Índice de Capítulo

    O parque interno tinha virado um corredor de troncos partidos e folhas esmagadas. Casca arrancada, galhos no chão, raízes expostas como nervos. O cheiro era de seiva misturava com sangue.

    Grithin estava encostado numa árvore, o ombro esquerdo aberto sob a placa, a coxa pesada demais para confiar e o antebraço ardendo dentro da luva.

    Não desviava os olhos do homem na sua frente.

    Löerg não parecia ter passado pelo mesmo lugar que ele. O florete seguia alinhado na altura do pescoço de Grithin, punho firme, sem hesitar. O ar girava ao redor dele com folhas presas num círculo.

    — Você se arrastou até aqui pra isso?

    Grithin não respondeu. Apertou o cabo da espada até a madeira reclamar, puxou ar uma vez e a lembrança de Lou-reen veio inteira, sem pedir licença: em Loryndel ela não discutia com o terreno, não fazia acordo com o cenário, só ia. Tudo nela era ataque até o alvo cair.

    A vergonha do próprio cuidado subiu como bile. Ele engoliu junto com a dor. Avançou como se o ombro não doesse, como se a coxa não fosse dele.

    O pulso de Löerg girou, e o virou um corte na altura do peito, atravessando o espaço na direção do esterno de Grithin, rápido o bastante para arrancar folhas do ar no caminho e deixar um chiado fino na pele.

    Raízes subiram como lanças.

    Vieram em salva, pontas grossas e irregulares, cuspindo seiva. A primeira buscou o tornozelo, onde a bota abria uma linha. A segunda veio na canela. A terceira subiu alta na coxa, com farpas que não prometiam parar.

    Löerg tirou o corpo por um fio. A ponta do florete desenhou um risco, e o vento desviou duas lanças para o lado, só o suficiente para ele plantar o pé fora da linha. Mesmo assim, uma raiz pegou de lado a perna e abriu um talho que manchou a calça na hora.

    Grithin não deu tempo de ele respirar.

    Outra salva veio no passo seguinte. Löerg tentou reposicionar o eixo, mas já tinha que escolher onde salvar o corpo primeiro. O vento empurrava as pontas que subiam, cortava a lateral de uma, derrubava outra, e ainda assim ele cedia espaço, obrigado.

    Grithin apertou mais.

    Uma lança de raiz pegou a perna com mais força e entrou na canela. Não atravessou por inteiro, mas rasgou tecido e pele juntos. Sangue desceu rápido, escuro, manchando a bota. Löerg firmou o pé no passo seguinte com um ajuste seco do joelho, o punho voltando para a linha do pescoço de Grithin como se tentasse recuperar domínio pela precisão.

    Grithin não deixou.

    A lâmina subiu em direção à costela.

    Löerg girou o punho e o vento cortou na diagonal, desviando o metal por um palmo. Grithin já estava em cima desse desvio: uma lança de raiz subiu na lateral do corpo de Löerg, mirando entre as placas, buscando a costela do outro lado.

    Löerg virou o tronco e deixou a ponta passar raspando o tecido, rasgando de leve. A calça abriu mais na canela quando ele reposicionou o pé. O sangue desceu e manchou a bota.

    Grithin foi direto para a garganta.

    A espada subiu, limpa, e Löerg respondeu com outro corte de vento, atravessando o espaço na altura do esterno de Grithin. O ar chiou perto demais e fez folhas explodirem em volta. Grithin atravessou mesmo assim, e uma lança de raiz veio no joelho de Löerg ao mesmo tempo, tentando roubar o apoio.

    O joelho cedeu um instante.

    Só um.

    Grithin atacou a mão do florete.

    O aço bateu de lado, não cortou, mas tirou a linha do punho por uma fração. A resposta do parque veio em cima dessa fração: uma lança de raiz subiu no abdômen, grossa, irregular, pronta para entrar.

    Löerg girou o corpo e salvou o tronco por pouco. O florete voltou na linha e a estocada veio alta na direção do rosto de Grithin. Grithin abaixou a cabeça e entrou por baixo, empurrando o corpo para perto demais, forçando a luta a ficar apertada.

    Raízes continuaram subindo.

    Uma buscou a virilha, outra veio na coxa, outra na lateral da costela. Löerg teve que recuar de novo para não ser atravessado, e o calcanhar escorregou na grama molhada de sangue.

