Capítulo 077 — Asora Camadriel
Malrath, ANOS ATRÁS
Malrath começava a oeste de Taeris e ocupava uma extensão enorme. Não tinha capital, não tinha centro político. Era um conjunto de centenas de vilas e pequenos domínios, quase sempre em guerra entre si. Um território grande demais para qualquer governo unificar.
Aquela vila era só mais uma no mapa e, naquele dia, era só ruína.
Pedra rachada, telhado no chão, madeira queimada, com cheiro de fuligem velha. A rua tinha virado um corredor de entulho. A porta de uma casa tinha virado um buraco quadrado, escuro por dentro.
Clyve escolheu um pedaço de laje ainda inteiro para servir de piso. A parede quebrada ao lado virou limite. O resto era aberto: céu alaranjado, fumaça longe, e o espaço grande demais para qualquer lugar parecer seguro.
Asora ficou a poucos passos, com duas adagas.
Ela testou o peso na mão, girou uma vez e parou. A lâmina ficou apontada para baixo. A outra ficou na linha da coxa, pronta para subir.
Clyve segurava o Cetro com uma mão só. O bastão parecia grande demais para aquele cenário de parede quebrada e pedra caída e, mesmo assim, ele mantinha a pegada firme, sem esforço aparente. A adaga dele ficava no cinto, visível, intocada.
— Mostra.
Asora entrou sem aviso.
Ela era rápida. Rápida demais para aquele chão irregular, rápida demais para o olho acompanhar com conforto. O problema aparecia logo depois: a pressa a fazia gastar essa velocidade no lugar errado, trocando direção quando não precisava, abrindo o corpo na ânsia de chegar, atacando o espaço que parecia o mais curto em vez do espaço que era o mais útil.
A primeira adaga veio de baixo, mirando o tronco, buscando obrigar Clyve a ceder. A segunda subiu junto, pronta para seguir no pescoço quando ele reagisse.
Clyve não recuou.
O Cetro desceu na diagonal e pegou a lâmina no caminho. Metal bateu em madeira. A adaga desviou antes de encostar nele. No mesmo movimento, ele empurrou com o bastão e abriu distância, só o suficiente.
Asora já estava no segundo ataque.
Ela tentou entrar colada, onde o comprimento do bastão atrapalhava. A mão trocou, o punho girou, a lâmina buscou a mão do Clyve.
Clyve girou o Cetro curto e travou a adaga no meio do caminho. O bastão absorveu o golpe e devolveu um toque seco no antebraço dela. Não quebrou, não feriu, mas fez a mão falhar.
Uma das adagas caiu e quicou na pedra.
Asora pegou de volta no mesmo instante, sem abaixar a cabeça. O corpo dela não parava. Ela atacou com a outra, agora mirando a lateral do pescoço, tentando usar o que sobrou de espaço.
Clyve prendeu a lâmina dela entre o Cetro e o próprio corpo por um segundo, tempo suficiente para ela sentir que estava presa.
Ele soltou.
A ponta do Cetro parou a poucos dedos do rosto dela.
— Para.
Asora congelou com o peito alto, respirando pela boca.
— Se eu fosse mais rápida—
— Você foi rápida. — o Cetro ficou baixo, na frente do corpo. — Você só entrou no lugar que eu deixei.
Asora apertou as duas adagas.
— Você usa isso pra tudo.
— Eu usei pra não ser cortado.
Ela deu um passo, irritada.
— E eu? Eu fico com duas facas e um chão ruim.
Clyve apontou com a ponta do Cetro para o ombro dela, sem encostar.
— Você anuncia o ataque.
Asora fez um som de descrença.
— Eu não anuncio nada.
— Seu ombro sobe antes da lâmina. Seu pé da frente pisa pesado. Sua mão abre demais no começo. — ele não levantou a voz. — Eu escuto você chegando.
Asora segurou o silêncio por um instante, tentando achar um erro ali. Não achou fácil.
— Adaga não pede braço aberto. — Clyve continuou. — Pede caminho limpo.
— Então me dá um Cetro. — Asora falou na lata. — Um igual.
