Capítulo 070 - Trio relicário!
Capítulo 070 – Trio relicário!
A tarde caía com muita preguiça em Sihêon, os tons dourados do fim do dia manchavam vagarosamente as altas janelas do Laboratório das Maravilhas.
Por mais que ainda estivesse límpido, o céu conservava bem aquela cor azulada com profundidade que, aos poucos, cedia para o crepúsculo. Não mais que isso, o ar no laboratório impregnava aquele odor de madeira recém-cortada, resinas que foram aquecidas e muito pó de giz.
Nem sempre sobravam materiais das lições ministradas pelos professores relicários, naquela tarde em si, esse acaso ocorreu para a felicidade das três pequenas figuras da escola de relíquias.
Aqueles olhos atentos e as mãos inquietas haviam tratado logo de recolher uma pequena pilha de sobras: madeiras, cordas, ferramentas esquecidas e os restos que conseguiram encontrar.
Felicity, com seus longos cabelos cor de fogo desgrenhados, erguera as mangas da roupa larga que cobria até os dedos enquanto corria segurando diversos discos de madeira.
— Que tal? Essas fatias de galhos grossos podem ser as rodas! — exclamou a garota, com um entusiasmo naqueles olhos dourados.
Shiro, cujo era o mais velho dos três, mantinha seus olhos puxados e atentos por trás dos óculos circulares de madeira que Solomúrius lhe havia feito de presente. O garoto levantara alguns pedaços mais finos de tronco.
— E isso daqui pode ser usado para os eixos! — dissera com uma certa serenidade, com a respiração espaçada por estar correndo logo atrás da sua irmã adotiva.
Andrey estava distraído, como sempre, segurava uma corda com uma expressão deveras perdida.
— O que eu faço com isso aqui? — indagou.
— Traga também, traga também! — respondeu Felicity de bate pronto, sem sequer virar seu rosto para encarar o menino.
Encontraram uma oficina, das mais afastadas dentro de todo o laboratório, uma sala um pouco esquecida pelos professores e que Solomúrius raramente visitava, era o ambiente perfeito.
Com uma certa engenhosidade nascida de pura paixão em tudo que viam, os três haviam começado a construir seus próprios carrinhos feitos de madeira, desejavam descer com velocidade pelas ladeiras do reino.
— Essa madeira é carvalho… — murmurava Shiro, examinando uma prancha larga e escura. — Acho que daria uma ótima base.
— E quer que eu corte de que tamanho? — perguntou Andrey, ele já estava com uma serra na mão que havia pegado de uma bancada próxima.
— Cinquenta centímetros de comprimento e trinta de largura… Como uma bandeja. Parece muito?
— Parece ótimo! — intrometeu-se Felicity.
A garota estava abaixada no chão, analisando as rodas com os olhos afiados.
— Irei lixar elas. — exclamou a moça. — Vai evitar o atrito.
Os meninos concordaram, enquanto Shiro entregava o carvalho para o pequeno Salamanca conseguir fazer os cortes, ali começou o trabalho do trio.
As mãos pequenas sujavam-se com bastante pó e farpas das madeiras que manuseavam. Seus rostos franziam em concentração.
Felicity apoiava as rodas contra uma pedra plana, deslizava a liza com bastante vigor e cuidado. Soprava vez ou outra a poeira para longe, que subia como uma fumaça amarelada.
Já o eikiano Shiro media os eixos, testava possíveis encaixes e amarrava as peças com uma habilidade surpreendente para os seus treze anos.
Andrey, entretanto, assumira outro papel… Ele era o vigia, assim que cortou as coisas a pedido do seu irmão adotivo. Há cada minuto, ele esgueirava-se até o vão da porta e olhava na direção dos aposentos e do restante do corredor. Atento, caso algum relicário ou o próprio Solomúrius aparecesse e estragasse a festa.
— E se ele nos pegar? — suspirou Andrey, ainda mencionando Solomúrius.
