Capítulo 14 - A Pequena Sereia
Maria ainda estava zonza quando acordou. Tinha desmaiado por causa do mundo que girava demais. Agora, parecia que o giro do mundo despertava-a de seu sono.
Estava sozinha, em uma cama desconhecida, em um quarto desconhecido. Olhou para seu corpo e viu que usava um vestido desconhecido. Ouvia sons e vozes que não reconhecia. A janela estava fechada, mas um pouco de luz entrava pelas frestas. Já tinha amanhecido.
A sensação não era nova. Já bebeu demais outras vezes, a ponto de desmaiar e ficar dormindo até o dia seguinte. Mas em todas elas acordou no mesmo lugar onde adormeceu, fosse no acampamento do exército após uma vitória, na taverna, deitada na mesa ou no chão, ou na casa de algum amigo. Desta vez, porém, não fazia a menor ideia de onde estava.
Na ânsia por descobrir mais informações, colocou os pés no chão e apoiou as mãos na cama, empurrando seu corpo para cima. Mas o chão estava torto e ela caiu de bruços, produzindo um baque surdo no assoalho de madeira. Olhou para sua perna e percebeu que seu pé artificial não estava preso nela. Estava ao lado da cama.
Nesse momento, a porta do quarto se abriu. Era Martim:
— Maria! Você está bem? O que aconteceu?
Ele se aproximou, segurou suas mãos e ajudou-a a se sentar novamente na cama. Ela teve dificuldades em olhar para ele, pois a tontura desviava seus olhos a todo momento.
— Estou bem, só um pouco tonta ainda. Maldita cerveja!
Ele riu, e disse:
— Só cerveja? Esqueceu do hidromel? E do vinho…
O estômago de Maria começou a revirar.
— Teve uma dose de aguardente também…
— Pare, por favor! Eu vou vomitar.
Ele pegou um objeto que estava ao lado da cama e o entregou para Maria:
— Toma, pode usar.
Ela olhou para baixo e viu um balde em suas mãos. Virou o rosto imediatamente, tentando fugir do cheiro repulsivo.
— Eca! O que tem aqui dentro?
— Pelo jeito, são parte de suas entranhas misturadas com álcool.
Ela imediatamente colocou mais um pouco de conteúdo no balde, enquanto ele se levantava e se afastava, rindo sem parar.
Maria sentia um misto de vergonha e raiva. Queria que Martim saísse dali para poder se recompor. Ele pareceu adivinhar, pois falou:
— Pelo jeito, você está bem. Vou deixá-la sozinha. Aqui nessa mesa tem água para você se lavar. Assim que estiver se sentindo melhor, desça. Minha irmã sabe preparar uns chás ótimos para ajudar com o mal-estar.
Nesse momento, ela lembrou-se que tinha comprado seu chá preferido. Antes que Martim saísse, perguntou:
— Onde está minha sacola de compras?
Martim respondeu, com um sorriso sem graça:
— Está lá embaixo, mas eu acho que você não ia querer o que estava dentro. Você… colocou suas entranhas nela também. Aliás, não só na sacola… seu vestido também ficou meio sujo.
— Ai, não, que vergonha! — ela disse, cobrindo o rosto com as mãos.
— Relaxa. Está tudo bem lavadinho e secando no varal. E antes que você pergunte — ele ficou sério —, foi a minha irmã quem cuidou de você. Esta é a casa dela.
Ela olhou para Martim, espiando entre os dedos das mãos, e disse:
— Estou atrapalhando sua vida e da sua família, né? Me desculpe. Eu já vou embora.
— Já disse para relaxar. Durma mais um pouco… pode ficar o tempo que precisar, não se preocupe.
— Obrigada.
Martim sorriu e saiu do quarto, fechando a porta e deixando Maria sozinha mais uma vez.
Vomitar na frente de Martim foi horrível, mas pelo menos serviu para acalmar-lhe um pouco o estômago. A sensação ruim também melhorou depois de lavar bem a boca e tomar uns goles de água.
Não queria dormir mais, então decidiu sair do quarto. Amaldiçoando-se a cada segundo, pegou o balde nas mãos e abriu a porta. A casa era pequena, e o quarto em que estava era o único cômodo que ficava no segundo andar. Começou a descer a escada estreita.
— Martim? — chamou, torcendo para que ele viesse sozinho.
