— Nossa, que família grande! — A frase saiu de sua boca, mas vinha de algum local desconhecido em sua mente.

    — Oh, você acordou de novo! — disse uma voz vinda de longe.

    Ficou confusa por alguns instantes. Não sabia dizer onde estava, se era dia ou noite, qual era a época do ano, ou o que comeu em sua última refeição. 

    Do que estava falando mesmo? Que família era essa? Com quem estava falando?

    Não se lembrava de absolutamente nada.

    — Engraçado você falar de família grande. É verdade, são muitos, muitos… — A voz continuava.

    Sabia que estava deitada. Era uma cama quente, macia e confortável. Tentou mexer os braços.

    Dor.

    Tentou mexer as pernas.

    Dor. O que está acontecendo?

    — … tenho quatro irmãos, homens. Primos, nem consigo contar… 

    Abriu os olhos. Não conseguiu reconhecer nada. Paredes e teto de pedra cinza. Luz branca e forte, vinda de uma janela. Uma brisa agradável. Virou a cabeça. Tinha alguém ali com ela.

    Quem é?

    — … isso sem falar nos sobrinhos, alguns já estão na idade de reivindicar o trono também…

    Sentou-se, com muito esforço e sentindo muita dor, e olhou para seu corpo. Usava uma túnica branca. Seus braços e pernas estavam cobertos por ataduras, presas em nós apertados. Manchas vermelhas denunciavam ferimentos escondidos sob os panos.

    Colocou a mão na cabeça. Sentia muita tontura. Olhou ao redor. Viu, em um canto da sala, seu pé metálico, encostado na parede. Sentiu uma vontade louca de rir, mas sem saber o motivo.

    — Falei algo engraçado, querida?

    Virou seu rosto para encarar a pessoa ao seu lado. Enfim reconheceu-a:

    — Ma-majestade?

    Instintivamente, abaixou a cabeça em uma reverência, e ficou ainda mais zonza por causa do movimento brusco.

    — Não precisa se sentar, pode ficar deitada. Você ainda está muito fraca.

    — O-obrigada! — Agradeceu a autorização para deitar-se novamente, o que acalmou a tontura.

    — Disseram-me que você estava acordando aos poucos, que algumas vezes abre os olhos e diz coisas sem sentido. Já é o terceiro dia que venho te visitar nesta semana e foi a primeira vez que você não desmaiou logo depois das primeiras palavras. — Ela deu um sorriso satisfeito.

    Maria tentou compreender do que a rainha estava falando.

    Por que estou toda machucada?

    — E então? Do que se lembra? — perguntou Catarina.

    — E-eu… não consigo me lembrar de nada!

    — Não? Não se lembra da batalha na sala do trono?

    Uma imagem lhe veio à mente, por um instante. A rainha gritava, e havia sons metálicos de espadas chocando-se.

    — Batalha? — Maria perguntou.

    — Sim! — A rainha parecia impaciente. — Seu plano, não se lembra? A armadilha?

    A memória começou a voltar, aos poucos. Lembrou-se que teve uma batalha, e lembrou-se dos preparativos daquele dia. De como tinha combinado com Fernão e os escudeiros da rainha para ficarem escondidos juntos com os homens da guarda real, esperando um ataque. E…

    A rainha não deixou que ela continuasse remontando a cena sozinha:

    — A isca era eu! Ha! — Deu um sorriso orgulhoso. — E que ótima isca eu fui, devo dizer. Os invasores entraram na sala achando que iriam me capturar ou me matar. E foram desmascarados e presos. Graças a você, minha querida.

    — S-sim! Eu me lembro! — disse Maria. — Os nossos homens estavam esperando, escondidos, mas… a porta se fechou. Ficamos trancados, não foi?

    — Sim! — respondeu a rainha, fechando a cara. — Você não pensou nisso. Quase colocou tudo a perder.

    É verdade.

    Maria lembrou-se de como ficou arrependida por não ter se atentado a esse detalhe. Poderia ter escondido a trave que lacrava a porta, ou pelo menos poderia tê-la quebrado ou enfraquecido, para que os seus aliados pudessem entrar mais facilmente.

    — Sinto muito, Majestade. Eu falhei em prever essa possibilidade.

    — Mas a sorte nos sorriu. Deu tudo certo no final.

    O final. O que aconteceu, mesmo?

    Lembrou-se de ter lutado muito. Foi ferida, mas conseguiu, enfim, abrir a porta.

    Abriu-a sozinha? E aí… 

    — Oh, Maria, está acordada! Está se sentindo bem? — Uma outra mulher entrou na sala. Usava um vestido branco, longo, e um lenço também branco na cabeça, para prender os lisos cabelos dourados. Seus olhos castanhos, grandes e arredondados, fixavam-se em Maria, e seu rosto pequeno tinha uma expressão que misturava preocupação e alívio ao mesmo tempo.

