Capítulo 069 — Hamita vs Auhra
O chão de pedra da arena imperial ainda tinha as marcas do desfile das Olimpíadas: riscos de treinamento, pontos escurecidos onde antes havia pedestais, o círculo central bem desenhado. Agora, era só campo de guerra.
As outras frentes já estavam presas em seus próprios problemas. De um lado, o som pesado de impacto marcava Koopus contra Pátkos. Mais acima, clarões de essência cortavam a saída por onde Grithin e Löerg tinham sumido em meio a escombros e infiltrados. Serana sumira com Lou-reen pelos telhados fazia tempo.
No centro da arena, sobraram duas.
Hamita estava no círculo, as duas espadas baixas nas mãos. Ombros soltos, peso firme nos calcanhares.
Do outro lado, Auhra caminhava na direção dela como se cruzasse um corredor vazio. Armadura leve, placas claras sobre tecido escuro. Os olhos prateados não piscavam. Cada passo parecia falhar o som; nem batida de bota, nem metal raspando.
A luz começou a subir nas mãos dela.
O fogo nasceu branco, compacto, colado na pele. Nenhum estalo, nenhuma faísca. Só o brilho que crescia ao redor dos dedos como um véu.
Hamita inclinou a cabeça, avaliando, e deixou um sorriso abrir o rosto.
— Só sobrou você, então.
Auhra não respondeu. O fogo subiu até metade dos antebraços, colado como uma segunda pele.
Por alguns segundos, a arena manteve um silêncio estranho. O rugido antigo da plateia ainda parecia preso nas paredes altas, mas ali embaixo, no anel, não vinha nada além da respiração das duas e o barulho distante de luta nas arquibancadas.
Hamita avançou primeiro.
Disparou para a frente, espada da direita subindo em diagonal, a outra fechando por baixo pronta para atravessar costela.
Auhra ergueu o braço e lançou o fogo.
A chama branca cruzou o círculo central num traço amplo, de um lado da arena ao outro. Não veio calor. Onde encostava, a pedra clareava, rachava e virava pó fino que o ar espalhava.
Hamita não freou.
Flexionou as pernas e entrou na faixa como se atravessasse chuva. Por um instante, o corpo sumiu dentro do brilho branco. As bordas da capa se desfizeram em tiras que se desmancharam antes de cair. A placa da couraça arranhou por fora, como se alguém passasse lixa.
Nenhuma queimadura. Nenhum choque quente. Só a sensação seca de algo raspando o equipamento.
Ela saiu do outro lado já dentro da guarda de Auhra, espada descendo.
— Entendi. — murmurou. — Você mata a coisa. Não esquenta.
Auhra deslocou o tronco o mínimo necessário. O fogo colado no braço acompanhou o movimento; a lâmina de Hamita cortou o ar, raspou perto demais da armadura e não pegou.
A segunda espada subiu mirando as costelas. Os olhos prateados só viraram.
Um passo curto para trás, peso no calcanhar, e o aço passou rente, arrancando um pedaço de tecido que virou pó antes de tocar o chão. Auhra não bloqueava. Deixava as lâminas errarem.
Hamita insistiu.
Pisou fundo, deixou a essência descer para o chão da arena. Sentiu as rachaduras, os pontos onde a pedra cedia menos, o desenho do círculo central sob as botas. O barulho de luta fora dali sumiu. Ficou só o corpo à frente.
Mais três golpes. Horizontal, estocada, giro com o quadril levando a espada até a altura do ombro dela.
Mais três desvios limpos. Auhra sempre meio passo fora da linha, mantendo o fogo como uma borda segura entre ela e o aço.
— Vai só fugir? — Hamita deixou escapar, sem irritação. — Ou esse fogo faz algo além de estragar meu equipamento?
A resposta veio em área.
Auhra abriu os braços e o fogo se espalhou, deixando de ser só luva. Um leque branco varreu o lado direito do círculo, rente ao piso, comendo o desenho das marcas no chão da arena. Onde passava, o traço antigo de treino sumia. A base das colunas internas começou a perder quina.
Hamita recuou meio passo, calculado. A borda do leque passou pela ponta de uma das botas; o couro clareou, esfarelou e desapareceu, deixando a borda da sola exposta.
Nada de calor no pé. Só o incômodo de sentir o ar onde antes tinha material.
Ela olhou aquilo com mais interesse do que preocupação.
— Agora sim. — comentou, o sorriso ainda lá. — Esse é bom.
Deslocou-se pela lateral do círculo, tentando abrir ângulo. Auhra acompanhou, girando com ela, mantendo o leque sempre apontado para onde Hamita tentava achar espaço.
No meio da dança, Hamita jogou a pergunta:
— E o guerreiro das sombras do museu? — a voz saiu firme, sem perder ritmo de perna. — O que roubou o bracelete. Cadê ele?