— Estamos aqui — sua voz respondeu. — É só descer a escada.
Deu mais uns passos, devagar, até conseguir ver o único cômodo do andar inferior. Era uma combinação de sala e cozinha. De um lado, havia dois bancos largos, cobertos por almofadas e mantas coloridas. Em frente aos bancos, crepitavam as chamas de uma lareira, aquecendo o ar frio da manhã. Um grosso tapete completava a pequena, mas confortável, sala de estar.
Do outro lado, havia um fogão, um armário e muitas prateleiras repletas de potes e caixas. Uma jovem mulher, que Maria supôs ser a irmã de Martim, mexia em uma panela com uma grossa colher de pau. O cheiro da comida que ela preparava chegou ao seu nariz e despertou um apetite que até segundos atrás não ousava dar as caras. Definitivamente começava a se sentir melhor.
Martim estava também em pé, ao lado da irmã. Ele cortava alguns legumes com uma faca enquanto conversava com ela. Assim que o rosto de Maria apareceu, Martim olhou para ela e disse:
— Bom dia.
A moça que cozinhava virou-se também e exibiu um sorriso simpático. Seu rosto era parecido com o do irmão, porém mais fino no queixo. Ela tinha o mesmo tom de cabelo, loiro, mas usava-o mais curto. Enquanto Martim usava franjas longas que cobriam a testa, o cabelo dela ficava em pé, espetado e um pouco desarrumado. Os olhos dela eram também azuis, mas tinham um tom mais claro. As sobrancelhas finas eram escuras, como se fossem desenhadas cuidadosamente em sua testa, contrastando com a pele branca. Sua boca era diferente da de Martim, mais redonda e carnuda. O lábio superior quase tocava o nariz pequeno e arredondado quando sorria. Ela parecia ser mais jovem do que ele.
— Bom dia, Maria. Está se sentindo melhor?
Maria ainda estava muito sem graça, em parte por conta do balde que tentava esconder atrás de si, mas sorriu ao responder:
— Sim, obrigada. Er… onde fica o banheiro?
— Ali fora, é só sair pela porta e seguir pela parede da casa.
— Obrigada. Eu… preciso me livrar disso. — Exibiu um pedaço do balde por trás da perna.
— Deixa comigo! — Martim se virou, pronto para ajudá-la.
— NÃO! — A resposta saiu em um grito. Depois se acalmou e continuou: — Não, pode deixar, Martim. Já estou no meu limite de constrangimento por hoje.
— É justo — ele respondeu, levantando as mãos e voltando à sua tarefa.
Maria agradeceu e saiu pela porta. Não teve dificuldades em encontrar o banheiro.
Assim que voltou para a casa, a irmã de Martim colocou em suas mãos uma caneca com um líquido quente. Puxou uma cadeira para que se sentasse à mesa e disse:
— Esse chá é excelente, Maria. Garanto que depois de tomá-lo vai estar nova em folha.
— Obrigada. Martim, você não me disse qual é o nome da sua irmã.
Ele não teve tempo de responder, pois a mulher se adiantou:
— É Clara. É um prazer conhecer você.
Rindo sarcasticamente, Maria respondeu:
— Tenho certeza que o prazer é mais meu do que seu. Eu sinto muitíssimo pelo incômodo. Não sei nem o que dizer.
— Não precisa dizer nada. É um prazer receber aqui a capitã da guarda. Martim fala muito de você. Eu estava louca para conhecê-la.
Maria sorriu envergonhada e tomou um gole do chá. Era muito amargo, mas dava uma sensação de alívio ao descer pela garganta. Tomou mais um gole antes de responder:
— Você é muito gentil. Aliás, vocês dois — corrigiu e olhou para ele. — Se Martim não tivesse me trazido para cá eu acho que estaria até agora no chão da praça com um cachorro me lambendo a cara.
— Se fosse só um cachorro, estaria de bom tamanho — ele disse, rindo. — Desconfio que estaria passando coisa pior. Aqueles soldados não estavam mais em condições de serem confiáveis.
— Ugh! — exclamou Clara. — É verdade. Quando aquele bando de homens se junta para beber, é difícil aturar.
— É que a noite estava tão agradável que eu perdi a noção — Maria explicou. — Acho que a última vez que eu bebi desse jeito ainda estava em campanha. A gente tinha acabado de sobreviver a uma emboscada. Até o comandante encheu a cara.
