Capítulo 068 - A batalha mais difícil!
Capítulo 068 – A batalha mais difícil!
Assim que o amanhecer desapareceu e o sol ergueu-se imponente, clareando a madrugada e iniciando a manhã, Dalila e Lavish estavam postos em pé na praça central de Sihêon. O céu, ainda pintado com tons bem suaves do laranja e do dourado, clareava tão devagar que quase não era percebido.
As pedras desgastadas das ruas clareavam finalmente e boa parte das tochas estava sendo apagada.
O frio daquela manhã finalmente cedeu ao calor morno do começo do dia, diversas barracas recém-armadas dos mercadores levantavam-se prontas para o comércio.
O burburinho crescente da feira matinal escutava-se por todos os becos e vielas, era o chamariz para o começo das vendas. Era o grande ponto de compra e venda de todo o reino.
No centro da praça, onde a multidão começava a se reunir em uma densidade apavorante, estavam ambos os algozes.
Dalila caminhava com seus passos leves, seus cabelos médios e sua franja pareciam rebater o começo da luz solar. Sua pele caramelo também brilhava com o frescor da manhã. Sua mão esquerda carregava uma cesta já preenchida com alguns legumes frescos e cortes de carne, embalados em algumas folhas.
Do lado da mulher repousava Lavish, com aquela cabeça raspada e a pele negra. Ambos trajavam como claros algozes e isso era o suficiente para chamar um pouco de atenção, uma atenção sombria.
Ele também segurava outra cesta, nesta estavam alguns frascos de vidro com leite, estavam selados com rolhas. Também havia algumas frutas vermelhas, que acabaram de ser postas por um vendedor relutante.
Precisavam batalhar e argumentar muito para conseguir comprar o mínimo, era como se o valor das moedas que saiam de um membro de Maut Ka Mandir valesse menos que qualquer outro ouro.
Desde que o rei bárbaro decretara a quarentena dos algozes, os membros da guilda viam-se enclausurados. Privados da liberdade e com razão.
— Sinto que isso está acabando. — dissera Dalila, com sua voz baixa, observando o que estava sendo vendido logo em sua frente.
— O quê, necessariamente? — indagou o homem ao lado dela.
— Esse preconceito conosco… tanto que não estão te olhando com tanto ódio quanto da última vez.
Dalila pertencia ao Esquadrão do Centro da Praça, tal posição a fazia gozar de um certo respeito, um respeito que não estendia aos demais algozes.
Lavish sentia o peso dos olhares alheios, a repulsa ainda existia. Era um ódio contínuo.
Era um horror para um algoz sentir-se inferior, uma guilda que nasceu e cresceu escondida nas sombras, rapidamente domada e vigiada por guardas reais e repudiada pelos aldeões.
— Essa quarentena é eterna… — Prosseguiu Lavish — Enquanto o bárbaro não perdoar a nossa guilda, estaremos sempre fadados a isso.
Dalila parara diante de uma barraca repleta de maçãs, a coloração era intensa e chamativa. Ela então pegou algumas, encarando se estavam boas o suficiente para levar, uma a uma, começara a colocar na sua cesta, o homem da pele de ébano prontamente se aproximou e a ajudou.
— O problema com aqueles zumbis… o rei acamado… Ainda assim, sinto lentamente que os aldeões têm esquecido dessa punição, sinto que, eventualmente, nos deixarão em paz.
O homem escutara a garota da pele de caramelo, ele hesitou, como se estivesse procurando melhor como dizer o que desejava.
— Você soube, não soube? Do nosso mestre, Mudamir. Ele finalmente retornou.
Dalila virou-se com uma pequena surpresa, seus olhos arregalaram discretamente, ela ainda assim manteve sua voz no mesmo timbre.
— Escutei sobre isso nos corredores, mas havia ficado acanhada demais para perguntar… Até porque eu não sou uma das algozes mais poderosas de lá.
— Diz isso, mas é a única algoz chamada para fazer parte do esquadrão.
— Lugar certo na hora certa, Lavish. Estou muito longe da tua experiência.
— Modéstia. — O homem de pele de ébano sorriu.
As maçãs foram todas postas na cesta da garota, que delicadamente colocara cinco moedas de ouro na bancada do vendedor, que brandou um largo agradecimento.
Conforme os dois andavam pela praça, podiam reparar alguns outros aventureiros que também usufruíam da feira matinal, alguns relicários, alguns arcanos. Era um costume comum, principalmente pelo fato de que existia a oportunidade de desfrutar de mercadorias de outros reinos. Muitos vendedores transeuntes viajavam dias e dias para conseguir entregar algo diferente ao povo de Sihêon.
Distrações à parte, os dois seguiam para o outro lado da praça. Dalila retornou ao tópico anterior.
— Com o mestre Mudamir de volta… Será que conseguiremos paz, finalmente?
— Pelo que sei, ele tem uma carta poderosa que apresentará em breve para o nosso rei Ayel. Dizem que isso será o suficiente para garantir o nosso perdão.
Lavish falava sério, o que fez Dalila sorrir de leve, estava completamente contemplativa. Era esperançoso imaginar um ambiente melhor para seus companheiros de katar.
— Espero que seja mesmo, ainda mais que isso… É uma honra finalmente poder conhecer o mestre Mudamir. Nos meses em que estudei e me formei como uma algoz, ele já não estava presente.
