Capítulo 069 - Medeie como um rei!
Capítulo 069 – Medeie como um rei!
O vento soprara entre as frestas da janela aberta na alta torre real, trazia consigo um aroma úmido do outono, era um agrado para as narinas do bárbaro.
As cortinas balançavam, por mais que costuradas por um pesado tecido, cortavam um pouco daquela luz. Já que o céu estava tingido das nuvens, de cores de chumbo, pouca luz pálida parecia escapar, poderia chover a qualquer instante.
Ayel Alvorada estava deitado há diversos dias. Na realidade, o rei tribal estava em tratamento desde o acontecimento com os zumbis, há bastante tempo. Deitou-se na beira do leito, seu corpo estava envolto somente por uma túnica simples, o couro que estava sempre trajado havia sido jogado para algum canto e pego prontamente por um criado, ele não voltou a usar.
Seus cabelos cor de fogo caíam desalinhados sobre os ombros, seu semblante era de cansaço, ainda um pouco pálido, talvez pela falta de sol, talvez pela falta de sangue.
Onore estava finalizando seus curativos diários, chegara a um ponto que a magia curativa dos clérigos não surtiria mais efeito, ele estava livre da morte, mas não das dores da recuperação. A criada umedeceu, finalmente, um pano de algodão claro para passar pelo corpo do tribal, que agradecia com um olhar sério.
— Como se sente, meu rei? — A senhora perguntava isso toda vez que o tratava, ele respondia toda vez da mesma forma.
— Estou bem, Onore.
Eles nunca tiveram oportunidade de conversar desde que Ayel trucidou Bran, o Açougueiro. Ele não sabia o que dizer, ou como dizer. Ele sentia que precisava dizer algo para a sua subalterna, mas como fazer alguém passar pela dor do luto e superar, se ele mesmo não havia superado a ida de Aiden?
O bárbaro optou pelo silêncio, no fim, sempre fora dessa forma que ele resolvia as coisas, o silêncio.
O tempo seria um remédio melhor do que qualquer palavra. Embora ele pudesse ver o olhar opaco e sem vida naquela senhora, pela primeira vez ele presenciou os rastros da morte, os rastros que afetam os inocentes.
Os olhos bárbaros ainda estavam cheios de saudade da guerra, repousavam sobre a janela de pedra enquanto estava sendo limpo, era como se ele pudesse ver o mundo além dos muros do castelo, como se conseguisse observar adiante.
— Não desejou tirar o dia de folga uma vez sequer nos últimos meses, por quê? — indagou o ruivo, não conseguindo se conter.
— Minha cabeça, majestade. Preciso mantê-la cheia…
O rei respeitou, para ele, a morte do irmão havia se tornado um combustível para se tornar uma fera assassina, mas ele não poderia esperar que todos reagissem da mesma forma. Ele compreendeu o sofrimento da criada e, para evitar que ela se machuque mais que o necessário, ele encerrou a conversa.
O monarca tinha mais coisas para se preocupar, no principal, era sobre acreditar que havia se tornado um peso morto, aquele que um dia guerreou com centenas e agora estava rendido ao cansaço.
Era compreensível, dada a gravidade do que passou, que ainda estivesse se recuperando, mas ele não conseguia aceitar.
Antes que se perdesse ainda mais em seus devaneios, escutara três toques na porta de madeira, anunciando a chegada de um criado.
— Perdoe-me a interrupção, vossa alteza, mas o senhor de Nox Arcana encontra-se no corredor e deseja falar convosco.
Ayel erguera o rosto, dispensando delicadamente Onore e retornando a sua atenção para o criado que estava na porta.
— Permita que ele entre.
A porta fora aberta com uma certa lentidão, permitindo a entrada daquela figura envolta em sombras conhecidas. Bruxo Negro adentrou como se fosse uma escuridão antropomórfica, seu manto azul esvoaçava enquanto aquelas sombras líquidas que cobriam sua pele prosseguia em direção ao monarca.
— Ora, ora… Bom dia, majestade. — Dissera enquanto mexia em seu chapéu de ponta longa.
— Bruxo… Como você está? — respondera o rei, meneando a cabeça. — Eu soube que as suas mãos praticamente queimaram quando entregou a orbe para a Kassandra, pois acabou tocando na relíquia sem desejar.
— Está acamado há quase cinco semanas e ainda se preocupa comigo, meu rei? — A voz do arcano soara com uma ponta de afeição, embora sutil. — Estou muito melhor, sim. E você?
Alvorada pousou a sua mão esquerda sobre o abdômen, era onde ainda sentia a dor lancinante do impacto que quase o lançou para a escuridão da morte.
— Eu soube dos riscos, acredito que no fim das contas foi a melhor solução… Até porque, vai saber o que aquilo tudo de zumbi se tornaria mais para frente? Não é isso? As dores logo passarão, mas estou contente que toda aquela ameaça foi por fim aniquilada.
