O dia tinha começado tranquilo. Maria tomou seu café com calma e estava em seu quarto, arrumando-se para começar seus afazeres, quando ouviu batidas na porta. Abriu-a e deparou-se com quatro soldados. Um deles trazia um pedaço de papel. Ele disse:

    — Capitã, bom dia. São ordens da rainha.

    Maria pegou o papel na mão, curiosa.

    — Obrigada, soldado — ela disse, enquanto fechava a porta. O soldado colocou a mão no batente, impedindo-a.

    — Desculpe-me, capitã, mas a rainha nos ordenou que ficássemos o tempo todo com a senhora. Mandou não perdê-la de vista até que as ordens sejam cumpridas.

    O coração de Maria deu um salto. Com as mãos tremendo, ela desenrolou o papel e começou a ler.

    “Maria, as espiãs de Pérola acabaram de descobrir uma nova conspiração no castelo, na SUA guarda! Tome providências imediatamente! Eis os nomes dos traidores, que devem pagar com a vida:

    Soldado Ricardo

    Soldado Martim

    — Rainha C.”


    Os passos dos soldados que se afastavam soavam longe agora. Maria ainda olhava para a parede onde, instantes atrás, Martim estava encostado. Podia quase sentir seus dedos quentes, seu toque carinhoso. Fechou os punhos com força, tentando de alguma forma reter a sensação ali dentro. Mas estava anestesiada, sua mente completamente desligada. Não sentia nada.

    Seus ouvidos também não funcionavam direito. Eles apenas lhe diziam que havia pessoas falando ao seu redor. Uma delas disse:

    — Capitã? Está tudo bem?

    Seu rosto se virou na direção da voz. Não conseguia enxergar, pois os olhos estavam cheios de lágrimas. Piscou algumas vezes, e o rosto de Marcel apareceu. Ela não disse nada. Marcel insistiu:

    — Capitã?

    Decidiu se mexer. Caminhou sem rumo pelos corredores, sem saber para onde ir. Instintivamente, foi até um dos andares subterrâneos, para onde sabia que Ricardo seria levado. Chegou em uma sala escura e viu seu corpo estendido no chão. Ainda não estava enxergando direito, e nem sabia se havia de fato alguém ali, mas falou mesmo assim:

    — Saiam!

    Sentiu um movimento ao seu redor, o que indicava que alguém ouviu sua ordem e estava obedecendo-a. Quando o silêncio indicou que estava sozinha, Maria avançou até o corpo, cambaleando um pouco. Viu o rosto de Ricardo congelado, com os olhos e boca abertos. Viu a pele ferida, o sangue por todo lado. Ele não respirava.

    Caiu de joelhos ao seu lado e colocou as duas mãos em seu rosto. Passou as mãos em seus cabelos loiros, ajeitando sua franja para que não caísse nos olhos. Depois acariciou suas bochechas, sem perceber que estava ficando com os dedos encharcados de sangue. Finalmente, soltou um suspiro e passou os dedos sobre seus olhos azuis, muito transparentes, fechando-os para sempre.

    A boca de Ricardo continuou aberta, como se estivesse tomando fôlego antes de declamar uma nova poesia. Seus amigos, como sempre, debochariam dele, apenas para esconder o fato de que eles apreciavam seus versos e suas rimas, e absorviam com prazer as cores e sentimentos que ele pintava em suas mentes. Isso nunca mais voltaria a acontecer.

    — A gente avisou. Nós avisamos eles.

    Foi uma voz chorosa que surgiu atrás de Maria. Ela se virou e viu Carlos, com os olhos vermelhos e o rosto distorcido por uma expressão dolorida. Ela o abraçou, apertando-o com força, e foi abraçada de volta.

    — Maria. — Era Tomás agora. Ele se aproximou e colocou a mão em seu ombro. — Você tem que fazer alguma coisa. Eles não fizeram nada! Estavam sim planejando alguma coisa, mas não fizeram nada, eles…

    Maria ainda não conseguia dizer nada. Deixou que seus braços soltassem Carlos, que agora chorava ainda mais, e abraçou Tomás. O homem também desabou em lágrimas.

    — A gente avisou! Dois teimosos! A g-gente avisou… — Carlos ainda repetia seu mantra.

    — Eles só queriam ajudá-la, Maria — disse Tomás. — Você tem que fazer alguma coisa. Salve Martim, ele não é um traidor. Só queria ajudar você…

    — Eu sei — ela disse. — Mas… j-já é tarde demais. A r-rainha…

    Não conseguiu continuar falando.