— Ah, eu adoro ouvir histórias de batalhas — disse Clara. Deixou a panela de lado e sentou-se ao lado de Maria. — Martim nunca me conta nada, e quando conta, só fala por cima, não dá nenhum detalhe.
— Essas histórias não são para você, Clara — Martim disse, com um olhar preocupado.
Maria olhou desafiadoramente para ele e ergueu uma das sobrancelhas. Martim ficou sem graça e disse:
— É que eu não gosto de falar dessas coisas com ela, só isso.
Maria voltou-se para Clara e disse:
— Homens são assim mesmo. O que você quer saber, mulher? Eu conto o que quiser.
— Primeiro eu quero saber como é conviver com os homens. Aposto que no exército todos ficam louquinhos por ter uma mulher bonita no grupo. Você já teve algum namorado?
Maria sorriu, apreciando a espontaneidade de Clara. Já Martim, pela sua cara fechada, não parecia estar tão confortável assim com o atrevimento da irmã.
— Na verdade, eles me acolheram muito bem. Me tratavam como uma irmã pequena, me protegiam o tempo todo. Eu era muito nova quando entrei, tinha quinze anos. E eu fiz muitos amigos, os melhores que eu podia querer.
— E namorados também?
O sorriso de Maria diminuiu. Não queria falar disso. Vivia recebendo cantadas e assédio, até mesmo de homens casados, que não tinham o menor pudor em fazer propostas indecentes ou mesmo obscenamente explícitas. Tinha que se manter simpática e sorridente apenas para não causar um mal-estar na tropa e dar um motivo para ser afastada. Era frustrante, além de tornar muito mais difícil a tarefa de escolher um pretendente sério. E as poucas vezes que juntou coragem para se aproximar de alguém terminaram em abandono e desrespeito. Esquivou-se em sua resposta:
— Imagine-se tentando namorar, mas tendo duzentos irmãos mais velhos sempre do seu lado, e você vai ter uma ideia do que eu sofri.
— Misericórdia! Eu já sofro bastante com meus irmãos, né, Martim?
— Ah, não reclama. Você tem é que me agradecer por te livrar desses patetas que ficam no seu pé.
Clara logo emendou outra pergunta, ao que Maria ficou aliviada:
— E como você perdeu sua perna? Foi numa batalha?
— Clara! — repreendeu Martim, claramente incomodado.
Maria sorriu por um momento, mas de repente lembrou-se que estava se intrometendo na folga de Martim. Já tinha abusado de sua boa vontade além de todos os limites, e agora deixava-o muito desconfortável. Sem graça, ela disse:
— Olha, quem sabe outro dia… eu preciso ir embora, já incomodei demais vocês dois.
— Não, nem pensar — disse Clara. — Você vai almoçar com a gente.
— Clara! — disse Martim, quase gritando agora. — A gente nem sabe se ela pode… — Olhou para Maria e perguntou: — Você… gostaria de se juntar a nós?
— Não, não, eu não quero mais incomodar…
— Já incomodou, não tem mais jeito agora — disse Clara, com a cara amarrada. — E a casa é minha, eu que faço o convite. Maria, fique, por favor. Eu adoraria conversar com alguém que não fosse esse cabeça-dura do meu irmão.
— Oh, eu também te amo, irmãzinha — disse Martim, enquanto deixava a faca junto com os legumes e virava-se para dar um apertão na bochecha de Clara.
Maria suspirou e disse:
— Bom, o cheiro está divino. Confesso que estou doida para experimentar o que vocês estão cozinhando.
— Então está decidido. Martim, pegue os pratos.
A comida estava tão deliciosa quanto sugerido pelo seu aroma. Clara e Martim prepararam um ensopado de peixe com legumes, que Maria saboreava aos poucos enquanto conversavam. Eles acompanhavam a refeição com vinho branco, mas Maria, para poupar seu estômago judiado, limitou-se a beber água.
Ela não teve tempo de contar sobre a sua perna, pois Clara mudou de assunto e se interessou por outras histórias. Enquanto ouvia, fazia perguntas sobre os mais diversos detalhes, como que tipo de arma ela escolhia usar em cada situação, ou qual era a sua tática preferida. Também queria saber — para desespero de Martim — alguns detalhes mais sombrios. Como ela sabia que um inimigo morreu mesmo? Que tipo de som eles faziam nessa hora? Qual foi sua eliminação mais memorável?
