Capítulo 30 – A Flor na Colina
— Então está decidido — disse Ricardo.
— Ai, meu Deus — disse Maria. — Não acredito que topei isso!
— Não tem mais volta, capitã! Quem perder vai ter que fazer um treinamento inteiro peladão. Igualdade entre homens e mulheres.
Estavam todos sentados ao redor de uma grande mesa, na cozinha do castelo. A comida já tinha sido devorada, e agora apenas as canecas eram levantadas, cheias de vinho e cerveja.
— Pode ser no verão? — perguntou Carlos. — Sabem como é, agora está muito frio…
— Está com medo de parecer ainda menor do que você já é, Carlos? — zombou Tomás, bebendo um gole de sua caneca.
Todos riram, exceto Carlos, que ficou quieto, com o rosto muito vermelho.
— Calma — era Ulimar. — A gente vai ganhar essa!
— Lembrem-se — disse Maria. — Vocês tem cinquenta tentativas. Eu vou contar.
— Não vamos desperdiçar nenhuma, hein? — disse Ricardo. — Prestem atenção para não repetir algo que o outro já disse!
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O ambiente era descontraído. A adrenalina ainda estava alta, estimulada pelo gosto da vitória. Tinham vencido a batalha. Maria estava com a razão, e eles seriam condecorados. E o melhor era que nenhum soldado havia morrido ou sido ferido.
— Mas antes de começarmos, eu gostaria de fazer um brinde — disse Marcel, erguendo uma taça de vinho. — À capitã Maria, é claro!
Todos gritaram, felizes, e beberam.
Não foi uma batalha particularmente demorada, mas foi muito sangrenta para o inimigo. Cerca de quarenta homens estavam escondidos ao redor de uma pequena ponte que dava acesso ao castelo de Gama. Eram bandidos e assassinos contratados por Alvar. Foram alertados que Maria não viria sozinha, e sim acompanhada por trinta soldados bem treinados e equipados. Quem deu o alerta foi Gonçalo, o mesmo mensageiro que tinha dado a falsa notícia sobre a guerra em Lancastre. Quando ele passou pela tropa cavalgando a toda velocidade, Maria deu a ordem para que os soldados avançassem em corrida. Chegaram ao local da emboscada no exato momento em que os últimos bandidos saíam de seu esconderijo.
— Agora eu… — disse Tomás. — Meu brinde vai para… mim! Por ter sido o primeiro a matar um inimigo hoje.
Houve mais gritaria e risadas, seguidas por uma rodada de canecas sendo viradas.
Sem muito tempo para se preparar, os bandidos avançaram contra os soldados sem muita organização. Em contraste, Maria colocou sua tropa em uma formação consistente. Duas fileiras de homens próximos entre si, com os escudos formando uma barreira compacta. Os primeiros bandidos que se atreveram a atacar foram os primeiros a morrer. Esbarraram na proteção de escudos e ficaram vulneráveis, sendo facilmente golpeados pelas espadas curtas dos soldados. Cinco caíram imediatamente após a primeira investida.
Assustados, os demais recuaram por alguns segundos. Nesse instante, Maria saltou para a frente dos seus comandados, passando entre os escudos junto com uma dezena de homens. Estocando rapidamente com suas lanças, derrubaram mais de uma dúzia de bandidos antes de voltar para trás da proteção da primeira fileira. Ao ver seu número sendo rapidamente dizimado pelo bem treinado grupo de guerreiros à sua frente, os bandidos restantes entraram em pânico e fugiram descontroladamente. Atacados pelas costas, muitos morreram. Cerca de uma dúzia de sobreviventes conseguiu fugir. Maria não ordenou uma busca, pois eram bandidos, e não guerreiros, portanto logo se dispersariam e não seriam mais uma ameaça. Não valia a pena arriscar a vida dos soldados.
— Não podemos nos esquecer de Martim — disse Ricardo. — Nosso tímido amigo que brigou com Alvar e nos convenceu a seguir a maluca da capitã.
Martim sorriu, bastante envergonhado, enquanto os amigos gritavam e derramavam bebida ao chacoalhar suas canecas e taças. Maria olhou para ele e seus olhares se encontraram brevemente.