    A vida de Ricardo tinha sido tirada violentamente.

    A vida de Martim estava prestes a ser encerrada, e com ela, toda a alegria e esperança que nasceram junto com seu amor. 

    Martim iria morrer.


    De alguma forma, Maria conseguiu achar seu caminho até o dormitório da rainha. A porta estava aberta e ela entrou andando rapidamente. A antessala estava vazia, então ela continuou, chegando ao cômodo enorme onde a rainha passava suas noites. Catarina estava sentada em seu sofá ao lado da cama. Em pé, à sua frente, estavam Silas e outros dois cavaleiros que Maria não reconheceu.

    Aproximou-se até ficar a dois passos da rainha. Lutou para conseguir pronunciar algumas palavras:

    — Majestade, peço permissão para falar a sós.

    — O que? Tire esse elmo, Maria, não consigo entender.

    Maria puxou a peça da cabeça e a colocou no sofá. Repetiu seu pedido, esforçando-se para não deixar que seu estado de espírito transparecesse em sua voz:

    — Gostaria de falar a sós, Majestade.

    A rainha olhou para os homens ao seu redor, parecendo desconfiada, mas aceitou:

    — Deixem-nos. Fiquem a postos.

    Os homens assentiram com a cabeça e afastaram-se lentamente. Assim que ouviu a porta se fechando, a rainha disse:

    — Venha, tome um chá.

    Maria não obedeceu. Em um ato desesperado, ela se jogou aos pés da rainha, ajoelhando-se e segurando seu vestido com as mãos ensanguentadas.

    — Majestade, eu lhe imploro. Poupe a vida de Martim! Ele não é um traidor, ele não fez nada…

    A rainha pareceu sentir nojo ao ver todo aquele sangue, mas ela não reprimiu Maria. Em um gesto surpreendente, colocou as mãos em seus cabelos e começou a acariciá-los.

    — Pobre Maria! Querida, eu sinto muito por tudo isso.

    Maria levantou o rosto e viu, no semblante de Catarina, um sentimento genuíno de compaixão. Pela primeira vez, sentiu que a rainha estava realmente sentindo alguma empatia por ela.

    — Majestade, eu lhe imploro. Poupe a vida de Martim, por favor.

    — Eu sei que vocês acabaram se enamorando. Eu não consigo nem imaginar o desespero em seu coração, minha querida.

    — Você pode ajudar, Majestade. Dê a ordem, liberte-o, eu prometo que vou embora também, nós vamos para bem longe daqui. Ele não é uma ameaça, eu juro!

    A rainha respirou fundo. Segurou as mãos de Maria, e sem se preocupar com o sangue em suas próprias mãos, ajudou-a a se sentar ao seu lado. Depois pegou uma xícara, encheu-a com chá, e a entregou para a sua capitã.

    — Tente beber um pouco.

    Maria aceitou e forçou-se a engolir o chá. Não tinha gosto de nada.

    Catarina disse:

    — Maria… nós, mulheres, sofremos todo dia desde que chegamos a este mundo. Para nós, não há muitas opções a não ser tentar nos encaixar no que já está estabelecido. Eu lutei contra isso por muito tempo, mas não importa o que eu faça, parece inútil! Não se sente assim também?

    Maria assentiu com a cabeça, sem saber direito com o que estava concordando. A rainha continuou:

    — Eu tenho acompanhado-a há muito tempo, muito antes de você vir para cá me servir. Desde que meu marido colocou os olhos em você e resolveu condecorá-la, eu sabia que era especial. Você é forte, muito mais do que qualquer homem que eu já conheci. Eu sei que às vezes eu não dou o devido valor que você merece, mas é porque o meu mundo é cercado de homens imbecis que não vêem o que eu vejo em você. Sabe o que eu vejo em você, Maria?

    Maria fez um sinal negativo com a cabeça. A rainha não esperou por uma resposta além disso:

    — Eu vejo a mim. Mas muito melhor, porque eu nunca consegui isso que você tem. Essa liberdade, essa independência, esse respeito que você conquista, mesmo contra tudo e contra todos.

    A rainha olhou para as próprias mãos. Pegou um guardanapo que havia na mesa e começou a limpá-las, deixando-o também sujo de sangue.

    — Eu sou uma prisioneira. Não tenho liberdade, não consigo fazer muitas escolhas além de qual vinho servir no jantar, ou com quais cores decorar as paredes para os bailes.

    — M-majestade… — Maria sentiu os lábios tremendo. Sabia o que viria a seguir.

    — Eu não posso libertar o soldado. Eu sinto muito.