— Credo, irmã, cada coisa que você pergunta! — disse Martim.
— Ué, eu fico curiosa. A gente só ouve as músicas e poesias que falam de heroísmo e de batalhas gloriosas, mas na vida real as coisas são diferentes, não são?
— São — disse Maria. Ela não gostava de pensar nesse tipo de coisa, principalmente por causa da morte de muitos de seus irmãos do exército. — Não há nada de glorioso em uma batalha — completou.
Martim acenou com a cabeça em concordância, com o olhar triste. Quantos irmãos ele teria também perdido na guerra?
— Vai, Martim, me conta uma história sua, agora? — choramingou Clara.
Maria olhou para ele, juntando seu olhar inquisidor ao de Clara. Desistindo de lutar contra a insistência das duas, ele suspirou e começou a falar:
— Tá bom, vamos lá! — Fez uma pausa. — O meu batalhão marchava há vários dias, rumo à ponte de Lis. Foi na campanha contra o reino de Sepúlveda. — Olhou para Maria, que acenou em reconhecimento ao fato histórico. — Tínhamos que assegurar o controle da ponte para garantir que não faltassem suprimentos para nossos homens que estavam no leste. Eu tinha acabado de perder um irmão algumas horas antes. Ele teve um ferimento no ombro que não sarou. A gangrena se espalhou e depois de uns dias já não havia mais esperanças de se recuperar. Acabamos deixando-o para morrer à beira da estrada. Ou seja, a moral estava muito baixa. Ao chegar à ponte, vimos que já estava tomada pelos inimigos. Não eram muitos, mas nossos números também não eram suficientes para assustá-los, então a gente se preparou para a luta. O clima era péssimo, e todos se perguntavam quantos de nós não veriam o pôr-do-sol no final do dia.
Maria ouvia atentamente. Clara estava tensa, mas parecia feliz por finalmente ouvir uma história de Martim. Ele continuou:
— O comandante organizou as linhas, e eu fiquei na retaguarda. O plano era um ataque direto. A ponte era estreita, então não adiantava mandar todos de uma vez só. A primeira onda tentaria quebrar a defesa. Dependendo do resultado, o restante da tropa iria aparecer dando o apoio para acabar com qualquer resistência. Tudo dependia do sucesso da primeira onda e do sincronismo do segundo ataque. Caso não funcionasse, nós precisaríamos recuar e abandoná-los.
— Não me parece um bom plano — disse Clara.
— É difícil dizer — explicou Maria. — Às vezes não há nenhuma opção boa.
— Sim, eu não soube julgar — disse Martim. — Ninguém soube. Estávamos muito cansados e desanimados, e o comandante não nos deu muito tempo para pensar, então logo o ataque começou.
Clara se endireitou na cadeira. Martim agora falava mais baixo:
— Eu me lembro de ter visto um garoto na primeira fila. Era muito jovem. Eu também era, mas eu lembro que achei que ele era realmente jovem. Ele começou a correr, e eu não conseguia tirar os olhos dele. Pude ver perfeitamente quando ele deu uma trombada na parede de escudos dos defensores. Seu rosto bateu na madeira e ele caiu. Segundos antes, estava correndo e brandindo sua espada, e agora estava caído. Não derrotou nenhum inimigo, não ajudou no ataque, não deu nenhum golpe com sua espada, apenas caiu e ficou deitado. Provavelmente foi pisoteado várias vezes pelos homens que lutavam por cima dele.
— Que triste — Maria levou as mãos ao peito.
— Eu não conseguia tirar os olhos daquele garoto caído no chão. “Mexa-se!”, eu murmurava. “Mexa-se, desgraçado, levante-se!”. Mas ele não levantava. Aí alguma coisa acendeu em mim. Eu quebrei a formação e saí correndo. Entrei no meio da luta, mesmo com os gritos e protestos do comandante e dos meus colegas atrás de mim, e de alguma forma eu consegui puxá-lo para longe. Eu o arrastei para trás até ficar em um lugar seguro de novo. Lembro de tê-lo sacudido e gritado com ele, até que ele acordou. Ele estava bem, não se feriu.
— Nossa, Martim, que história! — disse Clara.
