Capítulo 079 — Meu contratante.
Serana desceu as duas garras.
Lou-reen saiu da linha no último instante. O joelho esquerdo atrasou, o quadril reclamou, e o golpe passou por um fio; a garra abriu o chão e arrancou lascas de pedra que saltaram como cacos.
Lou-reen girou a espada na mesma rotação e entrou por dentro, sem esperar equilíbrio perfeito. O pomo bateu no pulso de Serana com um estalo seco, um golpe feito para quebrar o ritmo.
Ela subiu na marra logo em seguida, levando o ombro na costela, joelho procurando espaço, cotovelo empurrando. Serana absorveu o choque e ficou de pé, firme, sem desorganizar a postura.
O Bracelete pulsou. Lou-reen ajustou o punho e quase fez o movimento que sempre vinha depois, seguindo o treinamento de Taeris: a lâmina pegando fogo, o golpe de encerramento que o manual mandava usar quando o inimigo ainda respirava.
O punho travou antes do gesto terminar e o aço permaneceu frio.
Serana inclinou a cabeça, com um traço de satisfação que não virou sorriso.
— Você aprendeu.
Lou-reen manteve a guarda na altura do coração, o punho firme apesar do tremor que o braço tentava esconder.
— Não vou te dar essa vantagem.
Serana veio pelo lado, baixa, predatória, atacando por onde a guarda parecia mais cansada. A primeira garra buscou o abdômen; a segunda veio alta, no rosto.
Lou-reen bloqueou a primeira com a base da lâmina e cedeu meio passo para a segunda passar perto o suficiente para raspar pele. Ela devolveu com uma estocada curta no ombro, um corte de controle para atrasar o braço e comprar um segundo de ar.
A ponta entrou na carne. Serana nem olhou.
Lou-reen recuou um passo e firmou, o olhar descendo direto para o pulso de Serana. O mesmo item que tinha sumido do Museu Imperial noites atrás.
Ela levantou a espada só o suficiente para manter a distância.
— Quem te entregou isso?
Serana não piscou.
— Meu contratante.
Lou-reen deixou o silêncio bater um instante, sem tirar a lâmina da linha.
— Então alguém abriu porta por dentro.
Serana mostrou os dentes, mais irritada com a palavra do que com a pergunta.
— Ele disse que eu devia usar. Disse que era pra derrubar você.
— “Ele”… — Lou-reen semicerrou os olhos. — Alguém que conhece Taeris o bastante pra tirar uma relíquia do Museu e te colocar na arena com ela.
Serana deu meio passo pro lado. O corpo tremeu e as garras subiram antes da fala terminar.
— Alguém quer a “princesa” morta tanto quanto eu. — Serana falou sem baixar as mãos. — Por isso eu aceitei. Por isso eu trouxe os Multiplicadores.
Foi a vez de Lou-reen não piscar. Ela não conseguia imaginar quem dentro do Império iria querer ver ela morta.
Serana não esperou resposta. Atacou.
As garras desceram em alta velocidade, uma chuva negra tentando engolir a linha da espada. Lou-reen subiu o aço no reflexo e a primeira colisão estourou com faísca. A segunda veio no mesmo tempo, junto com a terceira. O som virou uma sequência curta e seca, metal raspando em garra, garra batendo em metal, rápido demais para separar um golpe do outro.
Lou-reen recuou meio passo e manteve a lâmina na frente do peito, sempre voltando para a mesma linha, como se cada batida fosse treino repetido. Serana trocou a altura sem avisar, alto no rosto, baixo na perna, alto de novo no punho, tentando quebrar o braço junto com a guarda.
A lâmina respondeu no limite. Cada bloqueio vinha com vibração subindo pelo antebraço de Lou-reen.
Serana apertou a sequência e entrou mais perto. A garra bateu no guarda-mão e tentou travar o metal; a outra buscou costela por baixo, no mesmo instante em que o bracelete pulsou, vermelho vivo.
Lou-reen sentiu o risco abrir na lateral do tronco. O tecido rasgou e a pele cedeu. Serana colou de vez, pressão no corpo, sem espaço entre as duas, e a lâmina ficou presa no meio do aperto, inútil por um segundo; a garra livre subiu para o rosto, e Lou-reen entrou com a cabeça no mesmo instante, a testa acertando o rosto de Serana com força total.
O impacto estourou seco.
Serana aguentou sem cair.
A força atravessou o corpo dela e bateu no chão. A pedra ao redor rachou num círculo, fendas correndo para fora em teias tortas, poeira subindo baixa e grossa. A arena respondeu com um som surdo, como se o lugar inteiro tivesse sentido o golpe.
Lou-reen sentiu o crânio vibrar até os dentes. A visão afinou por um instante. Serana piscou uma vez.
Ficou em pé.
Ela soltou um ar pesado, mais controle do que alívio, e a voz veio baixa, quase respeitosa apesar do veneno.
— Então essa é a força de uma General.
