Capítulo 16 - Uma Linda Mulher
O passeio com Frederico durou horas, ou pelo menos assim lhe pareceu. Claramente contrariando a rainha, Maria manteve o elmo na cabeça o tempo todo, apesar dos constantes protestos do homem desprezível que a acompanhava. Ao final da inspeção, levou-o até sua sala para combinar os detalhes sobre a doação.
— Muito bem, vejo que você é muito organizada, tem tudo bem controlado, contabilizado, mas… eu não posso fazer a doação, ainda.
— E por que não, milorde?
— Eu preciso de um tempo para pensar. Que tal eu lhe dar a resposta amanhã, no jantar? Só você e eu.
Um desgosto percorreu o rosto de Maria. Imaginou Catarina ao seu lado, sussurrando: “Aceite. Vamos, aceite!”.
— Nem pensar. Se esta é a sua decisão — levantou-se, foi até a porta e a abriu —, levarei-a para a rainha. Pode se retirar, agora.
— Não, por favor! Eu mudo minha condição — ele implorou. — Faço a doação se eu puder ver seu rosto mais uma vez.
Revirando os olhos, Maria fechou a porta e retornou ao seu lugar atrás da mesa. Comprimindo os lábios, retirou o elmo de sua cabeça e o jogou no chão.
Frederico mais uma vez exibiu seu sorriso maroto.
— Você é muito bela, Maria. A visão que me concedeu agora vale muito mais do que os míseros trocados que estou doando à coroa.
— Obrigada pelos elogios, mas você deveria poupá-los para uma dama que possa corresponder à sua cortesia.
— Essa dama não poderia ser você? — Ele começou a circundar a mesa e aproximar-se dela.
— Não.
— E por que não? — Ele soava confiante em sua insistência. Deu mais dois passos.
Maria olhou-o com a maior ferocidade que podia e disse:
— Por que eu não sou uma dama.
— Seu rosto me diz o contrário. — Estava muito perto dela agora.
— E minha espada em seu pinto, diz o que?
O homem olhou para baixo e percebeu a ponta afiada entre suas pernas. Por um momento, ficou atordoado, mas logo irrompeu em um riso solto, autêntico. Levantou as mãos e afastou-se de Maria em passos lentos. Ele disse:
— Tudo bem, tudo bem. Acho melhor eu sair, então.
— Acho melhor — disse Maria, embainhando sua espada.
— Adeus, Maria. Saiba que você já conquistou meu coração. Se algum dia quiser mais doações, venha falar diretamente comigo, assim eu não preciso aturar aquela doida da rainha. É só pedir que eu venho. — Beijou os dedos indicador e médio, apontou-os para Maria e saiu em seguida.
Assim que ele sumiu, ela foi até a porta e a fechou com um baque estrondoso. Voltou até sua cadeira e sentou-se, cobrindo o rosto com as duas mãos. Soltou um urro e deu um soco na mesa, para extravasar toda a mistura de raiva, indignação e horror que tinha sentido naquele dia. Desejou muito tomar um porre.
Por que não?
Começou a arrumar seus papéis em cima da mesa. Iria até a cozinha, onde pegaria uma jarra de vinho tinto e alguns pães. Depois iria se trancar no quarto e encerrar mais cedo as atividades do dia.
Toc. Toc. Toc.
Batidas na porta.
Amaldiçoando Frederico e sua arrogância, ela levantou-se. Tirou a espada da bainha, abriu a porta e gritou, enquanto brandia a arma sobre a cabeça:
— Diga adeus ao seu pinto!
O homem deixou cair algo e colocou imediatamente as mãos entre as pernas. Seu rosto se contorceu em uma expressão de terror. Mas não era o rosto de Frederico.
Era Martim.
Maria deixou cair a espada e soltou um suspiro alto, trêmulo. Exceto pela careta distorcida por um misto de choro e horror, não conseguia mover um músculo sequer. Podia apenas observar o rosto assustado do rapaz, que parecia tentar a todo custo compreender o que estava acontecendo.
Juntando toda força de vontade que ainda restava em seu âmago, ela forçou seu corpo para trás. Ergueu a mão até a maçaneta e fez girar a porta, arremessando-a com força de volta em seu batente.
O silêncio da sala era absoluto. Era tão intenso que ela podia literalmente ouvir as batidas de seu coração, que lutava forte para bombear sangue pelo corpo em choque. Por um segundo, torceu para ter sido apenas sua imaginação. Nada tinha acontecido. Olhava a porta de madeira bem de perto, o nariz a poucos centímetros de distância. Se não fosse imaginação, do outro lado estaria Martim, igualmente aterrorizado. Não, ele estaria pior, bem pior. Ele bateu em uma porta e, do nada, sem nenhum tipo de aviso, deu de cara com uma maluca brandindo uma espada, dizendo que iria lhe cortar os órgãos genitais. Lembrou-se do comentário de Ricardo, sobre como os soldados a achavam meio maluca. Lembrou-se do próprio Martim sugerindo que ela às vezes não parecia ser uma pessoa normal. Não importa quantas explicações fornecesse, essa imagem estaria indelevelmente gravada na mente dele.