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— Mas já chega de brindes! Quero ver uma bunda branca correndo ao redor do castelo. Tentativa número um — disse Ricardo, esfregando as mãos e mordendo a língua. — Você perdeu a perna… atropelada por uma carroça?
— Não — disse Maria, rindo. — Quarenta e nove.
— Foi uma mordida de animal? — perguntou Antenor.
— Não, quarenta e oito.
— Vamos com calma! — gritou Carlos. — Estamos perdendo as chances muito rápido!
Maria encostou-se em sua cadeira e bebeu um gole de vinho. Disse:
— Acho que quem vai ver muitas bundas brancas sou eu.
A aposta não acabou naquela noite. Com medo de perderem, os homens desistiram aproximadamente na trigésima tentativa e deixaram o restante para depois. Porém, isso não aconteceria tão cedo, pois o ambiente ficou tenso demais para brincadeiras.
Assim que o dia amanheceu, Maria se reuniu com os homens para decidir o que fazer. Suas ordens eram esperar por um aviso vindo de Lancastre, mas depois da traição de Alvar, tinha que tomar alguma decisão.
Cogitaram enviar um mensageiro para levar uma denúncia a Fernão, mas podia ser perigoso. O general, pelo que sabiam, estava em Lancastre. Eles não tinham certeza sobre até onde ia a lealdade do restante da guarda a Alvar, e para protegê-lo poderiam matar o mensageiro antes que conseguisse entregar sua mensagem. Poderiam também marchar até Lancastre e confrontá-lo diretamente, mas também não queriam provocar uma batalha interna. Enviar uma mensagem à rainha também não era uma opção, pois além de estar muito longe, ela provavelmente não acreditaria em Maria sem antes conversar com todos os envolvidos.
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A discussão não durou muito, pois no final da tarde Maria foi avisada de que havia soldados se aproximando do castelo. Ao subir na muralha, ela avistou as cores vermelho e amarelo estampadas nas suas vestes. Eram soldados da guarda real.
Desgraçados! Como eles têm coragem de voltar?
Desceu até o pátio e ordenou que os portões fossem abertos. Ao seu lado, estavam alguns soldados da guarda, além de alguns homens que ocupavam o castelo. Aguardou até que os visitantes se aproximassem. À sua frente vinha o soldado que disputou a final do torneio com Martim.
— Capitã. — Fez uma reverência. — Permissão para nos juntarmos à guarda.
— Qual é o seu nome, soldado?
— Silas, capitã.
— Soldado Silas, vocês desobedeceram às minhas ordens e agora têm a ousadia de voltar e pedir para se juntar a nós?
— Sim, capitã, pedimos perdão. Nós achávamos que Alvar dizia a verdade, que Lancastre estava realmente em perigo. Estávamos apenas cumprindo nosso dever, mas fomos enganados e agora reconhecemos isso.
— E onde está aquele canalha?
— Ele desapareceu, capitã, no meio da noite.
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— E aí vocês perceberam que foram enganados?
— Sim, capitã.
— Eu deveria matar uns dois ou três de vocês como traidores, para servirem de exemplo. Acho que eu vou começar por você. O que acha disso, soldado Silas?
Ele ficou imóvel, e uma expressão de ódio se fez em seu rosto. Maria disse:
— Mas não farei isso. Permissão concedida, soldado, sejam bem-vindos. E sejam gratos pela minha misericórdia.
— Obrigado capitã. — Ele fez uma reverência e começou a se afastar, sendo seguido pelos demais.
Ricardo aproximou-se e disse, baixinho:
— Capitã, tem certeza de que agiu certo? Será que é prudente confiar neles?
— Não confio, mas não posso provocar um conflito agora. São praticamente metade da guarda, teríamos um banho de sangue.
— É, tem razão.
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— Espero que tenham aprendido sua lição e passem a me respeitar agora. Acho que eles têm juízo o suficiente para não provocar uma luta.
— Silas não é conhecido por ser um homem ajuizado. Talvez devesse de fato ter matado dois ou três… — Ela olhou para ele, desafiadora. — Mas foi uma decisão prudente, Capitã — ele concluiu, abaixando a cabeça.
— Vou ficar de olho nele, Ricardo. E vocês também, tomem cuidado.