    As lágrimas começaram a escorrer. Seu rosto distorcido era incapaz de pronunciar palavra alguma. Catarina continuou:

    — Ele conspirou, você sabe disso. Meus escudeiros, muitos guardas… todo mundo já ficou sabendo. Se ele não morrer, o meu reinado ruirá. Se eu pudesse, eu juro que ajudaria vocês a fugirem. — Seus olhos também se encheram de lágrimas. — Ah, o amor jovem! — Ela sorriu. — Deus sabe como eu sinto saudades disso. Infelizmente eu não posso, Maria, sinto muito.

    Maria deixou a xícara sobre a mesa e colocou as mãos no rosto. Se antes havia alguma esperança de que a rainha poderia ajudar, agora ficou claro que isso não aconteceria. Mesmo tendo demonstrado sentir compaixão, o discurso da rainha era repleto da mais dura resolução. Ela disse:

    — Mas eu posso ajudar em uma coisa, querida.

    Maria abaixou as mãos e ergueu os olhos, fitando o rosto da rainha.

    — Eu sei que deve ser horrível para você levar a cabo a execução com suas próprias mãos. Eu nunca a obrigaria a fazer isso com alguém que ama. Então pode ficar tranquila, não precisa mais se preocupar com isso, está bem?

    — O quê?

    — Eu mesma vou cuidar da execução do rapaz. Você não merece passar por isso.

    Imediatamente, um sentimento de horror se acendeu na mente de Maria. Ele veio com uma imagem nítida. Tão nítida como se estivesse acontecendo ali, em sua frente. Martim tinha sua língua cortada. Era preso por uma corrente e depois jogado em uma fogueira. A rainha a faria assistir a tudo enquanto dizia: “Pronto, Maria. Agora você está livre para continuar me servindo sem nenhuma distração.”

    — Não!

    — O que foi, Maria?

    — Eu mesma vou executá-lo.

    — Mas, querida, não precisa. Eu vou entender se…

    — Eu sou a capitã. — Os olhos ainda estavam úmidos, mas ela tinha parado de chorar. Seu rosto retomou a seriedade, e sua voz não dava margem para questionamentos.

    A rainha olhou-a e deu um sorriso orgulhoso. Pegando uma xícara e servindo-se de chá, colocou seus pés sobre o sofá e começou a bebericar. Disse:

    — Como quiser. Está dispensada.

    Maria levantou-se, pegou seu elmo e o colocou na cabeça. Saiu dos aposentos da rainha, deixando para trás os intrigados homens que esperavam do lado de fora. Depois de passar por alguns corredores, chegou ao seu dormitório. Fechou a porta, retirou o elmo da cabeça, depois desamarrou e deixou cair cada peça de sua pesada armadura. Deu uma última olhada para o metal espalhado e finalmente caiu sentada no chão, já incapaz de conter o choro compulsivo.


    Os dias passaram sem que Maria percebesse direito. Podiam ter sido dois dias, ou podiam ter sido dez, ela não saberia dizer.

    Nesse tempo, recebeu algumas visitas. A mais frequente era a de Bárbara, com sua voz reconfortante e suas frases de apoio, mas ela não podia fazer muita coisa além de oferecer abraços e enxugar suas lágrimas. Também se encontrou com Carlos e Tomás. Eles traziam notícias de Martim. De alguma forma, eles conseguiam falar com ele, mesmo a rainha tendo proibido qualquer contato.

    Segundo os amigos, Martim estava tranquilo, porém muito triste. Ele só falava em Maria, e implorava para os amigos transmitirem seus pedidos de desculpas. Ela os instruiu para dizer que ela o perdoava. Mas ela nunca teve coragem de ir vê-lo pessoalmente. Não conseguiria suportar.

    Também recebeu uma visita inesperada de Violeta. Ao ficar sabendo o que suas colegas tinham feito, ela foi imediatamente conversar com Maria:

    — Se eu soubesse antes, teria impedido. Eu teria conversado com elas, me desculpa!

    — Tudo bem, Violeta, você não tem culpa de nada.

    — Mas se eu soubesse antes… teria como evitar tudo isso. Isso é tão triste! Ai, Maria, pobre de você! Elas nem falaram comigo, foram direto com a Pérola…

    Sentia muita pena de Violeta, pois ela estava verdadeiramente arrasada e não conseguia parar de ficar se culpando e pedindo desculpas a todo momento. Maria precisou praticamente expulsar a amiga de seus aposentos para que ela parasse de se martirizar.

