— Capitã? — Ouviu uma voz chamando-lhe do lado de fora, seguida por uma série de batidas na porta.

    — Um momento! — ela respondeu. Estava sem o elmo. Foi rapidamente até a estante onde ele ficava e o colocou na cabeça. Certificou-se de que não havia nada de importante exposto sobre a mesa e respondeu:

    — Pode entrar!

    A porta se abriu, e quatro soldados entraram vagarosamente. Reconheceu-os. Eram os quatro amigos de Bento, os que fizeram a brincadeira com as fivelas. Fez uma nota mental para perguntar a Bárbara o quão próximos eles eram do conspirador.

    — Pois não, soldados. O que desejam?

    — Senhora… — disse um deles. — P-perdão! Senhorita! — corrigiu. — Nós queríamos conversar com a senhorita.

    — É claro! Qual seu nome, soldado? — perguntou, gentilmente. Ele parecia ser mais inteligente que os demais.

    — É Ricardo, capitã!

    — Prossiga, Ricardo! O que está em suas mentes?

    — Na noite do ataque, nós… por um momento… nós cogitamos a possibilidade de… 

    — Do que? Diga logo, soldado! — Tinha aprendido a ir sempre direto ao ponto para extrair as informações de que precisava. Ricardo estava muito nervoso. Parecia que aqueles homens tinham algo muito grave a confessar.

    — Er… a senhorita não se lembra? A capitã estava lá! — disse Ricardo.

    Maria espantou-se um pouco. Além do episódio das fivelas, não tinha memória alguma daqueles homens. Xingou o tal remédio que lhe deram naquela noite e, não querendo parecer fraca, adotou uma tática defensiva:

    — Por que não me conta logo o que veio fazer aqui?

    — Sim, sim! Nós… naquela noite… — Ricardo não falava.

    Outro homem do grupo, ao perceber a hesitação do amigo, se adiantou:

    — Nós achamos que íamos morrer! — ele disse. — Então a gente pensou em mudar de lado para sobreviver.

    Ela olhou para o homem que acabara de falar. Ao ver seu rosto, seu coração parou de bater por um instante. Não era um rosto que reconhecia. Para falar a verdade, nem se lembrava de que ele fazia parte do grupo, ou de ter falado com ele alguma vez, mas o rosto imediatamente lhe causou uma forte e desconhecida emoção. Ele continuou falando, mas ela tinha dificuldade em prestar atenção:

    — Sem ofensas, capitã, mas a gente realmente achou que você tinha estragado tudo, prendendo a gente ali. Ou a gente mudava de lado, ou morria.

    O rosto era oval. Tinha um nariz largo, bem alinhado com a boca. Seus lábios eram rosados e grossos, terminando em duas covinhas nas bochechas. Os cabelos louros e lisos, levemente desarrumados, se confundiam com a pele clara, um pouco avermelhada. E os olhos azuis escuros brilhavam desafiadores por baixo da longa franja dourada. Ele continuava falando:

    — Mas desistimos quando você nos contou que tinha gente nossa lá fora. Defendemos a rainha até o fim, ficamos ao seu lado. Ricardo foi até ferido, e… 

    — O que? — ela disse, sem entender direito, saindo de seu torpor. — O que foi que eu disse?

    — Você não se lembra, mesmo? — o homem perguntou, curioso.

    — Er… não, sinto muito! — ela respondeu, encabulada. — Eu… deram-me um remédio muito forte naquela noite, afetou a minha memória!

    — Oh! — O rosto do homem exibiu, por um breve momento, um indício de alegria, mas logo fechou-se em uma expressão incrédula. — Então você não se lembra que nós lutamos para defender a rainha?

    Ela se lembrava vagamente. Ricardo, o soldado mais alto e de cabelos quase brancos, tinha de fato tentado convencer os outros a trair a coroa, mas ele também ficou ao seu lado quando mais precisou.

    — Calma! É… — Não conseguiu completar a frase.

    Droga! Por que estou tão afetada?

    — Soldados! — Retomou a forma como normalmente dirigia-se aos seus comandados, numa tentativa de lembrar a si mesma que era a capitã, e que precisava liderar aqueles homens. Continuou:

    — Não se preocupem. Muitos soldados cogitam a deserção em algum momento da vida. É um sentimento normal, de sobrevivência, mas não passou de uma fraqueza momentânea. O importante é que vocês não fizeram nada de errado. Vocês honraram seu juramento, não?

    Os homens entreolharam-se e sorriram. Ricardo retomou a compostura:

    — Obrigado, capitã! A gente queria tirar esse peso das costas.

    — E a gente queria lhe agradecer, também! — disse um dos outros soldados, que estava quieto até então, e de quem Maria não lembrava o nome. — Por salvar nossas vidas. Você realmente encarou aquela barreira de inimigos na nossa frente.