— Sim, capitã.
Os dias que se seguiram carregavam uma enorme tensão. A tropa estava dividida, e um estado de ameaças veladas e olhares ameaçadores tomou conta de todos. Maria e seus aliados tinham criado o hábito de permanecer em constante vigília, como se estivessem em pleno território inimigo, o que não deixava de ser verdade. Eles dormiam em uma área separada, comiam em uma área separada, e exceto por um ou outro encontro inesperado, não interagiam com os demais. Maria também evitava ficar sozinha. Ficava sempre acompanhada de pelo menos outros dois soldados, por todo lugar que ia. Sua companhia mais constante era a de Marcel e Antenor, com quem também começou a compartilhar a barraca. Ela não se incomodava em dormir junto com os homens, afinal de contas já tinha feito isso por muitos anos. E os dois eram bastante gentis e a respeitavam muito.
Permaneceram em Gama, aguardando, por aproximadamente duas semanas, até que chegou um mensageiro cavalgando a toda velocidade. Ele trazia ordens da rainha. Ela queria abandonar seu refúgio no Sul e voltar ao seu próprio castelo, e mandou que a guarda real retornasse imediatamente. Por isso, algumas horas depois, os soldados deixaram sua morada temporária para trás e começaram a marcha de volta à capital.
A viagem de volta foi tão tensa quanto a estadia no castelo de Gama. Havia um temor de que a luta entre os dois grupos irrompesse a qualquer momento, mas isso nunca aconteceu.
Na última noite da viagem, Maria, Marcel e Antenor estavam sentados ao redor da fogueira, conversando:
— Não acredito que sobrevivemos — disse Antenor. — Achei que nunca chegaríamos.
— Calma — disse Marcel. — Ainda tem um dia inteiro de viagem. E não se esqueça que quando chegarmos ao castelo, ainda vamos ter que conviver com o resto do pelotão.
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— Não se preocupem — disse Maria. — O problema é entre Alvar e eu. Sem ele por perto, cedo ou tarde eles terão que deixar essa atitude de lado.
— E a rainha, hein? — perguntou Marcel. — Por que ela resolveu voltar?
— Ela é meio… imprevisível — disse Maria, evitando uma palavra mais ofensiva.
Marcel e Antenor trocaram olhares e riram. Nesse momento, chegaram Ricardo, Carlos e Tomás.
— Nossa última noite na estrada! — disse Ricardo, enquanto se sentava ao lado de Marcel. — O que vamos fazer hoje? Bebidas? Jogos? Poesia?
— Aaah, eu gostaria de ouvir um poema — disse Maria, animada. — As coisas estão tão tensas que seria bom relaxar um pouco.
— Ah, não, tá vendo? — disse Carlos, que tinha acabado de se sentar ao lado de Maria. — Isso é o que dá ter uma mulher na tropa. Ricardo vai ficar a noite toda falando suas baboseiras.
Ela lhe deu uma cotovelada, e Carlos riu.
— Se o que você ouve são baboseiras, o problema está em seus ouvidos, querido Carlos — disse Ricardo. — Meus poemas são arte.
— Então vai lá, derrame sua arte em nós — zombou Tomás, sentando-se ao lado de Ricardo.
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Ricardo ergueu o queixo, endireitou as costas e começou a falar:
— Branca é a neve, que deita sobre o chão, assim como a aurora, que nos bane da escuridão.
— Uuuuuu, que coisa linda hein? — disse Tomás.
— Quieto! — disse Maria. — Deixa ele continuar.
— Er… já acabou. — disse Ricardo, o que provocou risadas no grupo todo. — Era só um pequeno verso para aquecer, uma homenagem ao frio do cão que estamos passando.
— Eu gostei — ela disse. — É bonitinho.
— É, Ricardo, é bonitinho — zombou Carlos. — Você levou quantos meses para escrever esse? Dez? Doze?
— Ha! Ha! Muito engraçado.
Nesse momento, uma voz soou atrás de Maria:
— Ei pessoal, cabe mais um aí?
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Era Martim. Maria sentiu a já familiar falta de ar momentânea que a afligia quando o via.
— Claro, sentaí — disse Antenor, que estava ao lado de Maria. Ele se afastou para longe dela e abriu um espaço suficiente para que Martim se encaixasse entre eles.
