o florete e recuou meio passo, o galho roçou o elmo e quebrou atrás dele com estalo seco. Ao mesmo tempo, uma raiz subiu por baixo, buscando o calcanhar.

    Löerg sentiu o chão erguer o pé. O corpo subiu uns centímetros, perdeu tração. Era a brecha que qualquer outro general de Taeris teria usado para atravessar o peito do inimigo.

    Grithin entrou… e encontrou ar cortando na cara.

    Löerg não precisava mais de tração para atacar.

    O florete girou no vazio, sem contato com nada que não fosse o próprio vento. A lâmina invisível que saiu do movimento atravessou as duas barreiras de galhos e folhas num ziguezague curto. A única coisa que Grithin conseguiu fazer foi virar o corpo.

    A lâmina de ar pegou no antebraço.

    O metal da braçadeira segurou metade. O resto entrou rente à borda, rasgando pele e músculo. O mundo perdeu nitidez por um segundo. Sangue escorreu quente até a palma.

    Grithin quase deixou a espada cair. Apertou o cabo com mais força.

    Löerg pousou de novo no chão com elegância teatral, como se o desequilíbrio anterior tivesse sido coreografado.

    — Três — enumerou, sem esconder a satisfação. — Ombro, perna, braço. A próxima costuma ser fatal, mas dizem que você é importante. Posso reduzir.

    O vento em volta de Löerg girava agora como uma espiral contida. Cada movimento do florete lançava duas coisas: uma rajada frontal, larga, que empurrava, e, logo depois, um dardo de pressão, mais concentrado, que cortava. Ele alternava os dois com precisão irritante.

    Grithin tentou avançar contra a maré, encurtar a distância para o ponto em que floretes perdiam vantagem.

    A rajada frontal o pegou no peito, não como um soco, mas como uma parede. O ar comprimido empurrou o corpo para trás, cavando marcas profundas na grama com as botas. Logo em seguida o dardo veio rente ao solo, cortando o gramado em linha reta até bater na borda da armadura da canela.

    Ele cedeu mais dois passos, obrigado.

    O corredor vegetal que tinha criado virou túnel de recuo. Galhos acima, raízes nas laterais, pouca saída.

    Löerg caminhava à frente dele, sempre a uma distância confortável, florete ligeiramente baixo, ponta nunca totalmente alinhada… até o momento exato da próxima estocada de ar.

    Grithin sentia o parque gritar.

    Cada lâmina de vento que atravessava a folhagem deixava um buraco que ele demorava mais para fechar. Raízes cortadas não se recompunham tão rápido. A armadilha que deveria imobilizar o inimigo estava sendo aberta à força.

    Ele tentou mudar a cadência.

    Fingiu ceder mais um passo, baixou a guarda um centímetro a mais do que deveria, convidando Löerg a entrar no half-beat, aquele instante em que os dois corpos se cruzariam antes da lâmina completar o percurso.

    Se conseguisse uma entrada rápida, o vento não teria espaço.

    Löerg comprou a isca.

    As botas afundaram mais na grama, o corpo inclinou, o florete avançou numa linha quase perfeita para a costela. Grithin girou o tronco com tudo o que tinha, desceu a espada em trajetória oposta, pronto para atravessar o braço do homem e, com sorte, o peito.

    O vento não deixou.

    Antes que o aço encontrasse carne, uma rajada seca explodiu entre eles, tão forte que o ar estalou nos ouvidos. Não havia gesto visível que justificasse aquilo; era como se Löerg tivesse condensado o próprio passo na magia. A pressão bateu no peito de Grithin e cancelou o movimento, jogando-o um passo inteiro para trás, meio em pé, meio tropeçando.

    A lâmina dele terminou o arco cortando só folhas.

    O half-beat morrera.

    — Não, general — Löerg sacudiu a cabeça, quase com pena. — A curta distância também é minha agora.

    As raízes que Grithin já tinha levantado tentaram segurar a linha, levantando cristas para travar as botas do inimigo. Löerg passou cortando. As lâminas de ar desciam não só no corpo do general, mas no chão à frente, abrindo trilhas limpas pelo gramado.

    Onde tinha ondulação, passava a ter corredor.

    Os galhos que Grithin chamava como batentes quebravam antes de tocar o homem, cortados no meio por um golpe invisível. O parque inteiro, pouco a pouco, se remodelava para favorecer o invasor.

    O vento lambia as árvores como fogo.

    Grithin sentiu a respiração começar a pesar. Ombro latejando, coxa queimando, antebraço que não respondia direito. O vento ainda assobiava pelos cortes da armadura, marcando o metal em riscos claros.

    Um dardo de pressão acertou o peito outra vez, dessa vez um pouco mais alto. A armadura segurou; o impacto cavou o ar dos pulmões.

    Mais um recuo.

    As árvores atrás dele encostaram as costas. Dois troncos grossos, tão próximos que mal passava uma pessoa entre eles. Raízes erguidas formavam uma borda difícil de transpor sem tropeçar. A armadilha que usaria contra qualquer outro inimigo agora era a parede dele.

    Encurralado.

    Grithin apertou a espada na mão boa, o braço ferido colado ao corpo para não desperdiçar sangue. O verde à volta continuava respondendo, mas menos rápido, como se estivesse ofegante com ele.

    Löerg parou a poucos metros, no centro do corredor aberto à força. Estava inteiro. Armadura azul marcada por riscos superficiais de folha e madeira, nada profundo. Respirava rápido, mas controlado. O florete apontava para frente, não mais em provocação, e sim em sinal de execução metódica.

    — Aqui terminamos — ele disse, simples.

    A ponta do florete subiu um pouco, alinhando com o pescoço. O vento em volta dele girou num redemoinho estreito, pronto para lançar outra sequência de cortes.

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