A grande sala onde os soldados da guarda real se reuniam diariamente para fazer suas refeições, descansar ou conversar sobre suas atividades estava praticamente lotada. Isso indicava que quase todos os sessenta soldados já deviam estar ali.

    A conversa dos homens revivia, é claro, os duelos que tinham acabado de testemunhar. Uns repetiam os principais momentos das lutas, em forma de perguntas do tipo “você viu quando…” ou “e aquela hora em que…”. Outros apontavam as escolhas erradas dos derrotados, tecendo comentários variados.

    — Mestre Aires não deveria ter esperado, ele…

    — Eu teria feito diferente, ela claramente não consegue…

    — Caim foi muito burro, era só ele…

    Martim achou esses comentários muito engraçados, pois conhecia a técnica do mestre Aires e a força de Caim. Duvidava que alguma das sugestões fizesse sentido. Tudo o que aprendeu naquela manhã foi que a nova capitã era digna de um profundo respeito, pelo menos no que se refere ao campo de batalha.

    Havia ainda comentários de soldados que estavam muito animados com a perspectiva de serem comandados por uma guerreira tão habilidosa, mas pelo tom das conversas, parecia ser um sentimento minoritário. A maioria ainda estava de cara amarrada, claramente revoltada por serem liderados por uma mulher, que simplesmente nunca deveria se meter no meio de guerreiros. Martim ainda não sabia bem o que pensar. Apesar de ter ficado impressionado com o desempenho da capitã em combate, comandar a guarda real tinha muito mais a ver com estratégias e táticas para a proteção da rainha e do castelo, e menos com guerras, duelos e habilidades com a espada.

    O barulho aumentava à medida que as discussões se acirravam. Soldados sentavam em cima das mesas, com as pernas cruzadas. Riam alto, gritavam e batiam uns nos outros em brincadeiras e provocações. O lugar mais se parecia com uma taverna do que com uma sala oficial do exército. De repente, as conversas se aquietaram, e as pessoas se levantaram para assumir uma posição de sentido. Martim não pôde vê-la, mas deduziu que a capitã havia entrado no recinto. Ouviu sua voz em algum lugar da sala:

    — Soldados, espalhem-se pela sala e formem um quadrado!

    Imediatamente, a sala se organizou. Cada soldado assumiu uma posição equidistante dos demais, conforme tinham praticado inúmeras vezes. Nessa configuração, Maria era completamente visível a todos.

    Sua armadura ainda estava suja de lama e sangue. Sua perna exibia uma grosseira atadura sobre o ferimento causado por Caim. O branco de suas vestes já não era visível, sendo substituído pelo vermelho ou marrom em quase todos os lugares. Martim reparou que seus olhos eram ferozes, como se ainda estivesse impregnada pela adrenalina dos combates. Também parecia desafiar os presentes para ver se a obedeceriam ou não. Era sua primeira ordem, seu primeiro teste, e tinha passado.

    Satisfeita, fez um sinal para o lado e chamou alguém do lado de fora da sala. Sem demora, entraram vinte soldados equipados com arco e flecha. Na sala havia uma espécie de sacada no segundo andar, acessível por uma escada de madeira. Metade dos arqueiros subiu imediatamente, enquanto o restante permaneceu ao lado da capitã. Martim e os demais soldados começaram a se mexer em seus lugares, apreensivos. Assim que os arqueiros encontraram suas posições, Maria voltou-se para os seus subordinados e falou:

    — A partir de agora ninguém tem permissão para sair do lugar em que está! — Em seguida levantou o rosto e dirigiu-se aos recém-chegados: — Arqueiros! Matem qualquer um que sair de seu lugar. Levantem seus arcos!

    Os arqueiros carregaram suas armas com flechas e apontaram-nas para os soldados da guarda, prontos para disparar a qualquer momento. Martim olhou para os lados e percebeu nos outros a mesma tensão que sentia. O que a capitã iria fazer?

    Maria começou a caminhar em meio aos soldados. Mancava um pouco, provavelmente por causa do ferimento de espada que tinha na coxa. Olhava diretamente nos olhos de cada soldado, parecendo ficar satisfeita quando estes desviavam o olhar. Ela parou em frente a Ricardo, um dos soldados da guarda, e perguntou:

    — Soldado, qual é o seu dever, que você declarou ao fazer o juramento da guarda real?

