Capítulo 071 — Espadas afiadas são desnecessárias.
Nareth Dovar vinha na direção dela, passo firme, expressão acesa demais para o cenário em volta. O peitoral de mirthril cobria o tronco como uma segunda pele polida, as bordas marcadas por linhas de runa tão finas que pareciam gravadas a bisturi. O brilho não exagerava: um reflexo contido, pulsando perto do centro, como se o metal respirasse.
Nareth bateu a mão espalmada no próprio peito. O som reverberou pelo corredor, grave.
— As runas dele são inacreditáveis. — os olhos dele brilhavam de empolgação genuína. — O Império foi tolo em ignorá-lo.
Ele. Não precisava de nome.
Kalamera sentiu a mandíbula travar antes da resposta.
— O Império não sacrifica os próprios soldados por “avanço”.
A frase saiu limpa, sem levantar a voz.
Nareth inclinou um pouco a cabeça, como quem ouve, mas não concorda.
— Você fala isso porque só viu o começo. — Ele deu mais um leve toque no mirthril, quase carinhoso. — Agora que ele tem acesso à Espada da Chama Eterna, o que pode criar é inimaginável.
As palavras ficaram penduradas no ar.
Espada da Chama Eterna.
Por um segundo, tudo ao redor sumiu.
Kalamera viu o reflexo da chama perene nas paredes das forjas de Ga-el, o brilho constante no fundo dos olhos de Gorthen quando falava da “fonte” da Fortaleza. Imperador, seis generais, chefe do Distrito das Forjas. Só.
Como ele…?
O estômago dela gelou de um jeito estranho. O raciocínio fechou rápido, direto.
Quando Gorthen caiu, a Espada sumiu. Ninguém sabia com quem estava. Ninguém deveria saber, mas Nareth falava dela como quem fala de uma ferramenta na própria bancada.
Se a Espada foi levada quando o corpo de Gorthen ainda estava quente, e Hersperon agora a usava, a conta fechava sozinha.
Então foi ele.
Não Nareth, Hersperon.
— Entendi. — ela murmurou, mais para si do que para Nareth.
Ele nem perguntou o quê.
Kalamera avançou.
Base baixa, peso nos calcanhares, o corpo girando num eixo curto entre cintura e ombros. Os quatro braços trabalharam em sequência e sobreposição: dois punhos fechados no centro, vindo em linha reta; um gancho de metal buscando a costela; o último braço subindo pronto para travar qualquer contra-ataque.
Os impactos bateram no peito de Nareth como martelos bem colocados.
O corpo não deu um passo para trás.
Ele só desceu um pouco o olhar para os braços dela encostados no peito dele, como quem confere um detalhe técnico.
— Primeiro choque, então? — a voz saiu leve.
Kalamera recuou um passo; a vibração subiu pelos ombros e pela coluna. Em um dos braços de metal, uma sequência de peças atrasou um instante, o conjunto engasgando no meio do movimento.
Ela corrigiu no reflexo, puxando essência para os pontos de ligação. As peças voltaram ao lugar, e o metal respondeu de novo em ritmo uniforme.
Nareth respirou fundo.
O brilho contido no centro do peitoral se intensificou. Não lançou clarão pelo pátio; afundou no metal. Veios de essência correram pelas runas, como se alguém tivesse girado um registro e deixado o peitoral puxar tudo de uma vez.
— Agora eu. — ele avisou, quase educado.
O passo que ele deu à frente pareceu pequeno. O impulso, não.
Em um piscar, ele entrou na guarda dela. Ombro baixo, quadril alinhado, o cotovelo colado ao corpo. Não precisou de giro elaborado. Só deixou o corpo inteiro entrar no movimento e descarregou o peso, amplificado pelo buff do peitoral, no centro do tronco dela.
O mundo virou um borrão.
Kalamera sentiu o impacto abrindo tudo por dentro, o ar expulsado dos pulmões numa única rajada muda, a coluna recebendo a carga antes de qualquer pensamento.
A batida ecoou alta.
