Capítulo 036 - Exasperados!
Capítulo 036 – Exasperados!
À medida que a madrugada encobria toda Sihêon e a luta prolongava-se interminavelmente, a sensação de que os seres esverdeados estavam vencendo tornava-se cada vez mais tangível.
O destino do reino pendia na balança, mas a tragédia soava tão iminente.
A guarda real dava tudo o de si, mas toda a situação parecia inevitável. Todo esforço parecia inútil.
No calor da batalha, a distração se fez amiga. Aaron estava cercado por goblins, o invocador loiro se sentiu completamente pressionado.
Lutava desesperadamente, porém, seus movimentos começaram a falhar diante de tamanha força que as pequenas criaturas exerciam contra ele. Sua espada pesava, cada movimento que ele fazia deixava-a ainda mais pesada. Era o cansaço dominando seu corpo.
No momento em que um desses golpes fatais se aproximou, próximo ao pescoço do garoto. Um estrondo surgira pela lateral do loiro como um trovão.
Um martelo de guerra esmagando os inimigos com um impacto avassalador, abria espaço ao redor de Aaron. A mulher que segurava o martelo ergueu a voz, pedindo reação.
— Acorde! — estrondeou Mariane.
A paladina era soberana, conforme ela balançava e arqueava a sua arma, as criaturas verdes ao seu redor caíam uma a uma.
Aaron caiu sentado, a presença dela fora o suficiente para que ele pudesse permitir que seu corpo tivesse o mínimo de descanso. Ainda assim, ela o encarava como se esperasse algo.
Que levantasse.
Mas, nada.
— Garoto?
Aaron estava em choque, exausto, ferido.
A paladina viu o que era necessário fazer, era uma mulher enorme, sua estatura lhe entregava uma força absurda. Ela ergueu o invocador nortenho e jogou sob seu ombro. Afastou os inimigos mais próximos e recuou, indo para além da praça sul.
Não que o jovem nortenho tivesse desmaiado, mas sua visão estava longe, como se estivesse fora do seu corpo. Em choque.
Quando voltou a si e encarou lentamente onde se encontrava: ruas distantes do conflito. Uma tenda improvisada com uma lona cheia de remendos, uma fogueira no meio da rua iluminava tudo.
Cheiro de sangue, de ervas, som do estalar da madeira no fogo.
Era um refúgio, havia muitos feridos, havia muitos exaustos. Sendo tratados por clérigos que já não tinham mais mana para administrar suas curas divinas e precisavam cair no fundismo de chás e tratados com plantas.
Algumas poções criadas pelos arcanos passavam de tenda em tenda, sendo racionadas para poder suprir o máximo de enfermos possível.
— Voltou a si? — Mariane sentou-se no chão ao lado dele.
— Onde… Estamos?
— A retaguarda, na verdade… Bem mais recuados que a retaguarda. Aqui é um pequeno acampamento improvisado para aqueles que estão quase morrendo, mas não querem fugir. Querem continuar lutando, só precisam de um ar. — explicou a paladina.
As casas dos moradores nas imediações estavam vazias, uma ou duas portas foram arrombadas para o acampamento poder ter sido erguido, foram pegos bules, água, comida e vestimentas.
— Por Althavair… — lamentou Aaron.
Ao lado dos dois, havia um clérigo claramente exaurido, as mãos dele tremiam sob o peito de um soldado que gemia e agonizava com a sensação lacerante. Ele tentava fechar essa ferida profunda enquanto murmurava orações, mas a imposição de mãos não tinha mais aquele brilho do mana divino. Ele não iria conseguir salvar aquele homem.
— Todos eles poderiam voltar para suas casas, ir para os postos onde os civis estão sendo protegidos. Ir para os refúgios criados pelos relicários, mas não… Preferem tomar um fôlego e retornar para a batalha, retornar para a defesa do reino em que vivem. É lindo e triste ao mesmo tempo. — Mariane erguia-se mais uma vez, com dificuldade devido às placas da sua armadura.
Enquanto ela dizia, Aaron não conseguia pensar atenção em muitas outras coisas além do que estava fazendo a proteção desse pequeno acampamento de enfermos: uma horda de criaturinhas pequenas e acinzentadas, com seus olhos ocos e os dedos bem alongados, patrulhavam silenciosamente sob o comando de uma jovem dos cabelos de fogo e olhos sem vida. Kassandra comandava os zumbis criados pelos cadáveres dos goblins.
Os movimentos dessas criaturas pareciam inumanos, mas a sensação é de que perigo algum passaria por eles, ao menos. Dos poucos que conseguissem cruzar todas as defesas para alcançar a retaguarda.
Ela controlava eles pela fala, Kassandra balbuciava frases que não faziam sentido algum para Aaron, mas os zumbis obedeciam cegamente, isso lhe entregou uma sensação de alívio. Era reconfortante saber que ali ele poderia verdadeiramente respirar. Olhou para cima quando Mariane cobriu sua visão. Ela sorria, pegando novamente seu martelo.
— Vou voltar, garoto.
— Aaron.
A paladina com os detalhes esverdeados na armadura abriu um sorriso sincero.
— Vou voltar, Aaron. Tome o ar que precisa tomar e então volte para a batalha, pode ser?
— Claro. — O garoto concordou com a cabeça rapidamente, sorrindo para a mulher.
— Mariane.
O homem de Althavair manteve o sorriso, ainda não conseguia levantar, mas fez uma breve mesura do jeito em que estava.
— Claro, Mariane.