***
O estalo nas costelas atravessou Kalamera e deixou o resto do corpo atrasado. O ar não veio. A pedra sob as costas pareceu mais dura do que antes, e o joelho de Nareth ficou plantado no abdômen como âncora.
A mão dele apertava o último braço montado perto do ombro, dedos fechando metal contra metal até o desenho perder forma. As peças começaram a sair da posição em microsaltos, uma a uma, como se o braço estivesse esquecendo como se mantinha inteiro.
Kalamera puxou essência no reflexo, tentando segurar o mapa do braço no lugar certo, mas Nareth não dava intervalo.
Ele torceu.
O braço desabou. Virou uma chuva de peças, anéis e placas batendo na pedra e rolando para as frestas do piso. O som foi seco, repetido, irritante, como ferramenta jogada fora.
Kalamera tentou alcançar as peças com a mente, mas o peso do corpo dele ainda a prendia e a visão vinha em pulsos. Um resto de metal tentou subir do lado do ombro, formar um cotovelo… e morreu antes de virar forma.
Nareth soltou o braço destruído sem olhar. A mão foi para o outro, o que ainda existia como braço de verdade: dois dedos, uma palma, uma linha de antebraço que ela tinha mantido por teimosia.
Ele fechou a pegada no meio da articulação.
Kalamera sentiu o conjunto atrasar, o metal buscando encaixe e não achando. Tentou empurrar o punho para fora, travar no cotovelo, morder espaço com o ombro. Nareth afundou a pressão e girou o punho dela para dentro, simples, cruel, como quem dobra barra quente na bigorna.
As peças gritaram.
O braço abriu em duas partes e depois em várias, o desenho se desfazendo até virar nada. O chão recebeu mais metal, mais barulho, mais pedaço rolando.
Nareth saiu de cima.
Kalamera ficou onde estava, ombros pesados, o peito reclamando a cada tentativa de puxar ar. Os quatro lugares onde ela costumava ter mãos viraram ausência. As peças espalhadas no entorno pareciam pertencer a outra pessoa.
Nareth ficou de pé com calma. O peitoral de mirthril manteve o brilho contido, veios correndo pelas runas como sangue bem comportado. Ele olhou para ela do alto, sem pressa, como se confirmasse um resultado que já sabia desde o começo.
— Eu falei.
Kalamera tentou apoiar o corpo no antebraço que não existia mais. O movimento morreu no meio e virou só um tremor no ombro. Ela engoliu o gosto de sangue e forçou a cabeça para cima.
— Você não vai…
Nareth deu um passo e parou ao lado dela. A mão desceu e fechou no tecido do uniforme perto do pescoço, puxando-a um pouco do chão só para alinhar o rosto dele com o dela.
— Você passou a vida inteira achando que era intocável.
Ele soltou e a deixou cair de novo, sem violência extra. A mão subiu, e por um instante Kalamera viu o plano formar no corpo dele: terminar ali, rápido, sem discurso, como se ela fosse um erro de forja que se corrige com martelo.
O som de passos cortou o espaço.
Nareth não olhou de imediato, mas o ombro dele mudou de posição e o ar ao redor da luta pareceu recolher. Kalamera conhecia aquela presença. Todo mundo ali conhecia.
Hersperon Wynrae atravessou a fumaça baixa do Distrito como se não tivesse nada pegando fogo em lugar nenhum. O rosto não mostrou pressa. O olhar não mostrou interesse em Kalamera.
A bainha negra da Espada da Chama Eterna ia na mão dele, como ferramenta. A lâmina ficou escondida, mas o peso parecia arrastar o silêncio atrás.
Nareth virou o rosto.
— Mestre.
Hersperon parou a dois passos, avaliou o chão cheio de peças, avaliou Kalamera no chão como quem confere entulho. Voltou para Nareth.
— Larga isso.
Nareth não se mexeu.
— Eu já terminei.
Hersperon inclinou a cabeça um fio, e a paciência dele parecia uma coisa que tinha sido arrancada há anos e substituída por cálculo.
— Você não terminou nada. Você gastou tempo.
Nareth apertou a mandíbula, a mão ainda alta, pronta para descer.
— Ela…
— Não me interessa. — Hersperon cortou sem levantar a voz. — Levanta.
Nareth olhou para Kalamera uma última vez. O olhar não era triunfo. Era alguém que não ganhou a sobremesa.
Hersperon não cedeu.
— Agora.
Nareth baixou a mão devagar, como se alguém tivesse puxado uma corrente invisível do pulso dele. Deu um passo para trás, depois outro. A raiva ficou, mas ficou guardada, obrigada a obedecer.
Kalamera tentou chamar o nome dele e não conseguiu.
Hersperon nem a encarou. Ele virou o corpo, já indo, e jogou a frase para Nareth como quem entrega uma peça de reposição.
— A ordem mudou.
Nareth acompanhou, ainda com o olhar preso no chão onde ela estava. Hersperon continuou:
— Meu contratante quer a Lou-reen fora de combate o quanto antes. Por isso a espada vai pra Multiplicadora que está contra ela.

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