— Se o carrinho já estiver pronto, fugimos com ele. — respondera Felicity, com risos, um pouco empolgada com o que ela mesmo dissera.
— Mas não sei se o senhor brigaria conosco. — ponderou o menino com olhos puxados, limpando seu óculos na barra da sua túnica.
— Acha que não? — retrucou Felicity para Shiro.
E ele prosseguiu.
— Ele sempre nos parabeniza quando construímos algo. Somos aprendizes de relicários, afinal, não é isso?
— Sim… mas quando construímos coisas pequenas, não quando surrupiamos as suas ferramentas. — advertiu Andrey.
Aquilo deixara os três um pouco mais nervosos, continuavam as suas engenhosidades com uma ansiedade latente em seus peitos.
Felicity sentia o peso do risco, mas havia chegado longe demais para poder voltar. Seus olhos brilhavam com a emoção de criar algo tão grande, sem ordens ou qualquer espécie de instrução.
— Vai dar tudo certo! — A garota exclamou.
Ela tinha somente onze anos, mas era provavelmente a mais corajosa do trio inteiro. Shiro aos treze, já parecia um pequeno mestre artesão, eikianos no fim são mais sérios e centrados. Já Andrey, que beirava suas doze primaveras, alternava entre o medo e o fascínio.
— E onde iremos estrear? — perguntou o pequeno Salamanca, menos tenso ao visualizar os carrinhos quase prontos.
— Pensei em descermos a rua que dá para a praça central… — sugeriu Shiro, enquanto ajustava os últimos pregos. — O que acham?
— Muito arriscado, Shiro… Muita gente… muitos guardas. Vão avisar o Gambiarra.
— Hum… E a estrada norte?
— Que dá direto para o castelo? Está bem.
Andrey deu de ombros, os dois moços debatiam onde deixariam seus carrinhos deslizarem com velocidade enquanto a garota finalizava o seu carrinho, encarando os dois.
— Como se esse tal rei fosse fazer alguma coisa conosco. — Ela riu. — Voto pela estrada norte.
Após muito esforço, suor e farpas em seus dedos, os três carrinhos estavam finalmente prontos. Por mais que fossem feitos em conjunto, cada um dos carrinhos acabou absorvendo parte da personalidade daquele que o construiu.
O carrinho de Shiro era meticuloso e firme, perfeitamente equilibrado, o de Felicity tinha diversas curvas ousadas e uma pintura feita às pressas com as tintas esquecidas em uma prateleira, o de Andrey, embora simples, era o mais leve, seria consequentemente o mais veloz.
De fato, a alegria daquelas crianças era inebriante, corriam ao redor das engenhocas e tentavam as suas rodas, amarravam-nas com cordas para puxar enquanto riam alto, claramente, atentos à porta.
As crianças logo escutaram a sexta badalada da tarde, que vinha quase do outro lado do reino, do enorme sino do Templo dos Divinos. Era um ótimo sinal, significava que os estudiosos, relicários e os mestres estariam recolhendo-se aos aposentos para anotações noturnas ou suas ceias.
Fora esse o momento perfeito para escaparem.
Shiro foi o primeiro a espiar pela fresta da porta, aquele corredor estendia-se feito um túnel esbranquiçado pelos tijolos delicadamente colocados e pintados. As sombras se moviam com lentidão dada à luz clara das lamparinas ovais estrategicamente posicionadas por todo o corredor.
— Agora! — sussurrou o garoto enquanto ajustava seus óculos e puxava seu carrinho pela corda.
Felicity e Andrey prontamente o seguiram, cada um segurando seu próprio veículo. Os três mantinham-se agachados e sussurrando, pisando somente nas partes dos pisos que sabiam que não rangeriam.
Em um determinado ponto, Andrey chegou a escorregar, mas não por falta de cuidado, mas sim por acabar rindo baixinho ao visualizar a garota de cabelos vermelhos imitando como um dos professores andava exageradamente.