— Calma, ainda não acabou — ele sorriu. — Quando a batalha estava quase no fim, e nós tínhamos avançado em todos os pontos, havia apenas um foco de resistência. A ponte estava apinhada com nossos homens, e os inimigos já haviam abandonado-a. Foi nessa hora que o tal garoto saiu em disparada, mas ele foi na direção contrária. Correu de volta pela ponte até a nossa margem do rio, e depois mergulhou na água. Eu o acompanhei enquanto ele atravessava o rio, saindo do outro lado. De repente, eu vi para onde ele ia. Um homem estava batendo com um machado em um dos pilares da ponte. Era uma armadilha.
Clara e Maria deram um suspiro, e Martim continuou:
— A ponte era bem alta em seu ponto central. Se ela caísse, muitos de nossos homens morreriam, e o restante iria se ferir seriamente, mas o garoto conseguiu derrubar o homem do machado a tempo. A ponte ficou em pé e os inimigos foram derrotados.
Ele parou de falar por um momento para tomar um gole de vinho. Depois continuou:
— Eu fiquei muito tempo me perguntando por que esse garoto me chamou tanto a atenção. Se eu não tivesse ido em seu socorro, eu não estaria aqui hoje. Muitos de meus companheiros também teriam morrido. E eu não sei a resposta. Eu já tinha visto outros morrerem de forma tão medíocre antes, sem dar um golpe sequer, mas isso nunca me afetou daquele jeito. Alguma coisa, ou alguém, me iluminou naquele dia.
— Alguém? — perguntou Maria.
— O pessoal depois veio com umas ideias malucas. — Sorriu e tomou mais um gole de vinho, esvaziando o copo. — Alguns disseram que era o espírito do soldado que deixamos para morrer à beira da estrada. Dizem que a alma dele sofria por não conseguir ajudar na batalha, por isso ele me ajudou. Outros disseram que foi intervenção divina. Eu não sei porque fiz aquilo, só sei que depois de tudo, eu escapei de levar um castigo por descumprir minhas ordens.
— Você tem um bom coração, irmãozão — disse Clara, com os olhos marejados. — Foi por isso.
Ele olhava o copo vazio nas mãos. Parecia lembrar-se de algo muito triste.
— O que foi, Martim? — perguntou Maria.
Martim levantou o olhar. Ao perceber que as duas fitavam-no profundamente, mudou imediatamente seu semblante para uma cara mais alegre, e disse:
— Nada, não. Pronto, Clarinha. Contei uma história minha, está feliz?
Ela se levantou e o abraçou:
— Muito. — Deu-lhe um beijo na cabeça. — Obrigada.
O almoço já tinha terminado. Parecendo incomodado com a atenção toda sobre si, Martim levantou-se e começou a lavar a louça, mas Maria não deixou que ele continuasse.
— Eu lavo. Deixa eu ser só um pouquinho útil, pelo menos?
Martim concordou e foi até o lado de fora da casa, dizendo que iria recolher as roupas que secavam. Clara se apoiou na parede ao lado de Maria e ficou conversando com ela enquanto lavava a louça. Falavam sobre a sua família:
— Então além de Martim e você, tem a Isabel, a Rute e seus outros irmãos… Pedro e Pascoal.
— Isso mesmo — confirmou Clara.
— E são todos casados?
— Todos, menos Martim e eu.
— E esta casa era dos seus pais?
— Sim. — Ela levantou os braços e apontou ao redor. — Está bem mais espaçosa agora. Você precisava ver quando morávamos todos aqui. Eu e o Martim ficávamos o dia inteiro na rua, só para fugir da aglomeração. Até hoje ele não gosta de ficar em lugares cheios de gente.
— Eu posso imaginar. E os seus pais?
— Eles morreram faz tempo. Nosso pai desapareceu no mar. Saiu um dia para pescar e nunca mais voltou. Nossa mãe ficou muito doente e morreu pouco tempo depois.
— Sinto muito, deve ter sido difícil.
— Nem tanto. Nessa hora foi bom sermos em grande número. É muito mais fácil segurar uma barra dessa juntos. E o Pascoal é bem mais velho, ele fez de tudo para tomar conta de nós.
— Ele deve ser um herói para vocês.
— Ah, sim, em especial o Martim. Foi por causa dele que decidiu entrar para o exército, sabia?
— Ah é? Pascoal também serviu?