Colocou as mãos na boca, virou-se de costas e escorregou pela madeira, caindo sentada no chão. Ficou ali por vários segundos, sem acreditar no que tinha acabado de fazer, pois nem em seus piores pesadelos teria sido capaz de vivenciar uma cena tão bizarra.
Toc. Toc. Toc.
Mais uma vez, seu coração parou de bater por um instante. Martim ainda estava ali, mas ela não podia abrir a porta. Não teria coragem para encará-lo.
— Maria? — A voz era abafada pela grossa madeira, quase inaudível.
Ficou quieta. Talvez ele desistisse e fosse embora. Nunca mais conversaria com ele e pronto, estaria tudo resolvido.
— Sua espada ficou aqui fora, então acho que eu não preciso me preocupar com meu… pinto, né?
Ele está… caçoando de mim?
Estava. E pelo jeito, não iria desistir tão facilmente. Juntando mais uma vez os cacos de seu orgulho despedaçado, conseguiu erguer-se. Suspirou, colocou a mão na maçaneta e abriu um pouco a porta, o suficiente para espiar e ver que Martim estava parado em pé, um pouco longe. Ele disse, fingindo estar muito sério:
— Mas por via das dúvidas, vou ficar a uma distância segura. Você entende, né?
Certificando-se de que não havia mais ninguém ali, pois estava sem o elmo, ela abriu a porta completamente. Sem se atrever a olhar para ele e mantendo uma das mãos no quadril, ela disse:
— Eu só queria dizer que existe uma explicação perfeitamente razoável para isso.
Ele sorriu e respondeu:
— Mal posso esperar.
Maria não conseguiu se segurar e começou a desabafar:
— Desculpe, mas toda vez que fico sozinha com você, eu estou pelada e toda furada, ou então saindo de um bordel, ou bêbada, vomitando na sua frente, ou então… isso! — Apontou para a espada caída no chão, antes de pegá-la.
Martim escondeu um riso com a mão. Maria disse:
— Mas são só… coincidências.
— Muitas coincidências, né? — ele disse.
— Ora, cale a boca e entre logo de uma vez.
— Sim, capitã.
Maria deixou que ele passasse e fechou a porta atrás dele. Ficou parada na porta e acompanhou-o de longe enquanto ele se dirigia à sua mesa. Havia apenas uma cadeira na sala, que ela ofereceu:
— Desculpe por eu ser tão rude. Pode se sentar. Eu ainda preciso de um tempo para me acalmar.
Ele fez uma cara de orgulho, deu a volta na mesa e se sentou na cadeira. Fingindo ser uma pessoa importante, falou:
— E então?
— Então o que?
— A explicação, soldada! — Ele riu. — Estou esperando.
— Ha! Ha! Entendi, você é o capitão e eu sou a sua subordinada.
— Desculpe, estava só brincando. — Ele se levantou. — Isso te incomoda?
— Não, não! — Fez um gesto com o braço, indicando que ele podia continuar sentado. Começou a caminhar em direção à mesa. — É que hoje foi um dia terrível. — Apoiou-se na mesa e sentou-se na beirada, soltando um suspiro.
— Mas ainda estamos no meio da tarde.
— Pois é. Para você ver.
— Deve ser difícil ser líder, responsável por um batalhão, cuidar da segurança do castelo… — Seu olhar era compreensivo.
— Sim, mas nada justifica o que eu fiz agora há pouco. Certo, vou apenas contar de uma vez. — Levantou os ombros.
Ele se ajeitou na cadeira para ouvir.
— Segundos antes de você chegar, eu expulsei um babaca da minha sala, ameaçando cortar seu… você-sabe-o-quê, não me faça repetir.
— Sei.
— Enfim, quando você bateu na porta, eu achei que era ele. Eu sei que não deveria ficar tão brava, mas é que antes disso eu tive que… bem, foi um dia bem complicado, não quero falar sobre isso. Pra resumir, eu estava puta da vida.
— E o que esse babaca fez para merecer essa fúria toda, posso perguntar?
— Ora, o que todo homem faz quando se acha no direito de cortejar uma mulher mesmo quando ela não está a fim? Ainda mais quando se é um nobre, nojento e arrogante?
Ele sorriu para ela. Não parecia mais um riso de deboche, e sim algo diferente.
— Por favor, POR FAVOR — ela implorou. — Será que você consegue esquecer o que aconteceu?
— Eu prometo não falar nada para ninguém, mas esquecer eu acho que não vou conseguir. Me desculpe, mas vou guardar essa imagem para sempre na minha cabeça. Foi muito engraçado, isso você tem que admitir.
Um sorriso se abriu nos lábios de Maria. Ela colocou a mão nos olhos e disse:
— É, suponho que sim. Se a pessoa humilhada não for você, é claro.
Ele riu, e ficaram em silêncio por um tempo. Ela enfim tomou coragem para olhar nos olhos dele por mais do que um instante. Ele parecia admirá-la com profundo interesse. Maria disse:
— Eu não sei como você ainda tem coragem de vir falar comigo. Eu entenderia se desaparecesse de uma vez.