    — Sim, acho que sim, obrigada.

    — Ah, que bom que está aqui, curandeira. — A rainha dirigiu-se à recém-chegada. — Quando ela poderá ficar em pé novamente e voltar ao trabalho?

    — Em alguns dias, Majestade — respondeu a mulher, com um olhar de repreensão. — Ainda precisa se recuperar melhor.

    — Hunf! — Catarina resmungou, depois voltou-se para Maria. — Não demore! Preciso ter certeza que esse golpe foi sufocado de uma vez.

    — Sim, é claro, Majestade — disse Maria. — Eu volto assim que… 

    — Ah! E você também precisa dar um fim nos traidores da sua guarda — interrompeu a rainha. — Eu já dei um jeito nos que são de fora, mas a lei diz que é o comandante quem leva a cabo as execuções em seu pelotão. Estão presos, já julgados e condenados por seus atos, mas não é bom deixá-los vivos por muito tempo. Podem falar e envenenar a mente de outros.

    Maria estremeceu. Lembrou-se que havia traidores na guarda real. Alguns tramaram a invasão, e outros mudaram de lado no momento da luta. Lembrou-se particularmente do soldado de cabelos encaracolados, chamado Bento, que era um dos líderes da trama. Apesar de saber exatamente que esse seria o destino deles, não apreciava o fato de que em breve teria que matá-los.

    — Sim, Majestade! Farei tudo isso.

    — Ótimo! Preciso ir embora. Nos vemos em breve?

    Maria confirmou com a cabeça:

    — O mais rápido possível, Majestade!

    — Faço votos que sim. — A rainha levantou-se e disse, em seu tom de voz anormalmente agudo. — Melhoras, querida.

    Maria ficou olhando para a rainha até que esta deixasse a sala. Devia estar demonstrando muita tensão, pois a mulher de branco sentou-se na cama assim que a rainha saiu. Colocou a mão em seu ombro e disse:

    — Finalmente, agora posso cuidar de você. Pode relaxar agora.

    Seu sorriso era muito amável. Maria sorriu de volta, e ao fazê-lo percebeu como os músculos de seu rosto estiveram de fato muito tensos durante toda a visita da rainha.

    — Obrigada. Qual é o seu nome? — perguntou.

    — Não se lembra de mim? Sou curandeira aqui no castelo. Eu já cuidei de você antes. Com licença… — disse, levantando a túnica de Maria para ver como estavam seus ferimentos.

    Não querendo parecer arrogante, Maria fechou os olhos e tentou lembrar-se dela.

    — Sim, sim, eu já estive aqui uma vez. Para cuidar da minha coxa… puxa, eu lembro de você. — Segurou seu braço gentilmente. — Seu nome é… parecido com o meu… 

    Ela sorriu, enquanto olhava os ferimentos no ombro. Disse:

    — Vamos lá, está quase… não vou contar.

    — É Marina? — disse, confiante, mas com um pouco de hesitação.

    — É sim!

    — Desculpe-me, são muitas pessoas novas que eu conheci nos últimos meses, mas eu lembro de você.

    — Não se preocupe! Eu entendo. E você tomou um forte remédio quando foi trazida para cá. Ele mexe com a memória das pessoas. É por isso que está um pouco confusa.

    Mais um fragmento de memória brotou em sua mente. Havia um cheiro de álcool, e uma mão gentil que derramava um líquido quente em sua boca.

    — Parece que seus ferimentos estão fechando bem — disse Marina. — Mas cuidado! Qualquer movimento brusco e eles podem abrir de novo, e você não pode perder mais sangue de jeito nenhum!

    — Há quanto tempo eu estou aqui, Marina?

    — Quinze dias.

    — Nossa, tudo isso?

    — Você quase morreu, na verdade. Perdeu tanto sangue que é um verdadeiro milagre que seu coração ainda esteja batendo e que você esteja viva e conversando.

    — Graças a você! — disse Maria, carinhosamente. — Muito obrigada.

    — Não só eu. Agradeça também a Marcos e José. Foram eles quem cuidaram de você naquela noite.

    — Ah, eu acho que me lembro deles também! — Maria alegrou-se por sentir sua memória melhorando. — Um é mais velho, cabelos grisalhos, e o outro tem cabelos pretos, bem lisos?

    — Os próprios! Bem, vou trazer-lhe um pouco de bebida e comida. Está com fome?

    — Agora que falou, sim, muito!

    — Está bem, espere um pouco que eu já volto.

    — Não demore, por favor. Já esperei quinze dias.

    Rindo, Marina levantou-se da cama e foi buscar a refeição de sua paciente. Maria fez uma nota mental enquanto observava a moça que se afastava:

    Marina!

    Preciso começar a me lembrar melhor do nome das pessoas.

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