Deus! Não do meu lado!
Martim hesitou um pouco, certamente temendo a mesma coisa que ela. Ele passou um pé sobre o pedaço de madeira que tinham improvisado como banco, depois outro.
— Com licença…
Devagar, ele foi se espremendo, empurrando todo o corpo dela enquanto descia. Não tinha muito espaço do outro lado, pois ela já estava praticamente em cima de Carlos. Ficaram ali, com os ombros e quadris colados.
— Martim — disse Ricardo —, chegou bem a tempo. Escolha aí qual poesia minha você quer ouvir?
— Que tal aquela, “Deixa disso, vamos dormir”? — Martim disse, rindo.
— Ou aquela outra, “Feche a boca, que o meu ouvido não é penico”? — zombou Tomás.
— Eu gosto daquela…
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Maria ria junto, mas apenas para não parecer mal-educada. Apesar de estar achando as brincadeiras engraçadas, não conseguia parar de pensar no corpo quente de Martim encostado no seu. O calor que transmitia, que inicialmente era agradável e ajudava a afastar o frio, rapidamente começava a se acumular e incomodar, principalmente embaixo dos braços.
— Não esperava nada melhor de vocês — disse Ricardo. — Mas a capitã quer ouvir uma poesia, e vocês vão ter que ouvir junto. Maria, esta é especial, fiz para uma garota.
— Estou ansiosa — ela disse, enfim relaxando um pouco.
Ricardo fez a mesma pose de antes, e começou a declamar:
“Uma vida que nasce e morre, pintada pelo grande artista.
Suas pétalas crescem e caem, sem por ninguém ter sido vista.
Seu perfume exala e se espalha, levado adiante pelo vento,
mas não encontra uma alma, que o inspire no maior sentimento.
Foste breve em sua passagem, tão simples, tão singela.
Bebendo água da terra, sorvendo a luz em seus anseios,
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crescendo, frágil porém resoluta, não cedendo aos tais receios,
de que morreria sem que o mundo a exibisse em sua tela.
Ao seu redor, pedras e espinhos, que em muito se parecem,
por sua dureza aguda e pelos golpes que desferem.
Mas não lhes cabe culpa ou tormenta pelo mal que a fazem,
Pois está em sua natureza, tão cruel e tão selvagem.
Mas ela persiste, com muito custo e muita lida,
defendendo-se de sua natureza cruel e masculina,
para enfim chegar ao seu lugar, no topo da colina,
a flor mais bela que já surgiu em minha vida.”
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Maria sentiu os olhos marejando, afetados, por alguma razão, pela imagem da flor solitária pintada na poesia de Ricardo. Acabou deixando escapar um suspiro mais alto para conter as lágrimas que ameaçavam escorrer. Todos olharam para ela.
— Bom trabalho, Ricardo — disse Tomás, dando um tapa na cabeça do colega. — Você deixou a capitã deprimida.
— A poesia é linda, Ricardo. Eu adorei, de verdade. Só é triste — ela disse.
— Eu não entendi — perguntou Tomás. — Por que é triste?
Ricardo apontou a mão para o amigo, em um gesto de desprezo, e disse:
— Está vendo pelo que eu tenho que passar, capitã? Minha poesia não está à altura desses idiotas.
— Quem era ela? — perguntou Maria.
Ricardo suspirou e disse:
— Eu não me lembro do nome dela, para falar a verdade. Já faz um tempinho. Perseguíamos um grupo de bandidos que estavam saqueando a região da Mata. Chegamos a esse vilarejo que estava todo queimado e encontramos uma menina escondida dentro de uma fornalha, na loja do ferreiro. Devia ter uns doze anos. Sua família foi assassinada, mas ela estava viva. Nós a levamos aos curandeiros, mas morreu pouco depois. Eu fiz esse poema para extravasar um pouco da tristeza que sentimos.
Maria estremeceu, e desta vez as lágrimas conseguiram escapar de seus olhos. Ao perceber sua reação, Ricardo perguntou:
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— O que houve, capitã? Eu disse algo errado?
— N-não. É que… — Todos olhavam para ela. — Essa história é muito triste, só isso. Me desculpem. — Enxugou os olhos e respirou fundo, recuperando a postura serena.
