Índice de Capítulo

    O banquete dos nobres foi o mais extravagante que aquela terra fria e desolada tinha a oferecer.

    Risadas e conversas dominaram o salão como se os convidados competissem entre si para serem ouvidos. Estava tão alto que Siegfried mal podia escutar os seus próprios pensamentos, por isso prestou atenção à festa.

    Alguns soldados iniciaram uma briga corpo-a-corpo, enquanto um círculo de curiosos se formava ao redor deles para assistir ao espetáculo. Foi um combate particularmente vergonhoso, como uma luta de tartarugas; muitas quedas e movimentos desajeitados.

    Se era resultado da bebida ou da sua falta de treinamento, não sabia dizer.

    Algumas servas mais jovens eram apalpadas enquanto serviam o vinho, tanto pelos nobres como pelos guardas. Em dado momento, viu até mesmo um soldado mais jovem e ousado se aproximar da filha do conde e suas amigas com um sorriso idiota, mas logo foi rejeitado e os seus amigos se divertiram com isso; ninguém mais tentou repetir tal avanço.

    Já era de madrugada quando os primeiros convidados começaram a desmaiar de sono e cair duros onde estavam; alguns sentados em suas cadeiras, mas a maioria no chão.

    O conde foi o primeiro a se retirar, pegou a sua esposa no colo e a carregou até o quarto do casal. Nenhum deles parecia particularmente bêbado, embora estivessem um pouco felizes demais. Ao contrário dos outros, tinham de manter a dignidade de sua posição.

    Não foi até o último soldado desmaiar de sono, que a garota de olhos azuis voltou a aparecer.

    Ela cortou as cordas que prendiam o mercenário e levou um momento antes dele sentir o sangue voltar a correr pelos seus braços dormentes. 

    Seu corpo ainda estava um pouco duro, mas não tão ruim. Estava vivo e podia andar, isso bastava. Então caminhou até um soldado caído, pegou a sua espada e se virou para a garota, que… Esfregava a própria bunda?

    — Que merda cê tá fazendo?

    — Não tá na cara?! Esses babacas passaram a noite toda beliscando a minha bunda. Merda, tá ardendo que nem o Inferno.

    — …

    — E você? — Ela apontou para a lâmina curta em suas mãos.

    — Eu vou pegar a minha espada de volta. Falando nisso…

    A porta que dava para o quarto do lorde e sua esposa ficava do outro lado do salão, passando por um tapete de soldados desmaiados. O rapaz começou a andar e ela veio logo atrás dele, tão silenciosa que a única coisa que podia ouvir era sua voz:

    — Peraí! Você vai matar o conde? Agora!?

    — Se tudo der certo.

    — …

    — O que foi?

    — … Nada não. Boa sorte.

    Ela então lhe deu um último sorriso antes de correr para as sombras e desaparecer.

    “Garotas…”

    A porta do quarto estava destrancada e Siegfried não teve qualquer dificuldade de entrar.

    Como era de se esperar, o aposento estava mais escuro do que o salão, que mesmo com algumas tochas já apagadas, ainda tinha uma luz tênue para iluminar o caminho.

    Levou apenas um instante para seus olhos se adaptarem e a primeira coisa que notou foi a condessa deitada nua de bruços sobre a cama, meio coberta por vários lençóis.

    Mas nenhum sinal do conde.

    — Quem é você?

    A voz o pegou de surpresa e o mercenário se virou rapidamente, erguendo a espada em uma posição defensiva.

    Precisou forçar um pouco mais a vista para encontrar o conde de pé perto da parede, meio escondido entre as sombras. Assim como a sua esposa, estava completamente desnudo e segurava a espada bastarda de Siegfried.

    Quando seus olhos se encontraram, o rapaz sentiu suas feridas mal cicatrizadas arderem, como que em resposta à presença do seu inimigo. Mas não recuou.

    — Bem que notei alguma coisa estranha com ela quando lutamos — disse o homem, passando o dedo sobre o gume da espada, fazendo um fino fio de sangue escorrer por ele. — Aço anão. Não existem muitos anões em Thedrit. Como você conseguiu?

    — Eu forjei.

    — Mentira! — O rosto do lorde se contorceu em um rosnado. — Não me tome por tolo, rapaz. Ou arrancarei sua língua antes de matá-lo. Só existe um lugar onde este tipo de minério é encontrado–

    — Minas Risla.

    — …

    — Ganhei o direito de forjá-la após a batalha da torre solitária, quando matei meu primeiro inimigo em combate singular. Nossa conexão vai muito além do que um açougueiro como você poderia entender. Meu sangue corre nela como se fosse uma extensão do meu próprio corpo. Agora… Me devolva!