    — Não há por que agradecer — ela disse. — É meu dever, eu lhes fiz um juramento, lembram? Estarei sempre à sua frente em uma batalha.

    — Sim, mas a gente quer mostrar nossa gratidão mesmo assim. — O dono do rosto misterioso voltou a falar, agora com um sorriso muito esquisito entre as adoráveis covinhas. — Temos um presente.

    Ele pegou algo no bolso e colocou em cima da mesa, em frente à capitã. Ela ficou olhando-o, estupefata, por um instante, tentando entender o que era. Olhou para o homem, e perguntou:

    — O que é isto?

    Com o rosto muito vermelho, ele respondeu:

    — Er… é uma fivela!

    Fez-se um silêncio sepulcral. Maria não respondeu. O homem continuou:

    — A gente achou… por causa da… — ele apontava para o lado com o dedo — daquela… — pigarreou e coçou a cabeça — brincadeira… era para ser uma piada… 

    Maria não se conteve e começou a rir. Os homens relaxaram e riram também, parecendo muito aliviados.

    — Ah! Ah! Ah! Desculpem, eu… Ah! Ah! Ah! Vocês são abusados mesmo, não? Gosto disso! Podem ir soldados, fiquem tranquilos! E obrigada pelo presente.

    Enquanto eles se despediam e iam embora, o riso ia diminuindo. Assim que eles saíram, ela tirou o elmo da cabeça para recuperar um pouco do fôlego. Segurou a pequena argola metálica nas mãos, girando-a entre os dedos.

    Maria sentia-se leve. Depois de muito tempo lutando contra a hostilidade de praticamente todos os homens da guarda, finalmente tinha conseguido fazer uma pequena ruptura naquela barreira e receber um gesto de gozação, típico de amigos. Era exatamente o tipo de amizade brincalhona que aprendeu a apreciar desde seus primeiros dias no exército, e que agora se abria como uma possibilidade real ali.

    No entanto, o que parecia deixá-la realmente feliz era aquele rosto. De onde o conhecia? Por que lhe trazia uma emoção tão forte, tão positiva? Qual era seu nome?

    De repente, sentiu-se uma idiota. Esqueceu de perguntar o nome daquele homem.


    — Com licença? Bárbara?

    — Maria! Que surpresa!

    Estavam na sala do trono. Bárbara ajudava a organizar as cadeiras e tapeçarias para a cerimônia daquela noite. Dava ordens a dois jovens serviçais, dizendo-lhes como deveriam posicionar os móveis. Dispensou-os e foi ao encontro da amiga.

    — O que posso fazer pela senhorita? — disse, enquanto dobrava os joelhos e fazia uma reverência exagerada.

    — Ha, ha, ha! — fingiu uma risada. — Muito engraçado! Deixe de brincadeiras!

    — Quer se sentar?

    — Não precisa, é uma coisa rápida. Eu queria saber se você poderia me passar os nomes de alguns soldados. A rainha me pediu para fazer um relatório mais detalhado.

    Era mentira. Tinha ensaiado a história antes. Apenas não queria demonstrar que estava perseguindo alguém. Bárbara pareceu estranhar o pedido, mas assentiu:

    — Sim, é claro! Quem seriam?

    — Na noite da invasão, ficaram mais ou menos dez soldados presos aqui na sala do trono, com a rainha. Ela gostaria de saber mais coisas sobre eles. Acho que está pensando em condecorá-los por bravura — mentiu novamente.

    — Eles vão receber uma medalha? — perguntou Bárbara. — E você, não?

    — Eu não sei. Mas não quero medalha, eu não me importo, você sabe disso.

    — Só estou dizendo que se eles merecem uma medalha, é por sua causa. Pode deixar, eu vou tentar descobrir os nomes deles e levo depois para você, na sua sala.

    — Obrigada. Hã, sei de algo que talvez possa ajudar. Tinha um grupo de quatro soldados, parece que andam sempre juntos. Sei que o nome de um deles é Ricardo. Alto, cabelos bem claros… 

    — Ah, eu conheço! Esses quatro são inseparáveis!

    — É? — Seu coração acelerou. — E você sabe os nomes deles?

    — Sim, além do Ricardo, tem o Tomás, o Carlos e o Martim.

    — Sei… E como eles são? O Ricardo é o de cabelos bem claros…

    — O Tomás é o que tem cabelos escuros, um pouco longos. Ele tem uma cara meio maluca. O Carlos é um que tem o cabelo avermelhado, barba… parece sempre assustado com alguma coisa. E o Martim é alto, loiro, ombros largos… — Riu alto ao dizer isso, uma risada simpática, que Maria adorava.

    Martim!