    Em algum momento, ocorreu o funeral de Ricardo, se é que a cerimônia podia ser chamada assim. Por ser um traidor, ele não podia ser enterrado de forma digna ou cremado. Deveria ser pendurado em uma das estacas no morro das execuções, mas a rainha atendeu ao pedido de Maria e ele foi enterrado em uma vala comum nos arredores do castelo. Até onde sabia, ele não tinha parentes que moravam por perto. Apenas Maria, Carlos, Tomás, Marcel, Antenor e outros amigos próximos acompanharam enquanto as últimas porções de terra terminavam de cobrir seu corpo. Maria colocou uma flor sobre o local, lembrando-se da poesia que tinha emocionado-a naquela longínqua noite no acampamento.


    Estava nublado.

    Maria respirava fundo.

    O chiado de sua respiração soava alto em seus ouvidos, misturando-se com o uivo do vento, formando um turbilhão dentro de seu elmo.

    Seus passos eram rápidos. Se demorasse demais, temia que sua resolução se esgotasse, o que a derrubaria. Não podia deixar que isso acontecesse, pois significava que a rainha mandaria outra pessoa cumprir a tarefa.

    A pequena montanha apareceu no horizonte. Sua silhueta era negra, destacando-se contra o branco do céu. Sua vegetação rala e a terra escura pareciam tirar qualquer sopro de alegria de quem estivesse por perto.

    Havia alguns corvos e urubus voando ao redor. Eles sabiam o que estava prestes a acontecer.

    O terreno ficou íngreme. A respiração ficou mais pesada e o barulho dentro do elmo, ensurdecedor. Mas não o tiraria.

    Maria não chorava mais. A tristeza já tinha exaurido quase todas as suas forças. Ela agora concentrava-se apenas em uma coisa.

    Um corte preciso.

    Rápido.

    Viveu esse momento inúmeras vezes em sua mente. Imaginava com todas as suas forças que a matéria cortada por sua espada não seria uma pessoa, e sim apenas um pedaço de carne. Não seria Martim, pois ele estaria em outro lugar. Seu espírito já teria subido aos céus, e ele estaria sorrindo, tranquilo, enquanto se esquecia das dores e dos sofrimentos que aconteciam ali na Terra. Suas covinhas lindas estariam intactas e ele passaria seus braços ao redor dela. Ajudaria-a a completar o movimento. Seu espírito diria, no ouvido de Maria:

    — Faz assim, tenta não cortar minha franja, tá? Eu fico feio sem franja.

    E Maria iria sorrir.

    A cerca divisória apareceu. A subida era agora mais íngreme, mas Maria não diminuiu o passo. Deixou para trás as famigeradas estacas de madeira, que estavam vazias, e logo chegou perto do topo, onde havia uma grande área descampada.

    De um lado, em sua formação habitual, estavam cinquenta e oito homens, enfileirados e organizados.

    Do outro lado, apenas um homem. Maria não conseguia olhar para ele. Ela queria. Queria apreciar seus olhos bondosos e seu sorriso cativante uma última vez. Mas se olhasse, não conseguiria fazer o que precisava.

    Um corte preciso e rápido.

    Parou em frente ao batalhão. Ouviu-se um barulho forte de metal quando todos os soldados bateram as manoplas no peito.

    Maria não repetiu o gesto.

    Respirou fundo, e sua voz saiu alta e clara:

    — Soldado! Você conspirou contra a coroa, o reino e o povo de Évora, sendo condenado à morte pela rainha! Se tem algo a dizer, faça-o em suas preces e peça a Deus para ouvi-las!

    Olhava para o batalhão, para as dezenas de rostos que a encaravam, mas não se concentrava em nenhum. Não queria ver Carlos, ou Tomás, ou Marcel, ou qualquer outro amigo mais próximo.

    Ainda sem olhar para Martim, virou-se e se posicionou atrás dele, tentando não ver seu rosto. Ele estava com as mãos para trás, amarradas, e a cabeça abaixada.

    Por favor, não reaja! 

    Como se ouvisse as preces dela, o condenado permanecia imóvel.

    Colocou a mão na cintura e apertou o punho da espada. Puxou a lâmina para cima, produzindo um tilintar agudo.

    Um corte preciso e rápido.

    Repetiu o movimento em sua mente, várias vezes. Em nenhuma delas cometeu um erro.

    Tenta não cortar minha franja, tá?

    Levantou o braço direito.

    Me desculpe, Maria.

    Fechou os olhos, tentando não perder suas forças.

    Respirou fundo.

    Abriu os olhos.

    Mirou em seu objetivo.

    Desceu a mão com rapidez e precisão.

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