— Parem… Ou seremos pegos. — insistira Shiro, a voz da racionalidade no meio daquelas crianças.
Eles tinham direito de ir e vir, mas não assim que caísse a luz da lua, por isso estavam tão preocupados em serem avistados.
Naquela noite, no entanto, nenhum relicário os viu.
Quando atravessaram finalmente pelo último arco que separava o interior do laboratório das ruas do reino, Andrey gargalhou com gosto, contente em ter conseguido.
— As outras crianças vão morrer de inveja! — exclamou Felicity, puxando seu carrinho orgulhosamente.
— Está pensando nisso? — perguntou Shiro, com um certo sorriso cético.
— Mas vão ficar mesmo. Não existe nenhum relicário que seja tão novo quanto nós somos. — respondeu Andrey, enquanto passava sua mão pelos cabelos castanhos e desalinhados.
— Já está se considerando um relicário também? — Provocou Felicity, arqueando uma sobrancelha.
— Ué… Você não?
Ambos riram juntos, como os cúmplices que se tornaram. Os três não compartilhavam do mesmo sangue, mas tinham um amor fraternal muito forte, agarraram-se reciprocamente e pelo respeito mútuo ao Gambiarra.
— Hum… Poderíamos até vender isso para as outras crianças… — sugeriu Andrey.
— Ei… Sua ideia até que não é ruim. — admitiu Shiro, intrigado por concordar.
— Claro que não é. — concluiu Salamanca estufando o peito.
— Vamos nos encrencar mais ainda se o Solomúrius souber que além de construirmos os carrinhos, vendemos.
Ponderara Felicity, embora aquele brilho de travessura não saísse por nada dos seus olhos.
— Estamos pensando demais… E se… Ele nos parabenizar por termos feito carrinhos tão lindos e rápidos? — arriscou Shiro.
— Quer pagar para ver?
— Não.
O começo da estrada norte finalmente surgiu, ela estendia-se diante dos pequenos como uma ladeira.
Com um impulso bem animado, Shiro foi o primeiro a subir com o carrinho até o ponto mais alto da rua. Felicity arfando de rir, veio logo atrás, seguida pelo Andrey, que fingia ser um cavalo puxando uma carroça.
— Prontos? — gritou o eikiano, posicionando seu carrinho na beira da descida.
— Sempre! — exclamou a garota.
— Então vai! — gritou Salamanca, e todos desceram.
A madeira vibrava sob os pequenos corpos, as rodas zumbiam e gritavam, as cordas tremulavam e pareciam tentar fugir das crianças.
Havia vento no rosto.
Gargalhadas.
E uma sensação tão boa que atingia seus peitos, um sentimento bom de estar vivo.
Quando finalmente pararam nos pés da rua, todos caíram na grama, cada um para um lado.
Estavam ofegantes e ainda estavam rindo.
O céu estava escurecendo um pouco mais, após subidas e descidas aceleradas, eles decidiram voltar. Seus carrinhos agora estavam bem mais arranhados e desgastados, marcados pela aventura.
Refizeram seus passos, buscando adentrar tão sorrateiramente no Laboratório das Maravilhas como saíram.
Mas os olhos do mestre já aguardavam os três. Solomúrius, o velho tutor, estava parado ao fundo de um dos corredores, oculto pelas sombras e envolto em seu manto de veludo. Seus olhos brilhavam como dois vaga-lumes, observava os três tentando esconder os carrinhos com pressa atrás de algumas largas estantes de madeira, cochichando entre si em tentativas estapafúrdias de manter o silêncio.
Ele nada dissera, apenas cruzou os braços e deixou um sorriso escapar, estava tão orgulhoso.
Então, virou-se sem fazer ruído e deixou as crianças terminarem seu plano infalível. Ele acreditou que fosse melhor as crianças acharem que não foram descobertas. Afinal, existia essa magia da infância de que tudo era possível e o velho Gambiarra não tinha o desejo de tirar isso dos seus filhos adotivos.
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