Capítulo 066 - O intocado carneiro!
Capítulo 066 – O intocado carneiro!
Quando Victoria tinha somente cinco anos, Eric Belomonte decidiu fazer uma pequena expedição. Tanto ele mesmo quanto alguns dos seus primos que dividiam o nome do clã viajaram para Eikõ de modo a conseguir outras variedades de uvas.
Espertos, criaram diversas conexões assim que suas caravanas alcançaram o reino do oeste, sendo o contato mais forte o patriarca Akihiro Ikeda, que nos anos seguintes se mudaria de vez para Sihêon e ascenderia eventualmente a uma das cadeiras do conselho dos nobres.
Envoltos em festividades e envolvidos na cultura oriental, os Belomonte caíram nas graças e luxúrias da vida da noite no reino vizinho.
Tardara apenas um ano e a correspondência da existência de Emília atingiu a grande mansão dos vinhedos. A princípio, Eric negou que a filha fosse dele, mas seu clã poderia perder a imagem se ocorresse algum escândalo, logo, tratou de cuidar da garota debaixo dos panos. Entregou o nome Belomonte para a mesa e bimestralmente uma comitiva com suprimentos e ouro trafegavam até a casa da concubina oestina e da pequena bastarda.
Victoria descobriu, por acidente, lendo correspondências que não lhe diziam respeito, a maior surpresa dela fora perceber que sua mãe tinha conhecimento de todo o caso e, ainda assim, permanecia ao lado de Eric.
Com o passar dos anos, Victoria e Emília trocavam cartas, conversavam sobre como foram suas infâncias e quão parecidas eram em alguns aspectos, como diferenciavam totalmente em outros.
O choque de cultura dos dois reinos também era tema das cartas trocadas, e mesmo elas se unirem mediante um ato de deslealdade, as duas acabaram muito amigas.
A mesa inteira havia se calado após o tapa que Eric havia recebido da própria filha.
Além dos tapas, havia muitas feridas nos três que se entreolhavam. Uma ruína gigantesca manchava a paz dos Belomonte.
— Respeito? Belomonte? Você deveria representar os Belomontes, sim, mas… Agora? Não. Agora você é visto como uma fraqueza, uma peça quebrada.
Dissera Eric, trazendo o som da sua voz de volta após ter engolido o susto de ter levado um tapa. Conforme sua boca se movia, ele sentia o gosto ferroso do seu próprio sangue.
— Sonhei te ver no altar… Com véu, coroa de flores e tudo mais… Sonhei em te ver sendo reverenciada. Em vez disso… somos piadas nos jantares dos nobres. Eles estão rindo de mim, estão rindo de você. — concluiu o patriarca.
— E nada disso verdadeiramente importa. O que importa é que quero para a minha própria vida. — Victoria rebateu.
— Desgosto… Desgosto. Essa família vive me trazendo isso!
O homem dos cabelos curtos e cacheados ficou imóvel, ponderando toda a conversa que teve nesse jantar fúnebre.
Sem dizer mais palavra alguma, ele empurrou a cadeira para trás, fazendo com que ela soltasse um rangido fino e irritante. Eric levantou-se rapidamente, limpando o canto da boca com um lenço.
Retirando-se do salão.
Iolanda encarara o prato, mal-tocado, então olhou para sua filha. O silêncio entre as duas mulheres era uma película tênue que aumentava a espessura conforme continuava existindo. Por fim, a matriarca ergueu-se. Sem proferir palavra alguma. Com um semblante decepcionado.
— Mãe.
O chamado de Victoria reverberou com firmeza, embora estivesse no meio do movimento do seu passo. A mulher virou-se e retornou a atenção para a sua filha.
— Não gostaria que a senhora visse isso como uma afronta ao meu pai… Ou à nossa família, sabe? Eu apenas…
Ela buscava o que dizer.
— Eu apenas não compartilho dos mesmos ideias que vocês. Eu me sinto muito bem na presença do Ayel, ele me respeita e cuida de mim. Apenas isso.
Iolanda escutou suspirando, respondeu com um tom baixo, como se estivesse cansada.
— Eu entendo, minha filha. Seu pai não. Ele preza pelas aparências e pelo legado. Pela forma como nós, os Belomonte, somos tratados nos boatos dos salões, corredores e ruas desse reino inteiro. Minha única e verdadeira preocupação é com o seu futuro…
O clima entre as duas, lentamente, se tornava mais ameno.
— O nosso rei é um tribal, impulsivo… — prosseguira Iolanda. — Ele pode simplesmente te descartar. Como um pedaço de carne que ele tenha cansado de comer. Você entende isso?
Victoria hesitou, principalmente por conta da comparação que acabara de escutar. Ainda assim, reuniu energia para continuar a conversa com a sua mãe.
— Por que perdoou meu pai quando soube da traição?
A pergunta gerou um silêncio de alguns instantes.
— Talvez… Por também prezar pelas aparências. É complicado para nós, mulheres, sem um marido ao nosso lado.