— Bom, para ser justo, em sua defesa, nossos encontros tem sido memoráveis.
— Memoráveis? Nisso você está certo.
— Na primeira vez, você estava morrendo, depois de ter salvado minha vida. Eu nunca vou poder te agradecer o suficiente.
— Bom… — Maria ficou sem graça. — Eu fiz um juramento.
— Depois, foi só visitar uma amiga, que por acaso trabalha num prostíbulo. Que mal há nisso? E quem nunca passou mal depois de beber?
— Você, não.
— Mesmo assim, nada para se envergonhar.
— Você lavou meu vestido todo cheio de vômito.
— Ah, bom, isso não foi nada. Isso! — Ele levantou o dedo indicador. — Lembrei por que vim aqui. Só um instante.
Ele se levantou e foi até a porta. Abriu-a e se abaixou para pegar o objeto que tinha derrubado antes. Fechou a porta e entregou um saquinho de pano para Maria, antes de se sentar novamente na cadeira.
— O que é isso? — ela perguntou, enquanto abria para ver o conteúdo. — Outra de suas brincadeiras?
Não precisou ouvir a resposta, pois sentiu imediatamente o cheiro de seu chá preferido. O mesmo que perdeu por causa da bebedeira. Disse:
— Oh, é erva-cidreira com hibisco. Eu achei que tinha perdido.
— E tinha, mas Clara tinha um pouco em casa, e eu pedi para ela um punhado, para compensar a sua perda. Assim você não fica sem, até poder ir comprar novamente.
Maria cheirou o saquinho, apreciando as notas doces e suaves enquanto olhava para Martim. Ele estava muito à vontade, com os pés na mesa e as mãos atrás da cabeça.
— Sabe, eu acho que me daria bem como capitão.
— Ah é? E o que você faria, sendo capitão?
— Para começar, folgas semanais.
— Semanais?
— É. A gente dá um duro danado e merece um descanso com mais frequência, não acha?
— Interessante. O que mais?
— Não sei. Acho que eu ficaria mais perto dos soldados. Treinaria junto todo dia…
— Isso é uma crítica a mim, futuro capitão?
Ele tirou os pés da mesa, cruzou as mãos e apoiou os cotovelos sobre os joelhos.
— Não me entenda mal. Os homens a respeitam, mas… não conhecem você direito. Se tivessem a chance de conhecê-la um pouco mais, como eu conheço…
— Eles fugiriam de mim. Com as mãos na virilha, provavelmente.
Eles riram. Martim continuou:
— Dê uma chance a eles. Você pode se surpreender.
— Não é tão simples assim. Você não entenderia.
— Por que eu não sou mulher?
— Exatamente.
— Eles não a vêem exatamente como mulher. Quero dizer, há uns comentários aqui e ali, é claro…
É só deixar o elmo na cabeça dela enquanto manda ver na cama!
— É, eu imagino que tipo de comentários vocês fazem.
— Mas, no fundo, eles não ligam muito para isso. Muitos exaltam sua coragem, bravura, inteligência… sua habilidade em combate. Sabe, você impressionou todo mundo desde o primeiro dia em que chegou aqui.
Maria sentiu um comichão na barriga. Ouvi-lo dizendo essas coisas, tentando realmente fazê-la se sentir melhor, lhe trouxe uma paz que não achava que sentiria naquele dia.
— Obrigada, Martim. Pelo chá. — Levantou o saquinho. — E pelas palavras de apoio. Eu realmente estava precisando.
Ele assentiu com a cabeça e disse:
— Não seja por isso. Bom, preciso ir.
Ele se levantou e foi até a porta. Abriu-a e acenou para trás antes de sair da sala. Maria caminhou vagarosamente e apoiou o ombro em um dos batentes. Com os braços cruzados, ela o acompanhou enquanto se afastava. Apreciou como seus ombros eram realmente largos, e pela primeira vez imaginou como seria acariciá-los, sentir seus músculos com os dedos. O caminhar dele era despreocupado, um pouco gingado, e ela não conseguiu evitar que seu olhar fosse para as suas pernas e seu traseiro bem definidos. Suas calças eram apertadas, como as de todos os soldados, e a armadura no torso cobria apenas uma parte de suas nádegas, deixando à mostra alguns músculos que se retraíam e esticavam a cada passo. Sentindo que se arrependeria depois, falou:
— Ei, Martim?
— O que? — Ele virou a cabeça para trás.
— E quanto a você? Me vê como mulher?
— Perdão?
— Agora há pouco você me disse que os homens não me vêem como mulher. E você?
Ele virou completamente o corpo e deu uns passos de volta, aproximando-se novamente dela. Ansiosa pela resposta, ela precisou segurar a respiração por um momento para não soltar um suspiro mais alto. Antes que ele pudesse falar, disse:
— Não precisa responder, se não quiser. Afinal, eu tento fazer de tudo para me misturar aos homens. Eu tenho consciência que, aos seus olhos, eu posso parecer meio…
— Você é uma capitã valorosa. E uma linda mulher.
Ela não conseguiu conter o sorriso que se abriu em sua boca. Ele também sorriu para ela, antes de se virar e desaparecer no corredor.
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