Clyve ergueu uma sobrancelha.
— Pra quê?
— Pra eu parar de perder tempo.
— Você quer facilidade.
A palavra bateu e ficou. Tinha o peso de uma constatação.
Asora entrou de novo, mais agressiva.
Dois cortes em sequência, tentando acelerar a troca. Um por baixo, outro alto, forçando o bastão a subir e descer. Ela era tão rápida que o movimento quase parecia certo por pura pressão.
Clyve bloqueou os dois com o Cetro sem pressa. No segundo, ele girou o bastão e empurrou de volta, quebrando o ritmo dela. A ponta do Cetro encostou no esterno de Asora por um instante. Não machucou, só parou.
— De novo. — ele tirou o Cetro dali. — Sem brigar com a sua própria mão.
Asora recolheu as adagas, fechou a guarda, ficou imóvel por um segundo. Raiva e foco dividiram o mesmo espaço.
— Tá.
Ela entrou outra vez.
Agora ela tentou mudar. Menos floreio, menos troca. Dois cortes limpos, um reto, outro cruzado. Ela chegou mais perto do que antes, e isso deixou o rosto dela aceso.
Clyve desviou um palmo e travou com o Cetro. A defesa saiu igual. O bastão parou no lugar certo.
Asora parou no meio do avanço e apontou as adagas para ele, acusando com o corpo.
— Viu? — a voz saiu dura. — Eu faço certo e mesmo assim você não sente nada.
Clyve olhou para as mãos dela, não para a cara.
— Você faz certo por três segundos. Depois volta a querer ganhar na pressa.
Asora deu um passo curto, irritada com a facilidade dele.
— Você tá me dizendo que eu sou lenta.
— Eu tô dizendo que você desperdiça o que tem.
Ela ficou muda por um instante. O vento raspou numa viga quebrada e pareceu mais alto do que devia.
Asora apontou a adaga na direção do Cetro.
— Isso aí resolve tudo. — ela falou. — Você nem precisou encostar em mim com a tua faca.
Clyve segurou o bastão firme, encarou ela e soltou uma risada baixa.
— Você acha que eu dependo dele.
Asora não desviou.
— Eu vejo.
Clyve caminhou dois passos e deixou o Cetro no chão, encostado numa pedra caída. O bastão ficou lá, pesado, quieto, como qualquer objeto.
Asora franziu a testa.
Clyve levou a mão ao cinto e puxou a adaga.
— Vem.
Asora entrou com tudo.
Agora ela atacou para matar, não para treinar. Ela encheu o espaço com movimento: uma adaga puxou a guarda, a outra buscou o pescoço; ela trocou de lado no meio do avanço, tentou colar no peito dele, tentou raspar a mão dele, tentou forçar um erro no excesso.
Clyve cortou o excesso.
Ele não correu atrás da velocidade dela. Ele esperou o momento em que ela abriu o corpo para trocar de direção e entrou com a adaga no lugar certo. Não cortou. Só encostou na costela, um aviso claro.
Asora puxou o corpo para trás e voltou com a lâmina alta.
Clyve desviou com o antebraço e tocou o pulso dela com a ponta da adaga. O ponto foi exato. A mão dela perdeu firmeza por meio segundo.
Meio segundo bastava.
Clyve passou por dentro e encostou a lâmina na nuca dela. Leve, sem ferir. Só colocando a verdade ali.
Asora ficou dura, respirando forte.
— De novo. — Clyve afastou a lâmina. — Você é rápida. Isso não resolve quando você escolhe o alvo errado.
Asora girou o corpo e encarou ele.
— Você tá fazendo isso pra provar o quê?
— Eu tenho o Cetro. — ele falou. — Eu não dependo dele.
Asora olhou para o bastão largado e voltou o olhar para ele.
— Então por que usar?
Clyve caminhou até o Cetro, pegou de volta e segurou firme, sem exibir.
— Porque uma adaga resolve um corpo.
Ele levantou o olhar.
— Isso resolve um povo.
Asora olhou para os destroços ao redor.
— Isso aqui?