    Ricardo era alto e magro, e tinha cabelos louros, quase brancos. Seus olhos eram também muito claros, azuis, e saltavam das órbitas no centro de seu rosto esguio. Tinha uma aparência inteligente, à qual fez jus ao recitar fielmente a parte do juramento que lhe foi cobrado. Enquanto falava, seu olhar permanecia fixo à frente, evitando o contato visual com sua comandante:

    — Meu dever é servir à coroa, protegendo-a de todos os inimigos, internos ou externos. Se preciso for, entregarei minha vida ao reino e ao seu povo para salvá-los de qualquer perigo.
    Maria assentiu com a cabeça, dizendo:

    — Este é o mesmo juramento que eu fiz, dias atrás. — Continuou caminhando enquanto falava.

    — Essa é a primeira coisa que precisam saber sobre mim. Não estou acima de vocês, para lhes dar ordens e fazer valer minhas vontades, ou atender aos meus caprichos. Não estou atrás de vocês, para enviá-los à morte enquanto eu permaneço na retaguarda vivendo um destino diferente dos seus. Eu estou ao lado de vocês, meus irmãos, para juntos cumprirmos o mesmo dever!

    O silêncio era palpável. Ela caminhou até o fundo da sala e parou em frente a Tomás, um magro soldado de cabelos escuros, um pouco longos e desarrumados, que quase cobriam os olhos negros. Disse, olhando-o de frente:

    — Soldado, você gostou da minha resposta? Está satisfeito em ter-me ao seu lado?

    Ele olhou para os lados, sem saber o que responder. Seu rosto ossudo parecia congelado. Martim também não saberia o que responder. Onde ela queria chegar? Ao ver que ele não respondia, ela insistiu, elevando a voz:

    — Responda, soldado!

    — Sim, senhora, estou satisfeito em tê-la ao nosso lado!

    — Pois eu não estou! — ela respondeu, para assombro de todos. Voltou a caminhar entre os soldados, desta vez indo até a frente da sala. Acrescentou, com um olhar por cima do ombro:

    — E não sou senhora. Senhorita, por favor.

    Martim achava que não iria conseguir suportar mais tensão. O fato de que a capitã ainda usava seu elmo tornava impossível ler as expressões em seu rosto. Estaria sorrindo? Estaria nervosa? Preocupada? Tranquila?

    Além disso, as flechas apoiadas nas grossas cordas dos arcos que pairavam sobre suas cabeças diziam que estavam sob interrogatório. Que resposta seria suficiente para que ela ordenasse um massacre? Não teve muito tempo para continuar esses pensamentos, pois Maria voltou a falar:

    — O juramento que fiz antes foi para a rainha, para a corte e os generais do exército. Agora faço um novo para vocês, meus irmãos! Só para vocês. Sou sua líder, portanto não estarei acima, nem atrás, nem ao seu lado. Estarei sempre à sua frente, para receber primeiro os golpes mais duros, as flechas mais afiadas e ser a primeira a quebrar os escudos de nossos inimigos. Se estiverem em dúvida sobre onde estou, olhem à frente, e lá me encontrarão! Isto eu juro para vocês e não exijo igual juramento em troca, pois é este o fardo do meu posto!

    Ela pegou um punhal que estava escondido em seu antebraço e fez um corte na palma de sua mão direita. Exibiu o sangue para todos, permanecendo em silêncio enquanto todos a observavam. Em seguida pegou um pedaço de pano e o amarrou na mão machucada para estancar o sangue.

    Martim gostou das palavras da capitã. Tentou memorizá-las para falar algo parecido, caso algum dia ele fosse nomeado capitão. Podiam ser palavras ao vento, ditas apenas para agradar um esquadrão relutante, mas eram palavras honradas que transmitiam força e resolução. Não fossem as flechas assassinas que ainda esperavam para voar pela sala, estaria muito orgulhoso com sua nova líder.

    — A segunda coisa que precisam saber é o motivo para eu estar aqui. — Ela retomou a caminhada. — Serei direta, pois vocês já devem ter ouvido muitas conversas pelas ruas da cidade e pelos corredores deste castelo. Desde a morte do rei, não faltam rumores sobre uma conspiração para usurpar o trono da rainha.