— Sim, por muitos anos. Martim tinha grande admiração pelo irmão. Agora ele já se aposentou, vive longe daqui.
Elas ficaram em silêncio por uns instantes. Clara parecia apreensiva. Olhava para Maria e roía uma das unhas. Depois de algum tempo, disse:
— Escuta, Maria, eu posso perguntar uma coisa?
— Claro.
— Como estão as coisas lá no castelo? Para o Martim?
— Acho que tudo normal. Por que?
— Por causa do que aconteceu com o capitão. Foi bem ruim.
Mais uma vez, Maria se repreendeu por saber tão pouco sobre os homens sob seu comando.
— O que aconteceu? Eu sei que ele faleceu, mas por que isso foi ruim para o Martim?
— Então você não sabe?
— Não.
Clara abaixou a voz e se aproximou:
— Tá legal, mas não diga que eu contei isso. Ele me mata se souber.
— É claro.
Clara definitivamente gostava de se abrir e não ligava para segredos. Continuou falando sem se importar com o fato de que tinha conhecido Maria poucas horas atrás:
— Teve uma revolta na cidade. Está todo mundo sem dinheiro, você sabe, e a rainha resolveu aumentar os impostos. Disse que a coroa estava sem recursos, e tal, essas mentiras todas que os nobres vomitam em cima da gente.
— Sei.
— Isso deixou todo mundo nervoso, como pode imaginar. Muitos foram protestar em frente ao castelo, e a guarda real foi chamada para conter os manifestantes. Não era para ter nenhuma luta. O pessoal estava bravo e queria quebrar tudo, mas os soldados tinham armas de verdade, e ninguém ia ser louco de se jogar contra uma espada e morrer de bobeira. Só que teve uns idiotas que foram. Eles avançaram, e bem no lugar onde o Martim estava.
— E o que aconteceu?
— Eu não sei direito, porque o Martim não fala sobre esse assunto. Pelo que me contaram, esse pequeno grupo conseguiu avançar e desmontar a defesa. Aí começou a luta e o capitão acabou morrendo. Depois disso, os amigos dele contam que o Martim nunca mais foi o mesmo. Ele não fala, mas eu tenho certeza que ele acha que a culpa foi dele.
— Eu não fazia ideia, Clara. Deve ser muito difícil.
— É, e ele gostava muito do capitão Augusto. Ele sempre dizia que era como se fosse um pai… — De repente, Clara subiu o tom de voz e disse, de um jeito bastante artificial: — Sim, são todos casados, menos Martim e eu.
Martim retornava naquele exato momento, trazendo uma cesta cheia de roupas, entre elas o vestido e a sacola de Maria, limpos e secos.
— Do que estão falando? — ele perguntou.
— Oh, muito obrigada — disse Maria, para disfarçar, enquanto pegava suas coisas da cesta. — Eu posso trazer seu vestido depois, Clara? Quero devolvê-lo limpo também.
— Ótima ideia. Assim você tem uma desculpa para me visitar de novo — respondeu, dando-lhe uma piscadela.
Maria sorriu e prometeu voltar em breve. Continuou conversando com Clara, lavando a louça e ignorando Martim.
Depois das despedidas, Martim se ofereceu para acompanhar Maria por algumas quadras. Disse que tinha um assunto a resolver no caminho. Depois voltaria para pernoitar com Clara, enquanto Maria seguiria para o castelo.
Caminhavam pelas ruas da cidade. Clara morava perto da praça, em uma rua cheia de casas pequenas e amontoadas. Maria andou por ali algumas vezes, mas ainda não sabia se orientar direito.
Caminharam por um tempo, conversando sobre aquela região e a vida ali por perto. Passaram por ruas e casas amareladas pela luz do fim de tarde. Como no dia anterior, o ar estava novamente quente e muito agradável. Em um dado momento, Martim falou:
— Eu fico por aqui.
— Oh, certo. Onde estamos? — Ela estava novamente perdida.
— Seguindo por aquela rua — ele apontou para uma direção —, você vai chegar até o descampado que fica ao lado do castelo. São só quinze minutos de caminhada.
— Está bem, então. — Maria não queria se despedir ainda. À procura de um motivo para esticar um pouco mais a conversa, arriscou mais uma pergunta. — O que você vai fazer agora?
— Ah, eu vim visitar uma amiga.
Sentiu um peso no estômago.
Amiga?
