Capítulo 072 — Distrações custam caro.
O ar raspava na garganta de Lou-reen.
Ela ficou de pé por teimosia, não por força. O peito subia pesado, cada puxada de ar vinha com gosto de ferro. O manto, antes limpo e rígido, agora virara tecido colado em pele por sangue e poeira. Um fio quente escorria do antebraço direito até o punho, entrava na luva, e a empunhadura da espada já não era couro: era lodo vermelho.
A lâmina tremia, não de medo, mas de falta de músculo.
Do outro lado do espaço quebrado entre duas torres menores da arena, Serana não parecia cansada.
Ela parecia… acesa.
O corpo dela se movia como se a luta fosse música e ela tivesse ensaiado aquilo a vida inteira. A cada passo, o tecido rodava e soltava gotas. Não era só sangue do chão; havia sangue nela, recente, brilhando sob a luz irregular que vinha das arquibancadas em chamas.
As mãos já não eram mãos.
Eram garras, negras, longas demais para serem humanas. As pontas pingavam, e o gotejar marcava o tempo num silêncio que não devia existir naquele lugar.
Os olhos dela não tinham foco de guerreiro, tinham devoção.
— Você aguenta mais do que eu queria. — a voz veio baixa, quase íntima, como se Serana falasse dentro do ouvido dela. — A “princesa” do Império.
Lou-reen sentiu o termo bater no estômago. Não era título, era deboche. Nos reinos vizinhos, onde trono tinha fila de sangue, chamavam os Generais de príncipes e princesas, como se o Império fosse só uma monarquia com armadura. Serana sabia disso. E sabia que, em Taeris, aquela palavra não existia.
Ela firmou o pé na pedra rachada e puxou a espada para a linha do corpo.
Serana caminhou, passos felinos, sem pressa.
— Você luta bem. — o canto da boca dela subiu, só um pouco. — Mas você não luta com propósito.
Lou-reen não respondeu. A resposta estava na postura: ombro encaixado, punho firme, lâmina na altura do coração.
Serana inclinou a cabeça.
— Eu luto por ele.
“Ele.”
Lou-reen avançou.
O primeiro passo foi limpo, o segundo veio com dor no quadril.
Serana sumiu.
Lou-reen sentiu o vazio atrás dela um instante antes do impacto. O ar gelou na nuca. Quando tentou virar, já era tarde.
Algo bateu nas costelas com muita força. O tronco torceu e o chão saiu debaixo dela. Ela atravessou o espaço e acertou uma torre menor.
A alvenaria cedeu com um som grosso, como um animal velho quebrando ossos. A torre rachou no meio, e Lou-reen atravessou, levando junto um pedaço do muro e uma chuva de poeira.
Ela caiu no outro lado com a boca cheia de pó e sangue.
O chão tremeu com o resto desabando.
Lou-reen tentou se levantar rápido. O corpo não obedeceu.
Serana já estava ali, do lado de fora dos escombros, sem uma marca de hesitação. As garras pendiam, úmidas, como se a própria sombra dela tivesse virado lâmina.
— Onde está sua vontade? — Serana abriu os braços, como quem apresenta um palco. — Sua paixão? Seu ódio?
Lou-reen apoiou a espada no chão por um segundo, usou a lâmina como bengala, e ficou de pé. O antebraço queimava. As costelas doíam num padrão errado.
Ela ergueu a espada de novo.
— Meu propósito não é te agradar.
Serana soltou um som que quase parecia riso, mas não era leve. Era alegria de quem encontrou um inimigo que ainda se mexia.
— Proteger os outros não é propósito. — ela deu mais um passo. — É medo de perder.
Lou-reen sentiu a língua procurar a ferida na boca e sentiu o gosto do próprio sangue.
O caos da arena vibrava por todos os lados: explosões abafadas, gritos quebrados, clarões de essência que não iluminavam direito, só desenhavam sombras rápidas nas paredes. Lá em cima, onde antes havia camarote, restava uma ruína escura, madeira, pedra, metal retorcido.
— Marco…? — a palavra saiu baixa, rasgada, como se ela estivesse pedindo permissão ao próprio peito para respirar.
Serana avançou.
Lou-reen tentou girar, mas o quadril falhou meio tempo. A primeira garra passou perto do rosto e levou um fio de cabelo com pele. A segunda veio no ângulo de costela. Ela sentiu a ponta entrar e arranhar por dentro, como unha em pedra molhada.
A dor subiu e a visão afinou.
Serana ficou perto. Perto demais para ser só combate.
— Está fora de si. — o sussurro veio com um peso quase triste. — Ele mexe com você, não é?
Lou-reen tentou responder com a espada.
A lâmina subiu, pesada, e encontrou ar.
Serana já tinha se afastado um passo, e o passo dela não tinha som.
— Você devia saber. — Serana ergueu uma das garras, e o sangue desceu pela lâmina negra como verniz. — No campo de batalha, distrações custam caro.
Lou-reen deu um passo para trás. O calcanhar escorregou na poeira fina. Ela firmou de novo, mas a perna esquerda tremia.
Serana girou no ar.
Não foi um salto bonito; foi um gesto cruel, calculado, sem desperdício.
A garra cravou na coxa de Lou-reen.
Entrou com facilidade indecente. A sensação foi de metal atravessando carne como pano molhado. O joelho cedeu, o mundo baixou, e a espada raspou no chão, soltando faíscas pequenas que morreram rápido.
Lou-reen caiu de joelhos.
O som da armadura batendo na pedra não foi alto. O corpo dela já não tinha peso suficiente para fazer barulho.
Ela tentou puxar a perna. A garra saiu devagar, como quem gosta de sentir o corte terminar. O sangue veio junto, quente, e encharcou a lateral da bota.
Serana ficou acima dela.
De cima, a expressão dela parecia quebrada em dois: algo que quase era compaixão e algo que era êxtase puro. Não havia ódio ali. Só certeza.
— Você perdeu. — Serana falou como se anunciasse um resultado inevitável. — Agora… descansa.
Lou-reen tentou levantar a espada. A lâmina subiu dois dedos e parou.
A imagem que a mente dela insistia em repetir era Marco no camarote destruído.
Ela tentou puxar o ar e o peito dela queimou por dentro.
Serana ergueu as duas garras.
As pontas negras refletiram a luz como se estivessem molhadas de noite. Cada dedo parecia longo demais, pronto para rasgar tudo de uma vez e terminar a conversa com a mesma eficiência que começara.
Lou-reen não reagiu.
O corpo dela ainda era soldado. A mente dela, por um segundo, virou só uma pergunta.
Marco?

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