Capítulo 0002: O cavaleiro negro
Quando percebeu que não conseguiria parar, Siegfried ergueu o escudo e segurou a garota pelo quadril, puxando-a para perto.
As dobradiças enferrujadas cederam diante do peso quando eles atingiram a porta, e a madeira podre caiu com um baque, espalhando lascas de madeira e levantando uma pequena cortina de poeira que preencheu a sala.
O mercenário sentiu o braço formigar. Seu ombro começou a arder e a mão que segurava o escudo ficou quente quando o fluxo de sangue foi interrompido pelo peso do seu corpo. Então girou para o lado e puxou a jovem, deitando ela de bruços, com a cabeça descansando no seu peito. Ao contrário dele, não parecia ter se machucado.
A poeira fez seus olhos lacrimejarem e ele começou a piscar descontroladamente, lutando para mantê-los abertos. Entre olhos vermelhos e poeira, ele viu…
Um elmo negro se misturava às sombras da sala, quase invisível, mesmo estando ao lado da única fonte de luz; uma pequena lamparina em cima da mesa de madeira. Atrás dela, uma figura obscura bloqueava a única janela.
Mesmo inclinado para a frente e com ambas as mãos apoiadas sobre um mapa, o seu algoz era tão grande quanto um cavalo de guerra. Tinha facilmente dois metros de altura e trajava uma armadura negra opaca, grande o bastante para vestir dois homens adultos, embora parecesse se encaixar perfeitamente no corpo musculoso do homem.
Seus cabelos desgrenhados e sujos desciam até os ombros, se misturando com a barba espessa e formando uma juba negra que escondia seu rosto.
A vela tremulou por um instante e os olhos de Siegfried encontraram os da criatura; um frio percorreu a sua espinha e o rapaz apertou o cabo da espada. Seus dedos arderam e sua mão queimou, mas ele não conseguiu desviar o olhar.
Aquilo era um cavaleiro.
O mercenário sentiu uma dor no peito quando a pequena o empurrou com as mãos para se levantar e correu em direção ao comandante inimigo. Levou apenas um instante; em um momento suas pernas estavam passando por cima da cabeça dele e no outro ela já havia saltado em cima da mesa, derrubando o capacete, rasgando o mapa e fazendo a madeira ranger com o tranco.
A primeira adaga cortou a garganta do cavaleiro, mas a pele grossa não permitiu um corte tão profundo quanto o que ela havia feito no escudeiro, apenas o bastante para fazer o sangue fluir e salpicar de vermelho a sua barba.
— É isso aí, otário…
Seu segundo ataque foi menos efetivo. Ela usou a lâmina da outra mão para tentar atingir o rosto, mas ele já estava atento e conseguiu desviar do golpe, saltando para trás e perdendo um pedaço da orelha esquerda no processo.
— … Cê irritou a garota errada!
Siegfried rolou para o lado e se levantou de um salto, mas só percebeu que estava de pé quando ergueu a espada e o escudo.
Seus olhos foram atraídos até a jovem. Para o bem ou para o mal, ela havia selado o destino de ambos com seu ataque.
O cavaleiro puxou a espada que estava apoiada na parede atrás dele, uma lâmina longa feita de prata nobre, a preferida dos fidalgos, devido ao seu gume mais afiado que o aço normal e aparência majestosa; embora a dele estivesse suja de sangue seco e cheia de cortes.
O mercenário avançou, desviando da mesa que bloqueava seu caminho e deslizando para o ponto-cego do adversário. Sua lâmina desceu com um assobio breve e quase inaudível, antes de parar abruptamente no meio caminho.
Só então notou os soldados zumbis.
Escondidos nas sombras, os mortos-vivos não chamavam atenção alguma, se misturando ao ambiente como parte da mobília, mas quando a batalha começou, saltaram para a frente e sacaram as armas para defender seu mestre.
Ao contrário dos soldados esqueletos que tinham apenas espadas enferrujadas, os guardas desmortos carregavam aço afiado e usavam um peitoral de ferro por cima da cota de malha.
Apesar da carne podre que pendia dos ossos como uma roupa de couro muito folgada, o seu adversário morto-vivo não era fraco. Ouviu-se um estalo de ossos se partindo quando a sua espada se chocou com a de Siegfried, e ao contrário do rapaz que empunhava a lâmina bastarda com apenas uma mão, a criatura precisava de ambas para segurar o seu ataque.
Por um instante, o mercenário pensou que o zumbi fosse ceder diante do peso, mas ele não teve tempo.
Outro inimigo surgiu por detrás do primeiro, se aproveitando da posição exposta do rapaz para atravessar a lâmina entre suas costelas. O melhor que pôde fazer foi abandonar sua posição e recuar, mas não rápido o bastante; a espada da criatura rasgou lã e carne, raspando seus ossos e fazendo o sangue escorrer pela sua perna.
Quando se afastou, não suportou a dor e teve de se curvar. Tocou o sangramento com os dedos, sem soltar a espada, e estremeceu.
“Soldados que não caiam no chão gemendo de dor quando enfiavam uma espada nas suas entranhas.”
Sorriu.
Distraído com seus próprios problemas, o rapaz só percebeu a garota em apuros quando ouviu o estrondo.
— NÃO DEVIA TER SAÍDO DA FOSSA EM QUE EU TE DEIXEI, FEDELHA!
Só conseguiu ver o impacto. A espada longa do cavaleiro partiu a mesa em duas como se fosse um graveto podre. O golpe em si não atingiu o alvo — se tivesse, teria partido ela ao meio —, mas a ponta da lâmina lambeu o peito da jovem, rasgando o seu colete de couro negro e a pele macia por baixo dele.