    Grithin não desperdiçou. A espada veio na garganta outra vez, e uma lança de raiz subiu junto, alinhada no peito, tentando fechar a conta no mesmo movimento. Löerg girou o punho no limite e o vento arrancou o aço da rota; a lança passou raspando a roupa e arrancou mais tecido na cintura, abrindo pele de lado.

    Sangue apareceu vivo ali também.

    Grithin viu o sangue e foi em cima como se tivesse recebido permissão.

    Löerg sumiu do alcance no mesmo instante.

    O corpo dele subiu reto, sem salto, como se o ar tivesse puxado pelo peito. Quando Grithin levantou o olhar, Löerg já flutuava acima das copas, leve, com o florete apontado para baixo.

    Então o céu começou a perfurar.

    Ataques de vento vieram de cima, dezenas. Eram estocadas de ar, finas e violentas, caindo em sequência. Grithin levantou a espada e sentiu a pressão bater no metal, vibrando até o osso do punho. Um risco pegou de raspão o braço dele e abriu um corte fino, outro arrancou um pedaço do uniforme no ombro. Um terceiro passou perto demais do rosto e deixou uma linha vermelha na bochecha.

    Ele não tinha como ficar parado.

    Grithin girou a espada, bloqueando o que dava, desviando o resto no susto, e o parque ao redor pagava cada falha: tronco riscado, casca arrancada, galho partido no meio como se tivesse levado uma lâmina real. A cada segundo, o ar caía de novo, perfurando, repetindo, insistindo.

    Grithin precisava revidar de alguma forma.

    As copas ao redor dele se curvaram com violência. Troncos mais finos dobraram até estalar. Galhos grossos vieram em arcos pesados, batendo para cima como chicotes tentando pegar o corpo flutuante.

    Löerg subiu mais um pouco, evitando o primeiro arco, e as perfurações continuaram descendo. Grithin sentiu mais cortes abrirem na pele: linhas rápidas no antebraço, no pescoço, na lateral das costelas onde a roupa já tinha cedido. O sangue começou a aparecer em mais pontos, misturado com seiva que respingava quando os golpes erravam e rasgavam árvore.

    Löerg desceu e ficou a cerca de um metro acima das copas, perto o bastante para a madeira alcançar. Grithin mudou a arma de novo.

    Os galhos deixaram de ir em arco. Viraram flechas.

    Dezenas se soltaram ao mesmo tempo, pontas irregulares e grossas, disparadas de todos os lados. Não havia direção limpa. Onde Löerg olhasse, tinha madeira vindo para perfurar: rosto, peito, mão do florete, a perna já ferida. O ar ao redor dele cortava algumas flechas no meio, estourando em farpas, mas o volume cercava. Uma ponta pegou no braço e abriu um risco. Outra bateu na perna machucada e arrancou mais sangue.

    Grithin apertou o cerco.

    Mais flechas, mais pontas, mais pressão.

    O vento ao redor de Löerg girou mais rápido, folhas entrando no turbilhão e batendo em casca, cortando o próprio parque. Löerg olhou para baixo, e um canto da boca subiu, mostrando os dentes por um instante.

    O punho do florete alinhou como se apontasse uma arma grande. O vento, que antes vinha em dezenas de perfurações, juntou tudo num único eixo.

    O ataque veio como um canhão.

    Uma coluna de ar atravessou o parque, abrindo um buraco limpo nas árvores no caminho. Casca explodiu, galhos viraram estilhaço, folhas foram arrancadas como se alguém tivesse puxado o lugar pelo pescoço. A pressão atingiu Grithin em cheio.

    Ele foi arremessado para trás e caiu pesado na grama, o impacto sugando o ar dos pulmões. A pressão ainda empurrou por um instante, e cortes surgiram na pele como linhas rápidas: no braço, na costela, no pescoço. O uniforme rasgou no peito, abrindo tecido e deixando a pele marcada aparecer por baixo.

    O mundo escureceu e apagou.

    O vento assentou devagar. Folhas caíram no buraco aberto entre as árvores como se o parque tivesse sido esvaziado ali. O som distante da arena atravessou o verde: metal, gritos, impacto, como se a guerra estivesse em outro mundo.

    Löerg desceu com a mesma leveza com que tinha subido.

    Pousou diante de Grithin caído. O florete apontou para baixo, na linha do peito. Ele olhou o general estendido na grama, imóvel, aparentemente desacordado.

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