    Levou um momento para o conde engolir tudo o que tinha ouvido, então gargalhou:

    — Por Elyon, eu sabia que você não era só um mercenário qualquer. Não é à toa que nossa luta foi tão divertida. É a primeira vez que vejo um guerreiro de Qaredia. Ainda mais um humano. Os segredos que vou tirar de você. Temos muito o que conversar.

    — Querido…? — chamou a condessa, cobrindo a nudez com os lençóis. Mesmo naquela situação, manteve a compostura adequada à sua posição e não gritou ou demonstrou medo.

    Siegfried não esperou. Já tinha hesitado demais, permitindo que a conversa se prolongasse até ali.

    Cruzou o quarto em um instante e foi atrás da cabeça do conde. Suas espadas se chocaram e ele sentiu o tremor atravessar o seu braço e se espalhar pelo corpo quando aço encontrou aço.

    — Guardas! — gritou a condessa, se levantando da cama em um salto e fugindo do duelo. — Guardas! Acordem!

    Os espadachins estavam em um impasse, com ambas as lâminas presas em uma disputa de força para obrigar o outro a ceder. Embora muito mais forte e revigorado, o seu oponente não parecia ter interesse em levar a luta a sério, caso contrário, já o teria derrubado:

    — Abaixe a espada, rapaz — disse, com um sorriso no rosto. — Sua vida acaba de ganhar um pouco mais de valor para mim. Não me faça matá-lo.

    O mercenário não se importou. Soltou uma das mãos do punho da espada e socou o nariz do conde, fazendo-o cambalear para trás e perder o foco por um instante; o bastante para que fosse atrás de sua garganta.

    Infelizmente, não estava usando a sua espada, e sim uma lâmina curta, por isso calculou mal a distância e o seu golpe não fez mais do que abrir uma pequena linha de sangue no seu pescoço; nem de longe profundo o bastante para encerrar o combate.

    E então foi sua vez de ficar na defensiva.

    O aço anão é pesado, isso o torna difícil de ser brandido, mas também faz dos seus impactos mais devastadores. E o cavaleiro era forte; ele avançou e pressionou Siegfried com intervalos cada vez menores entre seus ataques, o fazendo recuar sem lhe dar uma oportunidade para revidar.

    Antes que se desse conta, o rapaz deu de costas com uma parede de madeira.

    A lâmina do lorde veio em sua direção como um vulto e foi por muito pouco que ele conseguiu deslizar por baixo do golpe, mas o esforço repentino abriu suas feridas e ele começou a sangrar.

    “Merda!”

    Era tudo que seu oponente precisava.

    Nem viu o chute chegando. Sua bochecha ardeu como se tivesse sido acertado por uma tocha e o seu pescoço virou de forma tão violenta que, por um momento, ouviu-se um estalo muito parecido com o de ossos se partindo.

    Felizmente, este não foi o seu fim.

    Seu corpo voou porta a fora, sua visão ficou meio turva e seus ouvidos zumbiram, mas o golpe não havia quebrado o seu pescoço.

    Rolou pelo chão e atingiu um pilar de madeira antes de parar, já no meio do salão, onde pôde ver sombras se movendo ao seu redor; os convidados estavam acordando.

    Uma delas correu em sua direção, mas não sabia dizer a quem pertencia, embora isso pouco importasse a esta altura. Quando a lâmina feita de trevas desceu sobre sua cabeça, ele girou para o lado e a sorte o favoreceu. Não enxergava bem, por isso mirou o mais alto que conseguia, acertando a parte de trás do joelho de seu adversário.

    Não percebeu o que havia feito até que o sangue espirrou em seu rosto e o oponente tombou com um grunhido de dor.

    “Uma artéria…?”

    Benditos sejam os deuses. Seja lá o que sua espada cortou, fez o sangue jorrar como uma barragem rompida.

    O mercenário se levantou apressado e, quando o fez, uma flecha atravessou seu estômago. O atirador estava tão perto que ela quase o atravessou por completo; a ponta saia pelas suas costas e ele mal podia ver as penas da rabeira no buraco de entrada. Então o mundo inteiro parou.

    Só percebeu que tinha soltado a espada quando ergueu o braço e viu que a sua mão estava vazia.

    Uma segunda flecha atingiu seu peito, bem abaixo do seu coração. Esta ficou presa entre as suas costelas, por isso não chegou a atravessá-lo completamente, mas o impacto foi demais para o seu corpo cansado; ele perdeu o equilíbrio e desmaiou antes mesmo de atingir o chão.

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