O grupo ficou em silêncio. Exceto pelo barulho das chamas crepitando na fogueira, ninguém falava nada. Maria percebeu que Martim olhava para ela.
— Vamos jogar alguma coisa? — disse Martim, e todos concordaram.
Ficaram mais um tempo ali, jogando e conversando. Um a um, à medida que iam perdendo, os soldados se levantavam e retornavam às suas barracas. Depois de um tempo, ficaram apenas Maria, Martim e Ricardo.
— Bem — disse Ricardo, olhando de Maria para Martim —, eu poderia ganhar agora mesmo. Se estivesse valendo dinheiro, vocês estariam me devendo até as calças. Mas não está valendo nada, então vou deixar as minhas cartas aqui do lado e me retirar.
Ricardo se levantou e foi embora, não sem antes dar uma piscadela para Martim.
Estavam agora sentados sozinhos, lado a lado, ambos olhando para a fogueira que já estava quase se apagando. Maria concentrou-se em admirar as brasas e a sua intensa coloração avermelhada.
— Era você, não era? — ele perguntou.
Maria imediatamente se lembrou daquela manhã, na cidade, quando fugiu da cachorrinha Sereia. No dia, parecia que Martim não tinha reconhecido-a, mas pelo jeito não foi bem assim.
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— Ah, sim. Era eu. A Sereia veio correndo para cima de mim, mas eu… eu estava com pressa e…
— Do que está falando?
— Ué, foi um pouco antes de sairmos da capital. Você estava perto do cais, brincando com a Sereia, aí ela me viu e veio correndo…
— Aquela era você? Eu não fazia ideia!
— Calma… — Ela deu um riso confuso. — Você acabou de perguntar isso, e eu disse que sim.
Martim deu uma risada, depois disse:
— Eu me referia à história de Ricardo, sobre a garota. Foi por isso que ficou emocionada, aconteceu algo parecido com você, não foi?
Maria abriu um sorriso envergonhado e deu uma cotovelada fraca no braço de Martim. Ela disse:
— Você tem o dom, não tem? Sempre acha um jeito de me deixar sem graça.
— Desculpa.
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— Sobre a garota, sim, é verdade. Eu também perdi toda a minha família de um jeito muito parecido. Meu pai era ferreiro também, e eu tinha uma irmã mais nova. Todos eles morreram e eu fui obrigada a sobreviver.
— Sinto muito ouvir isso.
— Foi por isso que entrei para o exército. Eu fiquei tão arrasada que queria fugir de tudo. Queria vingança, matar os malditos que fizeram aquilo. Também queria… bem, acho que parte de mim queria morrer também.
Martim não disse nada, ficou apenas olhando para a luz da fogueira.
— Martim… — ela disse, virando o corpo para encará-lo de frente. — É verdade o que o Ricardo falou? Foi você quem convenceu todo mundo a me seguir?
Ele ficou sem graça ao responder:
— Bom, a gente já tinha conversado sobre isso, sobre como conde Alvar se esforçava demais para nos agradar, mas também como ele parecia ser muito falso. E a tropa, como deu pra perceber, já estava bem dividida antes. Não foi bonito. Ele estava confiando bastante em mim nos últimos dias e ficou bem nervoso quando eu disse que viria atrás de você. Disse que eu iria me arrepender por ter feito aquilo. Mas quando vi que você estava sozinha, precisando de ajuda, eu não quis deixá-la… eu não conseguiria…
— Você salvou a minha vida — ela interrompeu. — De novo. Obrigada.
Ele sorriu de volta, antes de continuar:
— E tem outra coisa, também. Eu já passei por uma situação parecida antes, nosso antigo capitão Augusto, ele…
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Maria percebeu a hesitação em sua voz. Tomou coragem e esticou a mão, colocando-a sobre as costas da mão dele. Sentiu imediatamente o calor de sua pele espantando o frio da palma de sua mão.
— Eu sei, Clara me contou.
— Contou?
— Sim, ela me disse que ele morreu, e que você sente culpa em relação a isso.
