Capítulo 078 — Realizar o sonho dele.
Marco voltou a si com o gosto metálico do próprio sangue preso no fundo da garganta e a imagem ainda queimando atrás dos olhos: Clyve encostado em pedra quebrada, o Cetro na mão, Asora ouvindo como quem recebia um juramento.
O som do presente bateu por cima. Gente gritando, aço contra aço. Um impacto distante que fez a torre vibrar.
“Memória do Cetro. Uma de duas que eu consegui salvar sobre Asora antes dela desligar o artefato.”
Marco ficou parado um instante, tentando encaixar a frase no lugar certo.
— Duas memórias e você me joga uma no meio do caos.
“Eu achei que você ia querer saber mais sobre a inimiga que você decidiu caçar, apesar de eu ter dito pra não fazer isso.”
Ele olhou ao redor. O pátio que ele tinha atravessado antes parecia outro: fumaça mais densa, sombras cruzando, soldados de Taeris correndo em grupos quebrados, cada um com uma ordem diferente. Um corpo encostado num canto, respirando com dificuldade. Uma mão largada no chão segurando nada.
Marco engoliu a urgência e foi no gesto mais básico que ele conhecia daquele inferno de bastão. Quando Marco abria a mão, ele voltava. Quando ele soltava, ele retornava.
— Volta.
Ele estendeu a mão, palma aberta, e esperou o peso cair no centro dela. Esperou o ar engrossar, o metal aparecer, a presença encostar na pele por dentro da luva.
Nada.
Ele fechou os dedos no vazio, devagar, só pra confirmar que não tinha encostado em nada sem perceber. Abriu de novo.
— Volta.
Dessa vez saiu mais baixo, mais feio.
“Sem retorno.”
— Nova.
“Sem resposta ao seu comando de localização.”
— Faz uma varredura.
“Já fiz. Não há assinatura detectável dentro do alcance.”
O peito dele apertou num ponto que não era dor. Era a sensação exata de ter perdido um sentido.
— Então ela fez mesmo.
“A instrução de Clyve era funcional.”
Marco prendeu a mandíbula.
— E por que você nunca me disse que existia “modo soneca”?
“Porque não era relevante antes.”
Ele soltou uma risada sem humor.
— Claro. Conveniente demais não precisar andar por aí com aquela coisa flutuando do meu lado, chamando atenção de todo mundo. Relevante não, né?
“Conveniência não era um fator de sobrevivência.”
— Pra você, nada é.
“Correto.”
Marco ficou um segundo olhando o vazio acima do pátio, tentando não pensar no que significava. O Cetro sempre foi um problema, mas era um problema que ele sentia. Agora era um problema que existia fora do alcance do corpo dele. Um buraco.
— Então eu preciso ver.
Ele escolheu uma direção e saiu.
A entrada da torre era uma boca de pedra. Dentro, a escada subia em espiral. O ar ficava mais frio a cada volta. O cheiro de fumaça entrava pelas frestas e raspava a garganta.
Subiu. Já estava cansado antes da metade. A armadura pesava mais a cada degrau, puxando nas juntas, travando o quadril, cobrando no joelho. Ele ajustou o eixo e continuou até a claridade do topo bater no visor junto com o vento.
A Fortaleza Ga-el estava espalhada em linhas quebradas. Telhados, muros, torres menores, um mar de fumaça cortando o horizonte. Marco caminhou até o parapeito e apoiou a mão.
— Eu não vejo nada.
“Confirmo. Você não tem linha de visão útil.”
— Então foi perda de tempo.
“Não foi. Você confirmou ausência de pistas.”
Ele virou o rosto, irritado com a própria esperança por ter achado que altura ia resolver qualquer coisa.
— Valeu, ótima ciência.
“Seu sarcasmo não melhora sua situação.”
Ele deu um passo para voltar ao arco, já preparando a descida, já aceitando que teria que voltar para o chão e improvisar no meio de gente correndo e metal cantando.
Um estalo seco veio do lado de fora do parapeito.
Marco travou o passo.