Quando saltou, o impacto a fez perder o equilíbrio e ela caiu no chão, rolando para trás como forma de amortecer a queda. Parou de joelhos e pôs a mão sobre o corte; deixaria uma bela cicatriz… Se vivesse o bastante para o seu ferimento cicatrizar.
O rosto estava pálido e ela suava frio, mas sua boca se contorceu em um sorriso forçado:
— N-não doeu…
Um terceiro soldado morto-vivo atacou a garota; a espada desceu como um borrão contra a sua cabeça e ela rolou para o lado.
Se aproveitando da diferença de tamanho, girou e rasgou o estômago da criatura com as adagas. O zumbi não esboçou reação alguma, mesmo depois que um buraco se abriu no meio da sua barriga, despejando no chão, pedaços de carne podre e murcha embebida por um líquido negro e viscoso como piche.
O fedor da carne pútrida fez os olhos do mercenário arderem e o seu estômago se revirar.
Para a garota, não acostumada com o fedor da batalha e mais próxima do cadáver, o cheiro fez ela lacrimejar descontroladamente e a pequena não teve escolha a não ser tampar a boca e o nariz com as mãos.
Sua guarda estava aberta.
De novo.
Ela tinha talento, mas ainda lhe faltava muita experiência.
Ignorando o corte em seu estômago, o morto-vivo arrancou a espada presa ao assoalho de madeira e voltou a atacá-la.
Siegfried desviou dos inimigos que vinham em sua direção, movendo-se de um lado para o outro e passando por entre eles.
Girou no calcanhar e então se lançou contra o algoz da menina; o movimento abrupto rasgou o seu estômago e abriu ainda mais o corte. Cada passo fazia sua perna tremer, ameaçando ceder diante do peso do próprio corpo.
O zumbi ergueu a espada com ambas as mãos acima da cabeça e o mercenário agarrou a oportunidade; sua lâmina passou por cima da cabeça da garota, que estava de costas para ele, e atravessou o rosto desprotegido da criatura.
A primeira pontada enfrentou mais resistência, teve de quebrar o osso para trespassar, mas o crânio podre não era defesa alguma frente ao aço anão e, depois disso, a lâmina não teve problema algum em seguir o seu caminho. Quando chegou do outro lado, ele não puxou a espada de volta, ao invés disso, girou para o lado e arrancou o topo da cabeça do zumbi.
O cadáver caiu para trás e não voltou a se levantar.
O baque trouxe a garota de volta para a batalha e ela ergueu as adagas, saltando para trás e dando com as costas no peito de Siegfried. Completamente perdida, ela girou de novo e se virou para ele, esperando encontrar outra das criaturas.
Quando o viu, relaxou os ombros e fez uma careta:
— Quê que cê tá fazendo?
O rapaz sorriu.
Não sabia se devia afagar a cabeça dela ou lhe dar um cascudo.
Com o canto de olho, notou o avanço do cavaleiro e girou, erguendo o escudo e empurrando a garota para trás.
Lascas de madeira voaram com o impacto do golpe, e o peso abriu ainda mais o corte em seu estômago, tirando a força do seu braço. Os olhos dos guerreiros se cruzaram e o mercenário notou; por trás do sangue e do cabelo negro, o seu inimigo contorcia o rosto em um sorriso largo.
Um segundo impacto o fez abaixar o escudo por um breve momento; o suficiente para o cavaleiro cravar a lâmina no seu ombro esquerdo.
A carne rasgou e o sangue jorrou, mas o pior foi a fratura. O seu adversário era muito forte e a sua espada muito pesada.
Era como ser atingido por um pedregulho.
Uma eletricidade percorreu seu corpo e o braço do mercenário começou a tremer incontrolavelmente. De repente se sentiu uma criança tentando erguer o escudo, lutando com o peso da madeira e do metal, enquanto sentia os espasmos subindo até o seu pescoço. Com muita dificuldade conseguiu erguê-lo, mas já não podia deixá-lo firme.
Juntou o braço ferido ao corpo e o escudo ficou colado ao peito. Apenas assim conseguia mantê-lo erguido, mas nada podia fazer quanto a tremedeira.
Ocupado demais com o seu próprio algoz, ele não notou quando a garota saiu de suas costas.
Ela se aproximou dos dois mortos-vivos restantes que vinham atrás dele, mas, em desvantagem numérica, não conseguia uma abertura para atacar; e soldados adultos com espadas tinham um alcance muito maior do que uma garotinha com adagas.
Quando a pequena tentou se abaixar e correr por entre as pernas dos inimigos, almejando se pôr atrás deles, os zumbis desceram as lâminas contra suas costas e rasgaram a leve camada de couro que a protegia; o golpe a fez gritar e ela acabou tropeçando, caindo no chão enquanto soluçava.
Quando se moveu para ajudá-la, seu adversário começou a pressioná-lo com golpes rápidos, fazendo-o recuar até ficar preso de costas para a parede.
— Bom. Bom! — O cavaleiro gargalhou. — Já faz muito tempo desde a última vez que o meu sangue ferveu com o calor de uma boa batalha. E vocês aguentaram bem. Mas eu sou um homem ocupado e a brincadeira acabou.
Ele parou de frente para Siegfried. Ao alcance da sua espada. Mas seus braços estavam doloridos demais por conta dos ataques, e o rapaz não teve outra escolha senão recuperar o fôlego enquanto era menosprezado tão descaradamente.
O cavaleiro segurou o ombro com uma mão e girou o braço. Um estalo pôde ser ouvido, como se os ossos duros e rígidos do homem gritassem de alívio. Ele cortou o ar algumas vezes; seus movimentos mais rápidos e fluídos do que antes.
— Não se preocupem. Vocês vão ter um lugar de honra no meu exército… Quando o sacerdote os trouxer de volta.

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