Martim assentiu com a cabeça. Ele virou a sua mão para cima e segurou a de Maria carinhosamente. Com seu polegar, começou a acariciá-la. Ela sentia seu toque quente, torcendo para que não parasse. E ele não parou.
— Todo mundo me culpou pela morte dele. Eu sofri muito por causa disso, muita perseguição, retaliação, julgamento. Foi um dos motivos para eu querer tanto ganhar aquele torneio, sabe? Para tentar recuperar um pouco de respeito e deixar de ser um excluído.
Maria sentiu como se tivesse levado um soco no estômago. A imagem de Martim tímido e isolado antes do torneio, seguida pela sua nova versão, feliz e enturmado, queimou em sua mente como um ferro em brasa. E o grito que ele soltou na arena, antes de vencer Silas, agora fazia todo sentido. Ele não competia pelo prestígio pessoal. Competia por respeito.
Assim como eu!
— Eu… não fazia ideia — disse Maria. — Me desculpe, por tudo. Eu tratei você muito mal. Me desculpe por ter pisado em você. Literalmente! Aquilo foi terrível, eu…
— Não, não, eu é que tenho que pedir desculpas. Eu fui egoísta e não percebi tudo o que você estava passando. Ou na verdade percebi, mas fui um idiota e insensível. Você tinha todo o direito de pisar em mim. Talvez só pudesse ter usado seu pé de carne e osso, ao invés do outro.
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Ela riu. Martim tinha esse poder de fazê-la rir mesmo nos momentos mais improváveis.
O fogo estava quase extinto agora, e o frio estava intenso. A respiração de Maria era trêmula. Martim percebeu e se aproximou, passando os braços ao redor dela. O calor envolveu sua pele, mas também cresceu de dentro para fora, saindo de seu coração acelerado. Ele aproximou seu rosto do dela, e disse:
— Está melhor assim?
Ela assentiu com a cabeça, incapaz de pronunciar uma palavra sequer. Ele acariciava seus ombros, transmitindo o toque através do grosso casaco, que naquele momento não parecia ser mais do que uma fina seda. Seu rosto estava tão perto que ela sentia sua respiração varrendo-lhe a pele. Seus olhos a perfuravam, deixando sua mente adormecida e inebriada. Sua boca entreaberta, muito próxima, convidava-a para que se aproximasse, para que envolvesse seus lábios em um beijo arrebatador.
Depois de tudo o que tinha passado, a curiosidade, o desejo, a decepção, o ódio e a tristeza, Martim estava finalmente ali, com ela. Ele renunciou à sua popularidade e proximidade com Alvar, desistiu de assumir uma posição de destaque no pelotão, que era algo de que ele provavelmente precisava há muito tempo. Mesmo depois de tudo o que ela tinha feito, da forma terrível como tinha tratado-o, Martim escolheu segui-la. E ela, tomada por um sentimento de gratidão, estava pronta para se entregar a ele.
Mas o que parecia impossível aconteceu. De alguma forma, Maria encontrou forças para desviar seus olhos dos dele, para não mais olhar para sua boca, para desvencilhar-se de seu abraço.
— E-eu… não posso — ela disse.
— O quê? — ele perguntou, incrédulo. — O que foi?
Em sua mente, a boca dele beijava a de Marina. Eles rolavam em cima da cama, rindo. Depois ele se deitava e ela se sentava em cima dele. Ele a segurava pelos quadris, enquanto ela gemia de prazer.
— Me desculpe, eu não… — Ela começou a se afastar.
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Martim a segurou pelo braço, e por alguns instantes eles travaram uma luta física. Ele disse:
— Não, eu não vou desistir de você! O que foi, me fala! O que foi que aconteceu?
— Me solta, Martim. — Sua voz começou a ficar embargada. — Por f-favor!
Ele obedeceu, deixando que ela se afastasse. Ela olhou para ele e viu que seus olhos misturavam tristeza e decepção.
— Me desculpe, eu não quis machucá-la… O que foi que eu fiz?
— Não é você, a culpa é minha.
— Eu te perdôo. O que quer que tenha feito, eu te perdôo.
— Não, não adianta. — disse Maria, em um tom seco. — Adeus, Martim, não me procure mais.