    Então era esse o soldado que invadia suas memórias. A amiga continuava descrevendo-o:

    — É um pouco tímido e está sempre sozinho, não se mistura muito. Mas seu sorriso é encantador. E aquele peitoral? Não tem uma mulher aqui no castelo que não daria tudo para… 

    — Não preciso ouvir esse tipo de detalhe, Bárbara, pode parar! Eu preciso ir. Muito obrigada.

    — Até mais Maria. Eu deixo a lista na sua sala ainda hoje, tudo bem?

    — Hã? — Esqueceu-se momentaneamente do que se tratava. — Ah, sim, é claro! Obrigada mesmo.


    Estava do lado de fora do castelo. O Sol começava a subir. Acompanhava os soldados que treinavam com suas armas, alguns sozinhos, outros em dupla. Praticavam movimentos ou simulavam golpes, defesas e contragolpes. André estava ao lado dela:

    — Você não sente falta?

    — De treinar? Sim, mas ainda não retomei o hábito — Maria respondeu.

    — Eu sabia que quando se tornasse uma comandante iria ficar assim, preguiçosa e molenga!

    — Cale a boca! — disse, rindo. — E você? Não vejo você correndo em volta do castelo.

    — Meus poucos cabelos brancos me dão o direito de escolher o que fazer. Eu já corri muito nesta vida.

    — Só se for pra fugir dos seus enroscos. Como era o nome daquela uma que corria atrás de você em Monsanto?

    — Ah! Ah! Ah! Celeste. Ah, Celeste, o que fizeste com meu coração, Celeste?

    Eles riram. Continuaram olhando o treinamento. Maria percorria o batalhão com os olhos. Não queria admitir, mas estava ficando ansiosa em busca de Martim. Ainda não tinha encontrado-o.

    — Eu estou quase boa, meus ferimentos já não doem mais. Acho que vou voltar a treinar, sabe?

    — Essa eu quero ver. Quer que eu treine a espada com você?

    — Não quero te humilhar na frente dos soldados.

    — Ora, obrigado pela consideração, capitã.

    Ela o viu. Estava treinando com a lança, golpeando o ar. Estava do outro lado da área de treinamento, longe dali. Seu coração acelerou.

    — E como estão as coisas por aqui? — ela perguntou, na expectativa de que a conversa constante disfarçasse as marteladas fortes que ecoavam dentro de seu peito.

    — Melhorando. Metade já consegue terminar a parte física numa boa, e o restante está muito perto de conseguir também. Daqui a pouco vai chegar a hora de aumentar o tempo de corrida. 

    — Ótimo! E as armas?

    — Muito bem também. A maioria já era mais do que proficiente com sua arma de preferência quando entrou para a guarda, mas agora estão expandindo suas habilidades.

    Ela não tirava os olhos de Martim. Ele era péssimo com a lança.

    — Vamos andar? — disse Maria.

    — É claro!

    Caminharam lentamente em meio aos soldados. André gritava instruções aqui e ali, chamando os homens pelo nome. Maria ressentiu-se por não saber o nome de quase ninguém. Precisava fazer-se mais presente em meio aos seus comandados, mas teria tempo para isso e faria-o com calma. Sua experiência lhe dizia para não apressar esse contato. Ela sabia o quão difícil era para uma mulher se integrar a um grupo de homens. Por mais que as coisas estivessem melhorando, ainda não se sentia à vontade para conviver com eles normalmente.

    Depois de algum tempo, chegaram ao outro lado do campo. Pararam bem ao lado de onde Martim treinava e ficaram conversando. Sempre que podia, olhava-o discretamente, querendo ver quando terminaria sua prática. Quando o viu abaixar a lança e começar a se afastar, ela encerrou a conversa:

    — André, me dê licença, por favor. Veja se os homens precisam de sua ajuda. Vou resolver um assunto.

    Ele a olhou com desconfiança e se afastou.

    Maria deu uma pequena corrida, e quando chegou suficientemente próximo de Martim, chamou-o:

    — Soldado?

    Ele parou e virou-se para encarar a capitã. Tinha o olhar cauteloso quando se aproximou dela:

    — Sim, capitã!

    — Oi! — ela disse, sentindo-se momentaneamente estúpida por usar uma saudação tão informal. — Eu queria agradecer pelo seu presente. Estou usando, olhe! — Apontou para o cinto que segurava a bainha da espada. Estava preso pela fivela de metal.

    — Oh! Ah, sim, desculpe-me por isso, capitã. Foi só uma piada idiota. Os caras estavam morrendo de medo de serem punidos, então eu pensei em amenizar um pouco o clima, foi ideia minha…

    — Não, eu gostei da piada. Gostei mesmo! Sabe… — ela titubeou — eu não sou essa megera que todos vêem. Eu sempre fui uma de vocês. Uma soldada — acrescentou. — Esse posto de capitã é a minha primeira experiência no comando.