    Ela parou e estudou a reação dos soldados mais próximos. Como estes estavam concentrados em manter-se vivos, não esboçaram movimento algum. Continuou:

    — Aparentemente, há vários pretendentes ao trono. Primos do rei, tios, sobrinhos e até alegados filhos bastardos, clamam por seu legítimo direito de governar Évora. Homens da lei de todo o reino estudam o assunto todos os dias. Até agora, nenhum clamor se provou legítimo, e eu, pessoalmente, duvido que vá aparecer algum. Mas eu não sou uma estudiosa da lei. Não vou me meter nessas discussões. Nós — apontou para todos — somos soldados e estamos presos ao nosso juramento, que acabou de ser bem lembrado há pouco pelo soldado ali na frente. Devemos lealdade ao reino, seu povo, e à coroa. Quem usa a coroa, hoje, é Catarina. Isso nos basta. E eu estou aqui para manter todos fiéis à legítima coroa!

    Ela parou por uns instantes, respirou fundo e preparou-se para continuar. Martim sentiu que o clímax da conversa se aproximava.

    — Infelizmente, há quem discorde de todo esse processo legal. Há quem queira se adiantar às negociações e fazer as coisas acontecerem à custa de sangue e lágrimas. Há conspiradores que falam em assassinato, traição e dinheiro. E essa é a terceira coisa que precisam saber sobre mim.
    Ela se aproximou de Carlos, amigo de Martim, com o rosto bem próximo ao dele, quase tocando seu nariz com a face metálica de seu elmo. Fez o mesmo com outros dois soldados. Todos pareciam confusos. Disse, quase em um sussurro:

    — Eu consigo FAREJAR traidores!

    Ela continuou andando entre as fileiras, fazendo o gesto animalesco de um cão farejador em busca de um cheiro familiar. Depois de algum tempo assim, ela parou e disse:

    — Ali na frente, nas mãos do secretário da rainha, tem uma lista com o nome de cinco conspiradores. TODOS… — gritou, enquanto seguia seu caminho e farejava os soldados — foram devidamente investigados a mando da rainha e já foram por ela condenados. E TODOS são soldados da guarda real. Estão, portanto, nesta sala, neste exato momento!

    Martim olhou para a frente e confirmou que de fato ali estava o secretário, e que este segurava nas mãos um rolo de pergaminho. O homem estava assustado, sem saber direito porque estava ali.

    — Infelizmente — a capitã deu uma fungada no soldado à direita —, eu não conheço o nome de nenhum de vocês. Mas eu posso sentir seu cheiro.

    Em um movimento quase imperceptível, ela sacou a espada e cortou a garganta do soldado à sua frente. Ele caiu, gorgolejando e espirrando sangue nos pés de quem estava ali perto.

    — Secretário Moisés! — ela gritou. — Esse era um deles?

    O secretário, com os olhos arregalados, correu a vista pela sua lista, que tremia em suas mãos. Depois olhou para o homem caído no chão e confirmou com a cabeça, nervoso.

    — Acertei. Vamos achar o próximo — disse, enquanto retomava a caminhada.

    Martim se engasgou com o próprio ar. Tentou engolir, mas sua boca estava completamente seca. Aquela mulher era louca. Como poderia matar pessoas assim, sem saber quem eram? Será que conseguia de fato diferenciar as pessoas pelo cheiro? E se ela achasse que ele tinha um cheiro estranho? Seria executado ali mesmo, acusado de conspirar? Um novo barulho da espada de Maria cortando uma garganta o trouxe de volta à realidade.

    — Secretário? — a capitã perguntou, logo após o baque de mais um corpo que caiu ao chão.

    — S-sim, capitã, esse também era um deles! — A voz do secretário soou rouca.

    Nesse instante, fez-se um enorme barulho de arcos zunindo e de flechas voando. Martim fechou os olhos e tentou ficar o mais imóvel que conseguia. Quando os abriu, depois de alguns segundos de silêncio, viu mais três corpos no chão, espetados por flechas. Também viu um de seus colegas tremendo de medo, com as pernas molhadas de urina.

    A capitã foi até o lado do secretário e fez um gesto com a cabeça em direção ao batalhão. Em resposta ao sinal, este confirmou cada morte como sendo de um homem que constava na lista. Satisfeita, embainhou sua espada. Voltou-se para o batalhão e disse:

    — Não acabou! Há outros conspiradores aqui! — Neste momento ela olhou para o homem que tinha se molhado. — Mas não precisam se preocupar ainda. Até onde fui informada, estes não estão apalavrados com a conspiração e ainda podem se salvar. Gostaria de não ter que cortar mais nenhuma garganta.

    Ela fez sinal para os arqueiros e para o secretário, e eles imediatamente começaram a sair do salão, produzindo um grande barulho de botas e muitos suspiros aliviados. Maria permaneceu ali por mais um tempo, depois disse:

    — Todos estão dispensados pelo resto do dia!

    E saiu do salão.

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