Ela bateu de costas na pedra e deslizou meio palmo antes de conseguir firmar os pés. Um gosto metálico subiu na boca; alguma coisa quente escorreu do canto dos lábios. O ruído agudo no ouvido demorou para baixar.
Uma das próteses superiores falhou na mesma hora.
O dedo anelar travou na metade do caminho, a articulação soltou um estalo errado e o braço inteiro ficou rígido, fora de compasso com os demais. A sensação era de peso morto pendurado no ombro.
Kalamera prendeu o fiapo de ar que ainda tinha, fechou os olhos por um segundo e puxou essência.
Ela visualizou o braço de metal por dentro: eixo, juntas, pinos, engrenagens. Soltou a tranca que tinha prendido em algum ponto, forçou o fluxo pelos veios de metal até o trecho emperrado, empurrou o encaixe de volta pro lugar. O braço sacudiu uma vez, duro, depois se soltou. Voltou a responder.
Ela abriu os olhos.
Nareth ainda estava no mesmo lugar, a poucos passos, postura relaxada. Nem parecia ter se movido tanto assim. As runas no peitoral voltaram ao brilho contido, como se estivessem satisfeitas com o teste.
— Vê, Kalamera? — ele ergueu o queixo, sem alterar o tom. — Com isso aqui, espadas afiadas são desnecessárias.
Ela enxugou o sangue com o dorso de um dos braços de metal e o encarou. O peito ardia por dentro, uma pontada insistente a cada vez que puxava ar.
— Você estava lá. — falou.
Não precisava de contexto.
Os olhos dele só piscaram uma vez. Não confirmou, mas também não negou.
Dessa vez, foi ele quem avançou.
Nareth veio seco, sem aviso. O primeiro golpe não foi no rosto nem no peito: foi num dos braços de metal dela, um cruzado de antebraço que acertou bem na região das juntas. O impacto quebrou o desenho inteiro; peças voaram pelo pátio em chuva de aço.
— Anos. — ele falou, enquanto o braço desmontava. — Anos ouvindo “Kalamera Wynrae isso, Kalamera Wynrae aquilo”.
Ela tentou fechar a guarda com os três braços que sobravam, mas ele não deu espaço. Entrou de novo, desta vez no centro. Palma aberta no peito, o peitoral brilhando junto, empurrando a força pra frente. Kalamera sentiu o mundo recuar um passo sem que os pés dela saíssem do lugar. Costelas reclamaram alto.
— A pequena Wynrae genial, a filha do mestre, a promessa das forjas. — a voz dele veio perto, estável demais. — Enquanto eu segurava martelo e calava a boca.
Ela girou o corpo, tentou usar um braço de baixo pra puxar o calcanhar dele. Nareth já esperava. Levantou a perna, deixou o golpe passar por baixo e desceu o peso do pé no braço metálico dela, bem no meio.
O braço cedeu.
Mais peças se soltaram, rodando no chão. Ela manteve dois.
Kalamera rosnou algo que não virou palavra e entrou mesmo assim.
Dois braços só, corpo machucado, velocidade no limite. Ela mirou a garganta, o maxilar, a lateral do peitoral, qualquer ponto sem mirthril direto. Ele acompanhou tudo como se estivesse vendo um treinamento repetido.
Desviou um, travou outro, usou o próprio impulso dela pra girá-la.
De repente, o chão estava nas costas dela outra vez.
Nareth caiu junto, joelho no abdômen, uma das mãos prendendo o punho metálico que restava, a outra segurando o “antebraço” próximo ao ombro. Bastava um pouco mais de força e ele desmontava o terceiro.
O rosto dele ficou a um palmo do dela. O peitoral ainda pulsava, quente.
— Eu passei a vida inteira debaixo da tua sombra. — murmurou. — Hoje, quem fica no chão é você.
Ele apertou.
O impacto atravessou o corpo dela, um estalo fundo nas costelas. O ar simplesmente não veio. Por um segundo, o pátio sumiu numa borda escura.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.