Maria entrou em sua barraca e buscou a cama vazia. Deitou-se rapidamente e cobriu-se da cabeça aos pés. Só conseguia pensar no que tinha acabado de fazer. Esteve muito perto de se entregar a Martim. Ela queria isso. Seu corpo desejava o dele, mas o medo a impediu. Medo de ser abandonada. De sentir novamente a dor que sentiu ao vê-lo com outra mulher. Ele já tinha feito isso uma vez, e faria novamente. Ela não iria mais passar por essa decepção.
Seus olhos se fecharam, mas ela não conseguiu dormir naquela noite.
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Já era madrugada quando as tochas que iluminavam as altas muralhas do castelo puderam ser avistadas pela cansada tropa. Os soldados, antes tensos e carrancudos, sorriram aliviados e aceleraram seus passos para chegar logo ao seu destino. Com a comoção e a caminhada mais acelerada, a divisão que tinha se estabelecido, antes tão clara, agora parecia menos perceptível. Alguns grupos de soldados misturavam aliados de Maria com ex-aliados de Alvar, indiscriminadamente, à medida que se aproximavam dos portões.
Assim que a tropa começou a passar por baixo dos enormes portões, os soldados iam aos poucos se despedindo de Maria e sumindo pelos corredores. Seus agora amigos mais próximos, Marcel, Antenor, Ricardo, Tomás e Carlos, despediram-se com um olhar mais demorado e um grande sorriso. Menos Martim.
Eles estavam no saguão. Maria andava em direção ao corredor que dava acesso aos seus aposentos, e Martim estava parado do outro lado. Ele olhava para ela, com uma grande tristeza estampada no rosto. Ela queria correr em sua direção, pular em seus braços e abraçá-lo, fazendo-o sorrir novamente, com suas lindas covinhas ao redor da boca. Mas conseguiu se virar de costas e escapar da tentação.
Maria estava muito cansada pela marcha acelerada, pela noite não dormida e pela enorme tensão dos últimos dias. Mesmo assim, desconfiava que iria demorar para pegar no sono. Foi tomar um banho para relaxar os músculos e a mente antes de se deitar, na expectativa de dormir melhor. Funcionou, pois sentiu os olhos ficando pesados à medida que sentia a água quente lavando seu corpo. Assim que entrou em seu quarto, largou seus pertences em um canto e se jogou na cama, não se incomodando nem em tirar seu pé metálico. Quando estava quase dormindo, ouviu alguém batendo na porta.
Droga! A essa hora?
Xingando o visitante inoportuno, ela se levantou, rabugenta. Já tinha começado a cochilar e seus olhos já não queriam mais ficar abertos. Bocejou, enquanto cambaleava, lutando para não cair. Colocou a mão na maçaneta e a puxou. Uma mulher apareceu em sua frente e começou a tagarelar:
— Oi. Me desculpe vir tão tarde, mas eu não estou conseguindo dormir direito, eu realmente preciso falar com você. Quando eu fiquei sabendo que você estava chegando, vim para cá e fiquei esperando.
— Violeta? O que aconteceu?
— Eu preciso lhe contar uma coisa. É sobre a noite do baile. É sobre Martim.
— O baile? — Maria se assustou. Não imaginava que esse poderia ser o assunto.
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— Sim. É que eu o vi naquela noite, e…
— Escute Violeta… — Maria a interrompeu. — Eu já sei o que aconteceu. Ele dormiu com outra mulher, não foi? Eu…
Violeta sorria de maneira enigmática. Sem entender, Maria continuou:
— Eu acho que não quero ouvir detalhes.
— Você gosta dele?
Maria não respondeu. Apenas a olhava, com uma expressão assustada, imaginando onde ela queria chegar.
— É claro que gosta. — O sorriso de Violeta se transformou em uma expressão simpática.
— Bem, isso não importa. Ele ficou com outra mulher e eu acho que não consigo lidar com isso, me desculpe.
— Sei… Você acha que ele dormiu com Marina, não é?
— Espera aí! Como sabe o nome dela?
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— Eu já disse, eu estava lá. Eu ouvi quando ele a chamou pelo nome errado.
— Nome errado? — O coração de Maria deu um salto.
— Calma amiga, eu vou contar tudo. E acho que você vai gostar de ouvir o que eu tenho a dizer.
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