— Isso aqui é Malrath. — ele respondeu. — Vila contra vila. Guerra pequena. Ninguém finge que é melhor do que é.
Clyve virou o rosto para o leste, onde Taeris ficava.
— Taeris finge.
Asora apertou as adagas.
— Como?
— Eles pegam as crianças cedo e as moldam. — a voz dele ficou mais dura. — Não pra ficar forte, mas para ficar útil. Pra obedecer. Pra baixar a cabeça antes de aprender a levantar o braço.
Asora não tirou os olhos dele.
— Eles chamam isso de disciplina.
Clyve deu um passo, o Cetro baixo na mão.
— Eu chamo de fraqueza ensinada.
Asora inclinou a cabeça.
— E você acha que vai consertar?
Clyve soltou um som curto, quase riso.
— Consertar, não.
Ele levantou o Cetro um pouco.
— Eu vou reescrever Taeris.
Asora ficou quieta. O olhar dela desceu para o bastão e voltou para o rosto dele.
Clyve não piscou.
— Eles criam crianças mansas. Eu vou criar medo. E medo cria força.
Asora segurou as adagas mais firme. Clyve manteve o tom baixo, frio.
— E quando a hora chegar, ninguém vai me barrar de novo.
Clyve ergueu o Cetro e jogou para longe. O bastão voou por cima de uma pedra quebrada e sumiu atrás do entulho por um instante. Asora acompanhou com o olhar, pronta para rir, pronta para dizer que ele tinha perdido a própria arma.
Um estalo cortou o ar.
O Cetro voltou. Clyve fechou os dedos no cabo com tranquilidade.
— Você ainda não respondeu uma coisa. — Asora apontou a adaga para o Cetro. — Por que isso obedece? Por que volta?
Clyve olhou para o bastão na mão, passou o polegar pelo metal com cuidado.
— Porque eu fiz pra obedecer.
Asora franziu a testa.
— Sozinho?
Clyve negou com um movimento pequeno.
— Uma amiga muito especial me ajudou a construir isso. Pra ela, era uma inovação.
Asora engoliu a palavra, estranhando o som ali.
— E pra você?
— Pra mim, era propósito.
Asora fez uma careta.
— Isso é irritante.
Clyve inclinou a cabeça.
— Irritante?
— Você acha que eu não ouço? — ela falou mais baixo. — Eu ouço quando você chama. Eu ouço quando ele responde. Eu ouço quando ele fica acordado.
Ela apontou a adaga para o bastão, sem ameaça, com raiva.
— À noite, eu fecho os olhos e ainda escuto. Não dá descanso.
Clyve observou por um momento, sem brincar.
— Ele não descansa porque você não mandou.
Asora travou.
— Eu não mando nada nele.
— Ainda não.
Clyve deu um passo e parou perto demais.
— Existe uma frase. — ele baixou a voz. — Uma frase que faz ele dormir.
Asora engoliu seco.
— Por que você tá me dizendo isso?
Ele inclinou o corpo e sussurrou no ouvido dela. As palavras ficaram entre os dois. Asora não piscou.
Clyve recuou.
O Cetro na mão dele ficou quieto. A sensação de presença diminuiu. O ar perdeu a tensão que carregava antes.
Asora olhou para o bastão como se ele tivesse virado outra coisa.
— Você o fez dormir.
Clyve confirmou com um gesto mínimo.
— Eu posso acordar quando eu quiser.
Asora apertou as adagas, como se precisasse lembrar de algo simples.
— Então você controla mesmo.
— Eu aprendi. — Clyve encarou ela. — E você vai aprender também.
Asora soltou um riso sem humor.
— Pra quê?
Clyve não desviou o olhar.
— Pra continuar quando eu não estiver.
Clyve levantou o Cetro entre os dois, como quem coloca um acordo na mesa.
— Um dia, talvez eu dê isso a você.
Os olhos de Asora acenderam na hora.
Clyve manteve o rosto firme.
— E você vai seguir com o meu propósito.
Asora ergueu o queixo.
— Qual?
Clyve respondeu sem elevar a voz.
— Destruir Taeris.

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