— Ah, tá — ela respondeu, seca.
— Quer conhecê-la?
Não!
A resposta ficou presa em sua garganta. Se fosse no dia anterior, a ideia seria bem-vinda. Bárbara e Violeta deixaram bem claro que ele era um homem muito desejado. Certamente não era difícil imaginar que uma pretendente tivesse conquistado um lugar em seu coração. Saber que ele tinha namorada seria uma ótima desculpa para esquecer Martim de uma vez, mas as últimas horas afetaram completamente a sua razão. Foi com uma pontada de ciúme na voz que respondeu:
— Não. Está ficando tarde.
— Venha, acho que você vai gostar dela. Vocês têm algo em comum.
— Não, Martim, eu não quero…
Martim desprezou os protestos de Maria e saiu andando rápido, desaparecendo em um beco pequeno. Relutante, Maria o seguiu. Pararam em frente a uma cerca recortada por uma portinhola de madeira. Ele abriu-a e entrou primeiro, segurando-a para que Maria entrasse também. Ele sorria, mas ela não conseguia retribuir. Olhou-o com reprovação, mas cedeu, resignada, e passou pela cerca.
Era um lugar estranho para alguém morar. Não havia nada além de uma pequena área cercada.
— Onde ela está? — ele disse, com a voz animada. — Ah, aqui, vem garota!
Uma pequena criatura marrom e peluda apareceu pulando e enroscando-se nas pernas de Martim. Latia e chorava ao mesmo tempo em que balançava o rabo desesperadamente, tentando colocar seu focinho na cara dele. Sem parar nem por um instante, a cadelinha pulou na direção de Maria. Sentiu seu nariz gelado tocando-lhe o queixo e a bochecha à medida que saltava, tentando a todo custo dar-lhe umas lambidas.
— Oooh, que linda — disse, derretendo-se em um sorriso enquanto tentava acariciar as orelhas da cachorrinha.
— O nome dela é Sereia — disse Martim.
A cadelinha corria de um lado para outro, sem saber a quem agradar, mas Martim lhe deu um motivo para parar. Tirou um pedaço de carne seca que trazia no bolso e o mostrou para Sereia. A cadela imediatamente se sentou e levantou as orelhas, aguardando pelo petisco. Nesse momento, Maria pôde ver que ela não tinha uma das perninhas traseiras.
— Eu a resgatei no cais. Acho que ela caiu de algum barco de pesca — disse, enquanto colocava o pedaço de carne em frente à amiga canina. — Ela deve ter nadado por um bom tempo, pois não tinha nenhum barco por perto. Parecia muito fraquinha, e tinha perdido uma pata. Aí eu a trouxe para cá e cuidei dela. Eu não posso levá-la para o castelo, então um amigo meu me emprestou esse cercado. Ele vem alimentá-la sempre, mas não tem muito tempo para passear com ela.
Maria ficou olhando enquanto Sereia terminava de comer sua janta. Martim a acariciou atrás da orelha e deu um sorriso para Maria. Ela sorriu de volta e repreendeu-se pelo pequeno assomo de ciúmes de momentos atrás. Seu coração encheu-se de admiração, e com as duas mãos no peito ela o acompanhou enquanto ele abria a portinhola e guiava Sereia para fora do cercado.
Voltaram a caminhar juntos pelas ruas da cidade, agora acompanhados pela feliz companheira de Martim. Maria não soube dizer se demoraram uma ou dez horas, se andaram um ou vinte quilômetros. O tempo parou naquele fim de tarde.
Quando deixaram uma chorona Sereia de volta no seu cercado, certificando-se de que seu suprimento de água e comida era suficiente, já tinha anoitecido.
— Bom, boa noite Martim. Agora eu vou embora mesmo.
— Boa noite, Maria, até mais. — Ele a olhava de um jeito estranho.
— O que foi?
— Nada, é só que… — Hesitou. — Amanhã volta o… — fez um gesto com a palma da mão sobre o rosto — elmo da capitã, né?
A lembrança lhe pesou nas costas. No dia seguinte retornaria à sua rotina. As hostilidades, intrigas e a luta eterna pelo respeito seriam mais uma vez sua realidade.
— É.
— Então, só estou aproveitando para apreciar o seu rosto mais um pouquinho.
Ele sorriu e se despediu, deixando-a com o coração quase saltando para fora do peito.
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