A criatura enigmática assentiu lentamente, respondeu com um murmúrio.
— Eu concordo com isso, alteza. — Bruxo coçara a garganta. — Na verdade, tenho intuito de conversar sobre a orbe.
— O que tem ela?
O silêncio perdurou um segundo, denso como a neblina que ficava envolta no mausoléu.
— Quando conversamos com a Kassandra… — Começou Bruxo Negro. — Ela havia mencionado que poderia utilizar a força da orbe para trazer Aldmond e Phellege de volta, não havia sido isso?
— Exatamente. Mas ela daria a eles outros nomes… Iria trazê-los como zumbis conscientes… Quais eram os nomes mesmo? Espúrio e Pútrido, creio eu.
— Fúnebre. — prosseguiu o arcano, com um tom de voz quase filosófico.
— Bastante. Mas ela é uma necromante, afinal. Iremos julgá-la por ser aquilo que é? — Ayel riu com a ironia carregada em sua fala.
— Bom… não. Acontece que pensei que ela fosse utilizar a orbe para energizar a sua força e então desempenhar um ritual que poderia trazer esses mortos de volta.
— Bom, não vai ser isso?
— Pelo que compreendi. — Dissera o arcano, se aproximando do leito. — Ela pretende dividir a orbe em dois fragmentos e introduzi-los nos cadáveres, para agir quase como uma alma… Um coração.
O rei franziu o cenho, completamente perdido nas entranhas da arte mágica.
— Tudo bem… e daí?
— Isso muda as coisas. — replicou o Bruxo, com uma paciência louvável. — A orbe deixaria de ser um ponto de canalização de mana e se torna… Algo. Um órgão praticamente.
— Certo…
— A ruptura da orbe para se tornar algo a mais pode ser perigosa, pelo simples fato de não termos noção do que isso possa ocasionar, meu rei.
Ayel suspirou e coçara a sua barba que estava por fazer, compreendeu finalmente o motivo da visita do arcano, pelo menos conseguiria dar prosseguimento ao assunto sem parecer um completo leigo.
— Parece preocupante, consegue conversar com ela sobre isso? — indagou o ruivo.
— Posso tentar, mas, na verdade, vim aqui para o castelo a fim de saber se o senhor não seria aquele que poderia convencê-la. Kassandra confia no senhor, meu rei. Principalmente após ter sido agraciada com o Mausoléu do Sofrimento.
O vento passou com um pouco mais de força, abrindo rapidamente a janela da torre, bateu no manto do arcano que esvoaçava, Bruxo segurou imediatamente no seu chapéu para que ele também não saísse do lugar.
O rei desviara o olhar para o chão, relutante.
— Eu poderia convocá-la… Mas eu não saberia necessariamente o que dizer, Bruxo. Sabe que não entendo muito dessas frescuras de magia.
A fala saiu genuinamente, o que fez com que o arcano arqueasse a cabeça levemente, quase como um corvo intrigado ao se aproximar da sua presa.
— Frescuras, Alteza?
Ayel deu uma risada sincera, embora tivesse tremido parte dela por conta da dor que sentiu. Seu peitoral subira e descera com o esforço que poderia ser tateado.
— Perdão… Falo dessa forma, mas foi uma dessas frescuras que quase me matou, não foi isso?
O silêncio que se sucedeu parecia eterno, Bruxo então, depois de muito encarar, recolheu seu manto abraçando-o junto ao seu corpo e distanciou alguns passos.
— Irei trazer algumas poções para aliviar as dores do seu corpo.
Não tão diferente como o mana branco dos clérigos, mas os arcanos podiam imbuir frascos alguns efeitos que desejassem.
Era mais comum com magos, principalmente os velhos e sábios, tal como Alyssius, mas quase todo arcano conseguia fazer poções.
Anestésicas, rejuvenescentes, fortes elixires que sanavam qualquer condição conhecida, limitada somente à criatividade, à aptidão do seu artesão mágico.
As poções de Nox Arcana não eram comercializadas, não como os frascos advindos do Covil do Escorpião, eram raridades.
Ayel concordou com a cabeça ao observar o arcano se distanciar até a porta, o Bruxo Negro estava para partir.
— Irei convocá-la o mais urgente possível — concluiu o ruivo.
— Fico contente em saber, majestade. Pois, se minhas expectativas estiverem corretas, aquele artefato carrega um poder imenso, tão poderoso que nem Kassandra consegue controlar e, se isso eclodir, negativamente. Eu temo que o reino todo acabe caindo em uma desgraça sem precedentes.
— Permitiu que algo tão poderoso caísse nas mãos de uma garota tão jovem?
Alvorada perguntou genuinamente, Alyssius e Bruxo eram seus maiores contatos referentes às artes arcanas, acreditou fielmente que se fosse um problema tão grave dessa forma, ele teria sido aconselhado outrora.
— Você acredita nela, logo, também acreditei. Se tivermos que intervir, meu rei. Que seja sob seu comando.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.