O garoto, no fundo da tenda, passava sua mão ensanguentada nas suas vestes para limpá-las enquanto visualizava sua mais nova conhecida se afastar em direção à batalha que permanecia ali. O som distante do conflito martelava incessantemente, no fundo dos ouvidos dos presentes no abrigo.
Alguns dos guerreiros e membros da guarda real que ainda tinham forças para andar, encostavam-se em troncos, caixas ou nas paredes das casas. Afiavam grosseiramente suas lâminas com pedras desgastadas, o som daquela fricção era irritante, mas necessário.
Havia um sentinela, seu rosto estava enegrecido pela fuligem que o cobria, ele não ligava. Ajustava cuidadosamente as penas das suas flechas e depositava-as de volta na sua aljava.
Não muito longe, uma patrulheira encarava a cena enquanto batia seus olhos no seu arco quebrado. Ela segurava a mão de outro patrulheiro que parecia mais velho e tossia muito sangue, ela murmurava palavras doces e consolos para tentar reanimar o companheiro, mas o olhar dela estava vazio, volta e meia no arco, outrora no sentinela. Eram palavras vazias para um parceiro moribundo.
Um relicário constava no canto de uma das tendas, colado na lona contra a parede de uma das casas dos civis. Ele tinha um olhar opaco para o vazio. Ele estava balançando seu corpo para frente e para trás, claramente em choque, trêmulo e balbuciando pedidos baixos de socorro.
— É uma situação delicada, você vai precisar ser forte.
Aaron virou delicadamente para a direção da voz aveludada que o atingia. Era a clériga de outrora, Lilian. Seus cabelos longos e ondulados adornavam o manto sagrado que trajava. Seu decote soava lascívia, mas não parecia proposital, seus seios fartos e o seu corpo que acompanhava as proporções apertava as vestes. O homem pediu auxílio a Deus mentalmente, não queria desejá-la. Nem seria o momento para isso, de qualquer forma.
Ela estava com um dos braços enfaixado, levou sua mão próximo ao pescoço e ajeitara o arnês que unia a capa ao restante das vestes do templo. A expressão da moça estava endurecida, ela tentava esconder a sua exaustão, abriu um sorriso para o loiro.
— Eu nunca havia visto por aqui, sou Lilian. — Ela estendera a mão enfaixada.
— Aaron. — O invocador se ergueu para cumprimentá-la devidamente.
— Um estrangeiro?
— Althavair.
Sihêon sempre carregou consigo uma cultura muito etnocentrista, isso se deve ao fato da extensão absurda dos seus domínios. Mas nada que deva ser necessariamente justificado.
Com exceção das vilas nos arredores, o reino mais próximo seria Eikõ, mas o povo de Sihêon chamava popularmente de reino do oeste.
Tal qual os moradores desse reino vizinho, eles se denominam eikianos, mas o povo de Sihêon pejorativamente os chama de oestinos.
Não muda para Althavair, um reino imponente e estupidamente forte no hemisfério ao norte do mundo. Por esses lados, era chamado apenas de reino do norte.
Como Aaron também seria denominado um nortenho, não um althavense.
— Seja bem-vindo… Sinto muito que tenha chegado ao nosso reino em um momento como esse.
Ela sorriu e o invocador devolveu na mesma intensidade.
Não havia mais muito o que fazer, alguns clérigos tombaram de tanto cansaço por forçar seus poderes curativos sem ter energia suficiente para isso. O maior suporte dos heróis havia caído.
— Senhor Celérius continua lá no campo de batalha, junto dele há um grupo seleto dos membros mais poderosos do templo, é o que temos. — Lilian continuava explicando — Mas não devem durar muito também, se fosse uma guerra normal, com inimigos comuns… Teríamos dado conta, mas uma horda infindável de goblins? Não existe energia suficiente contra isso no mundo…
O garoto e a clériga papeavam despretensiosamente, eles observavam um grupo de jovens feridos, sentados fazendo um círculo improvisado. Um cantil passava de um lado para o outro, dividiam o que restava da pega do Melusina duas noites anteriores.
Revezavam junto de uma larga jarra suja com água, os que tinham as mãos livres afiavam inutilmente suas espadas trincadas ou quebradas.
— Eu estaria morto se não fosse pela Mariane. — O garoto batia a poeira das vestes.
— Ela é muito solícita, mesmo. — murmurou Lilian.
— E alta… e forte!
Um dos noviços, em passos dolorosos, se aproximou da mulher farta e entregou-lhe um cantil com água. Ela bebeu delicadamente, mas estava nítido o tamanho de sua sede.
— Conheço ela há uns bons anos, ela esticou quando éramos adolescentes e olha agora? É uma das poucas paladinas que temos.
— Não há muitos guerreiros em nome de Deus no templo? — indagou o invocador.
— Os membros do alto escalão são sacerdotes e bispos, usuários da luz e do poder divino. Não sabem pegar em uma espada, não conseguimos fornecer esse tipo de treinamento, os paladinos não vêm vantagem de estar conosco.
No meio da conversa, os zumbis de Kassandra abriram caminho, um grupo de soldados feridos adentrou o abrigo, mutilados, desesperados.
Seus gritos de agonia ecoavam, o sangue que chorava dos seus cortes criava um rastro rubro por onde foram arrastados.
A serva de Deus precisava trabalhar, mesmo exausta, assim ela fez.
Aaron terminou de se recompor, Mariane havia pedido para que ele retornasse para a batalha quando ele estivesse pronto.
Ele estava pronto.
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