    Maria surpreendeu-se com a facilidade com que baixou sua defesa. Ela se cobrava muito para manter-se firme e estabelecer uma imagem forte e digna de respeito em um lugar como aquele, mas este homem em particular parecia minar todos seus esforços nesse sentido.

    Martim fez uma cara de surpresa. Disse:

    — Bom, eu não fazia ideia. Eu… o pessoal acha que está fazendo um ótimo trabalho. Todo mundo ficou muito impressionado com o jeito com que você lidou com os traidores.

    — Obrigada, é bom ouvir isso.

    Fez-se um silêncio constrangedor. Maria não queria que Martim fosse embora, então mudou de assunto:

    — E o que está achando do André? Eu fiquei com medo de trazê-lo para cá, achei que podiam não gostar dele.

    — André? Ele é ótimo, todos o adoram. Ele ensina muito bem.

    Tendo visto o jeito com que Martim usava a lança, Maria achou que ele estava mentindo. Ele logo emendou:

    — Só que… nem todos estão felizes com a escolha dos treinamentos. Bom, na verdade não posso falar pelos outros, mas… eu… não estou! — disse, semicerrando os olhos como alguém que espera receber um tapa na cara a qualquer momento.

    Ela sorriu e disse:

    — Está bem, está bem, vamos lá, desembucha! Qual a reclamação?

    — Bom, eu acho que a gente deveria treinar mais com as armas de nossa especialidade, para aproveitar melhor o nosso potencial.

    — Mas a ideia é torná-los soldados mais versáteis.

    — Com todo respeito, capitã! — ele disse, estufando o peito. — Acho melhor um soldado que é muito bom em uma coisa, do que um soldado que é mediano em várias coisas.

    Maria não concordou, mas apreciou a sinceridade do rapaz, e a coragem com que expôs seu ponto de vista. Disse, fazendo sinal positivo com a cabeça:

    — Tudo bem. Obrigada por dizer o que pensa. Eu vou discutir o assunto com André.

    Ele sorriu e agradeceu. Sem saber mais sobre o que falar, Maria despediu-se:

    — Obrigada pela conversa, soldado Martim. Até mais!

    Virou-se de costas e começou a se afastar, achando que ele faria o mesmo. Mas logo ouviu-o chamar:

    — Capitã?

    — Sim? — Ela virou-se e voltou a se aproximar dele.

    — É verdade que você não se lembra de nada que aconteceu naquela noite?

    Ao ser perguntada mais uma vez sobre o assunto, teve a mesma sensação estranha de antes, uma lembrança fragmentada se formando em sua mente. Lembrou-se de estar deitada, com muita dor. Cheiro forte de álcool. Alguém segurava sua mão e dizia que a dor iria passar. Não lembrava se era um dos curandeiros, Marcos e José, ou se era outra pessoa.

    — Não, quase nada. Por que?

    — Por nada… — ele respondeu. Despediu-se de novo, virou-se de costas e foi embora.

    Ela ficou olhando enquanto ele se afastava. Era a segunda vez que Martim lhe perguntava se tinha alguma lembrança daquela noite. Por que esse interesse? Enquanto ruminava esse pensamento, foi surpreendida pela voz de André:

    — E aí? O assunto foi resolvido?

    — Que susto, André! É, eu estava perguntando a… uns soldados sobre os treinamentos… 

    — Sei, estava é? — Ele olhou para os lados. — Só vi você conversando com Martim, ali. — Apontou com o dedo para o homem, já distante.

    Maria sentiu-se acuada e tentou disfarçar.

    — Escute… — disse, enquanto se virava de frente para o amigo. Ele era mais alto, de modo que tinha que olhar um pouco para cima. — Que acha de dar aos soldados mais tempo de treino com suas armas de preferência?

    — Martim lhe pediu para treinar com espadas, não foi?

    Ela corou, envergonhada por não conseguir esconder nada de André. Agradeceu por estar cobrindo o rosto com seu elmo.

    — Sim, ele pediu — confessou. — Bom, não mencionou a espada, mas eu acho que ele pode ter razão, sabe? Eu o vi treinando com a lança, e está longe de parecer minimamente competente. Talvez seja melhor que cada um treine com sua arma de preferência.

    — Ah, ele te fisgou direitinho com sua conversa mole! Ah! Ah! Ah! Está ficando menos durona, Maria. — Depois seu rosto ficou mais sereno. — E isso faz bem para você, sério.

    Ela sorriu e falou:

    — E aí? O que me diz?

    — Você é quem manda, capitã!

    Não era uma boa ideia, mas a levaria adiante mesmo assim.

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