O vento bateu de novo, e por meio segundo a fumaça abriu um espaço no ar.
Uma sombra cruzou a borda do topo.
Marco virou o corpo.
Ela apareceu acima do parapeito, já em queda. Asora desceu sem ruído de pânico, dobrou os joelhos no impacto e absorveu o peso; a sola prendeu na pedra e o tronco ficou alinhado na hora. Ela levantou o rosto.
O Cetro estava com ela.
Não flutuava, não girava no ar. Era só um bastão na mão dela como uma ferramenta comum. Quieto.
Uma sensação subiu no peito, quente e apertada, e empurrou o corpo pra frente. Não era medo, não era pânico. Era só a vontade de tomar de volta o que sempre voltava pra mão dele, mesmo ele odiando aquilo.
“Ela está a seis metros.”
Eu consigo contar sozinho.
“Eu sei.”
Marco manteve os olhos na mão dela, depois no rosto, depois no Cetro. Tentou achar no corpo dela um sinal de fuga. Um tremor, uma pressa, qualquer coisa que dissesse que ela tinha caído ali por acidente.
Não achou. Ela tinha vindo até ali por vontade própria.
Asora inclinou a cabeça um pouco, medindo a armadura laranja, o capacete, o jeito de ele não recuar.
Marco não piscou. Manteve a mão perto da empunhadura da espada.
— Por que você tá aqui?
— Eu vim terminar.
— Terminar o quê, exatamente?
Asora não desviou o olhar.
— O que ele começou.
— E o que ele começou foi guerra.
— Ele começou justiça.
Marco sentiu a pressão subir no peito de novo.
— Justiça pra quem? — ele apontou o queixo pro som lá embaixo. — Tem gente sangrando que nunca te viu. Nunca viu ele.
Asora mexeu um dedo na adaga mais alta.
— Taeris sempre teve gente sangrando. Só que chamavam de disciplina.
“Eu recomendo recuar.”
— Cala a boca. Você tá aqui pra me matar? — Marco manteve a mão perto da empunhadura. — Ou só pra provar que consegue carregar o nome dele?
Asora ajustou a pegada no Cetro.
— Eu não preciso provar nada.
— Então por que não some com isso e acaba aqui?
Asora ficou imóvel.
— Porque eu preciso realizar o sonho dele.
Marco deixou o silêncio bater um instante.
— Eu já vi coisas do Cetro. Vi o que esse “sonho” faz com as pessoas. — Marco apontou o queixo pro bastão. — Isso não constrói nada, só deixa cinzas por aí.
— Cinza vira base.
— Base pra quê? Pra você virar um novo Clyve?
Os olhos dela estreitaram um fio.
— Não fala como se você tivesse direito.
— Então tá. — Marco ajustou o pé, base firme, eixo alinhado. — Você não vai passar por Taeris com isso na mão.
— Eu não preciso passar.
— Lou-reen não vai deixar.
Asora não reagiu ao nome.
— Serana vai cuidar da princesa. — ela disse, como se fosse logística. — Eu vim cuidar de você.
Asora deu um passo lateral, só pra mudar ângulo. O Cetro permaneceu quieto.
— Eu não sou general.
— Você é o portador.
Ele sentiu a ausência de novo.
— Você o desligou pra eu não puxar.
— Eu desliguei porque ele obedece a você.
Marco deu meio passo, devagar, medindo espaço até o parapeito e o alcance das lâminas.
— Então você veio me tirar da frente.
Asora não piscou.
— Eu vim tirar a trava.
Marco congelou por um segundo.
— A trava.
— Enquanto você respirar, o poder inteiro não vem.
A frase caiu reta, sem prazer, sem ameaça performática.
“Marco…”
Ele encarou o Cetro na mão dela.
— Você vai me matar pra usar ele.
— Eu preciso matar o portador.
— Isso foi ele que te falou.
— Isso foi ele que me ensinou.
Marco passou a língua nos dentes, sentiu sangue velho.
— E se você estiver errada?
— Eu não vou estar.

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