Nada.
Auhra manteve o mesmo rosto, o mesmo movimento. O leque de fogo roçou mais uma faixa do chão da arena, apagando uma velha marca de impacto.
— Não sabe quem é? — Hamita insistiu, girando de novo. — Ou só não quer contar?
Silêncio.
O fogo começou a encolher, concentrando na frente do peito de Auhra. O brilho ficou mais denso, o arco virou linha.
Ela lançou.
Uma coluna de chama branca saiu reta, altura de tórax, apontada direto para Hamita.
A general embainhou as duas espadas nas bainhas num gesto automático. No mesmo segundo, a palma da mão encostou na pedra do círculo.
Uma muralha se ergueu.
Rocha subiu do chão da arena entre as duas, um bloco sólido fechando a visão. Um instante depois, a coluna de fogo bateu na superfície. A vibração correu pela estrutura; a camada externa começou a se desfazer, virando pó, deixando buracos rasos na frente.
Não era explosão. O fogo foi comendo a muralha até quase abrir. Quando a pedra começou a ceder de vez, Auhra interrompeu o fluxo para ajustar a mira.
Foi aí que quebrou.
No momento em que a chama apagou, Hamita surgiu na lateral da parede, encostada na borda, já dentro do alcance dela. Não teve corrida, não teve aviso de passo. Um instante antes, só muralha. No seguinte, Hamita estava ali.
O braço dela já vinha em movimento.
O punho entrou seco no centro do tronco de Auhra, bem no estômago, por cima da armadura. O som foi curto. O corpo dela dobrou e saiu do chão, voando para trás. Passou pela borda de pedra da arena e atravessou o espaço entre duas fileiras, bateu nas costas de um banco de pedra e rachou o bloco.
Hamita a girou a cabeça, conferindo o restante da arena.
As arquibancadas estavam em guerra. Soldados de Taeris desciam em blocos quebrados, tentando obedecer à ordem de retirada, alguns carregando feridos, outros segurando escudos para abrir passagem. No meio deles, homens com o mesmo azul no uniforme atacavam pelas costas, usando a confusão como cobertura.
Auhra tinha sumido naquele setor, onde os degraus estavam rachados.
Hamita puxou ar, ajeitou a pegada das espadas e correu até a borda da arena. Subiu dois degraus com um salto só, entrando na linha de retirada.
Um soldado verdadeiro quase trombou com ela, viu quem era e abriu espaço na mesma hora.
— General! — ele puxou um companheiro ferido para o lado. — O corredor norte tá entupido!
— Então usem o sul. — ela nem parou. — Se alguém virar contra vocês, derrubem.
Um “soldado” de azul veio de frente, lâmina baixa, mirando as costas de quem fugia. Nem olhou para Hamita; ela era só mais uma silhueta no caos.
Ela passou a espada pela cintura dele sem frear.
O corpo dobrou pelas pernas, a mão soltou a arma. Um outro infiltrado, mais atrás, ergueu o braço para lançar essência, mas uma sombra maior chegou primeiro.
Ivoney.
O Imperador surgiu dois lances acima, já com a mão fechada no colarinho de outro falso soldado. Puxou o homem para frente e usou o corpo dele como escudo para travar a estocada do terceiro. A lâmina bateu na couraça errada; Ivoney girou o tronco e arremessou o que segurava em cima do que atacava.
Os dois caíram juntos no corredor entre fileiras, derrubando mais um infiltrado que vinha por trás.
— Divertindo-se, Hamita? — ele falou, sem tirar os olhos do próximo alvo.
Ela subiu mais um degrau, parando na mesma linha que ele. Atrás, soldados imperiais aproveitaram a brecha aberta e empurraram a retirada adiante.
— A melhor Olimpíada em anos. — respondeu, medindo rápido o entorno.
Um infiltrado tentou usar o momento para enfiar uma faca na lateral de um recruta que passava. Hamita nem virou o corpo; só avançou a lâmina para o lado, acertando o punho dele no meio do movimento. A faca caiu, o soldado de Taeris aproveitou e empurrou o inimigo escada abaixo.
Ivoney varreu o campo com o olhar, o maxilar preso.
— Onde está Luminor?
Hamita não viu o general em lugar nenhum. Só mais azul, mais sangue, mais pedra rachada. E, alguns degraus acima, Auhra começava a se erguer. A armadura tinha um amassado evidente no centro, o metal afundado onde a espada tinha acertado. A respiração ainda vinha alta, mas o rosto continuava neutro.
As mãos dela se abriram.
Desta vez, o fogo não se espalhou. Fechou nos dedos, formando garras brancas que passavam da ponta das unhas. As “lâminas” de chama se projetavam um pouco além, firmes, coladas às falanges, sempre silenciosas.

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