— Ele é um homem muito formal. — dissera Lavish enquanto se aproximava de um vendedor de cenouras. — Mais até do que Anusha fora. Mudamir também é um pharidenho, e bem… Sabe como é o povo de Pharid, não sabe? Aquelas máscaras…
— Sei perfeitamente, como é a máscara do nosso mestre?
— Varia bastante… Mas, geralmente, é somente um rosto branco. Poucos detalhes, pouca expressão.
— Entendo…
Lavish erguera três dedos, indicando quantas cenouras desejava. Ao escutar o preço do vendedor, perguntou se havia solicitado somente três ou três dezenas, claramente ofendido com o tanto que estava sendo ofertado. Uma injustiça.
Dalila interveio, precisou de uns bons minutos dialogando com o vendedor para o mesmo poder oferecer, finalmente, um preço justo. O homem com pele de ébano comprou, mesmo ofendido.
A fome de Maut Ka Mandir era maior que o ego.
Horas passaram-se lentamente, ambos prosseguiram entre bancas e barracas, em um silêncio sepulcral. O homem estava irado e a garota não desejava aumentar essa ira.
Mesmo assim, seus esforços para manter a calma de Lavish esgotaram-se, pois, mercadoria por mercadoria, produto por produto, tinham que argumentar ou até mesmo implorar para os comerciantes aceitarem vender honestamente.
Ela precisava desviar-se desses pensamentos que poderiam prejudicar o restante da feira.
— E a garotinha? — indagou Dalila.
Lavish que antes estava calado, pareceu ter despertado do seu torpor. Seus olhos, por um instante, até brilharam.
— Trinity? Ah, as coisas vão muito bem.
Ele sorriu, a moça da pele de caramelo acompanhara no sentimento, escutando o que ele tinha para dizer da pequena.
— Prometi a Niyati que cuidaria da garota… Foi por conta da compaixão dela que decidimos adotá-la, logo…
O homem falava com uma ternura parental admirável. Dalila estava dando espaço para que ele dissesse tudo que desejasse:
— A menina está mais comunicativa agora. Ela tem seis anos, mas pela forma que viveu… Acredito que ninguém tenha lhe ensinado coisa alguma. Quase não falava, mas estou mudando isso aos poucos.
— É bom saber que ela está sendo bem cuidada. Também… é a única criança em Maut Ka Mandir. Todos a adoram… É praticamente nossa mascote. — Dalila concordou, elogiando o seu companheiro de guilda.
— Sim, todos são bem receptivos. Acho que o único que tratava a Trinity com frieza era justamente o Anusha. Todos os outros irmãos cuidam muito bem dela, quando não estou presente.
Era um afago, um pouco de vida em uma vida com tantas mortes. Era uma benção para todos os assassinos, aqueles olhos pequenos e brilhantes, curiosos e famintos.
— Está sendo um ótimo pai, Lavish. Assim como Niyati fora uma ótima mãe…
O silêncio retornou uma vez mais. O peso do nome da Niyati tinha a força de preencher o espaço como uma sombra densa. O luto não era nada simples de absorver ou enfrentar. Era somente algo que Lavish carregava silenciosamente, em seu sofrimento individual.
Haviam passado tantos meses desde que ela foi dada como morta. O homem com pele de ébano nunca compreendeu exatamente o que havia acontecido, isso o deixava ainda mais atordoado, ainda mais confuso e triste.
Sabia-se que todos os algozes eram considerados irmãos de consideração pelo código da guilda. Logo, relações amorosas não eram apenas desaconselhadas como devidamente punidas, com uma severidade extrema.
Mutilações, execuções…
Sussurravam boatos de diversas dessas punições em todo o território do santuário, se eram lendas ou histórias reais? Nenhum algoz tinha culhão de pagar para ver.
Lavish e Niyati, por mais que as aparências dessem a entender outra coisa, jamais haviam sido amantes. Existia sim um vínculo, fraterno. Sólido.
Dalila compreendia isso, seu silêncio após a fala era um sinal claro de arrependimento, ela não desejava ser mal interpretada, sabia que ambos nunca haviam se relacionado, ela temia que o senhor Solanki interpretasse erroneamente.
— A pequena Trinity seria muito mais extrovertida e contente se a Niyati ainda estivesse aqui… — dissera Lavish em um tom um pouco mais grave. — Posso brincar com a pequena e tudo mais, mas eu não sou tão divertido… Sou aquele que segue as regras. Sei que isso vai influenciar a vida da Trinity quando for mais velha.
— Significa que ela será uma algoz tão boa quanto. — Dalila concluiu, colocando alguns repolhos em sua cesta.
Ambos sorriam, as compras haviam acabado, mas a conversa sobre a criança ainda desejava prosseguir.
— Na verdade, eu não desejo forçá-la a se tornar uma algoz como nós. Claro que farei com que ela siga tudo que Maut Ka Mandir exige, enquanto quiser estar sob o solo do teto do santuário… Mas… No dia em que ela quiser seguir outro caminho, aceitarei, francamente.
Enquanto rumavam em direção ao santuário, ele pôde perceber o que havia dito, observando principalmente o sorriso que sua companheira de guilda havia esboçado no rosto caramelo.
— Uma fala digna de um bom pai, Lavish.
“Um bom pai”
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