— Sua vida depende dele de alguma forma? — indagou Victoria.
— Claro que não. — Sua mãe riu. — Eu apenas aprendi a amá-lo com o tempo. Ele foi e ainda é um bom marido para mim… Mas quando você entende como são as regras do jogo da nobreza, ou como o ouro e a influência moldam tudo ao seu redor… Você percebe que está sempre dependente de algo ou alguém, minha filha.
Ambas encaravam-se com um pouco mais de ternura em seus olhares, não era mais uma mãe importunada com uma filha com objetivos rebeldes, eram duas mulheres que sofriam as duras consequências da sociedade em que estavam inseridas. — O respeito que tenho hoje não existiria se eu estivesse abandonado seu pai quando ele me traiu. Ou se ele tivesse me deixado para ficar com a mulher de Eikõ. — concluiu a matriarca.
— Mas isso é horrível! Você tem noção de quão errado é tudo isso?
— Está ficando tempo demais com o bárbaro, minha filha… Já está contestando as leis da burocracia.
Iolanda riu, embora seu semblante estivesse com alguns veios de tristeza.
— E estou errada em contestar, mãe? Por que não posso apenas me tornar quem quero ser? Conquistar o que desejo conquistar sem precisar de homem algum para legitimar meus feitos?
— Você pode, meu amor. Pode, sim, mas saiba que mulheres que seguem esse caminho raramente serão aceitas como esposas, mães ou matriarcas… Nunca serão vistas como legítimas representantes de um clã ou uma casa que tenha nobreza.
Havia ideias enraizadas devido às gerações e gerações que viveram sob essa mesma régua, acima de tudo, Iolanda se preocupava. Ainda mais com o que conseguia dizer para sua filha. Em um estalo, ela chamou diversos criados e ordenou que a mesa fosse retirada.
— Isso está longe de ser justo. Não espere que eu aceite isso calada. — Victoria transpirava revolução.
— Eu não espero mais nada. — cortou Iolanda. — Porque não tem mais como você se tornar esse tipo de pessoa.
A mestra dos venenos elevou a cabeça para olhar melhor para a sua progenitora, um pouco surpresa com o que escutou. Mas não dissera nada. Aguardou o fim do discurso da matriarca.
— Ao deitar-se com o Alvorada, você rompeu com o que todos esperavam de você, como nobre e como mulher. Perdeu o seu valor como dama aos olhos dos outros homens do reino. E não por quem você é… mas por quem ele é. O famoso rei bárbaro.
A matriarca não parecia estar guardando ou cogitando a melhor forma de dizer o que estava dizendo. Soltou seu discurso mesmo com os olhos arregalados da sua filha que escutava descrente.
— Nenhum homem se aproximará de você, agora. Mas não por medo de você, sim, medo do Ayel. E aqueles que ousarem fazer isso, vão tratar você como se fosse uma puta. Pois essa é a visão que se espalhou. Você deitou sem se casar, Victoria. Você se entregou sem o matrimônio e isso para todos os homens é imperdoável.
A mesa toda fora retirada, as duas observaram em silêncio o trabalho dos criados, isso levou um tempo. Nesse tempo, a garota estava absorvendo as informações e a mãe respirava para não perder o controle enquanto fazia seu discurso. Era um soco necessário na mentalidade que Victoria estava tendo, Iolanda fazia, por mais que isso doesse em seu interior.
— É injusto, minha filha. Sei que é injusto, mas você fez a sua escolha. Agora, se tiver alguma vontade de criar um legado, de ter algum renome… Vai ter que trilhar outros caminhos, seja como mestra de veneno, aventureira… Membro desse esquadrão que o rei criou, enfim. Você terá essas opções, mas nenhuma delas será como uma dama nobre, uma esposa respeitável. Isso… Isso morreu para você.
A matriarca retirou-se, deixando sua filha sozinha em uma mesa que havia sido retirada, apenas as velas foram mantidas.
Victoria não se importava com as opiniões alheias, ao menos ela mesmo acreditava nisso.
Porém, ter escutado aquilo da sua mãe a feriu muito mais que o tapa que recebera do seu pai.
Ela olhara pela janela, a noite estava em seu auge, por mais que silenciosa. Estava pesada.
Victoria ergueu-se, ajeitou o seu vestido e rumou aos seus aposentos, andando devagar, observava cada detalhe daquela enorme mansão.
“Talvez fosse hora de reunir a bagagem e aceitar, enfim, o convite de Belle”.
Pensou.
Finalmente, viver no Covil do Escorpião, onde ela não seria uma filha, ou uma dama, ou apenas… Uma Belomonte.
A viúva volta e meia oferecia alguns aposentos para sua discípula, a fim de maximizar o seu tempo de estudos botânicos.
A garota passou a acreditar que esse fosse o momento em que poderia trilhar um dos caminhos que sua mãe mencionou, sendo apenas: ela mesma.
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