Índice de Capítulo

    Siegfried acordou já de espada na mão quando ouviu os cavalos agitados do lado de fora. Esperava encontrar o acampamento sob ataque, mas não eram homens que invadiam.

    — Fogo?

    Viu a luz das chamas dançarem em sua barraca e ouviu os animais desesperados por escapar, mas nenhum grito de guerra ou som de lâminas sendo cruzadas.

    Nem mesmo gritos de aliados dizendo o que devia ser feito, afinal, os esqueletos nada dizem.

    Então vestiu sua brigantina e pegou seu escudo sem perder tempo. Só porque não ouvia os seus inimigos, não significava que não estavam lá. Os incêndios raramente começam sozinhos.

    Do lado de fora, uma nuvem de fumaça negra já tomava conta do acampamento, nublando a visão e fazendo seus olhos lacrimejarem.

    Não dava para ver a origem do incêndio, mas o fogo se fechava ao redor deles, como a boca de um demônio flamejante, consumindo a vegetação e atiçando os cavalos.

    O bosque inteiro ardia em chamas.

    Um galho chamuscado caiu bem ao seu lado, mas não o atingiu e, entre o crepitar das árvores e relinchos dos cavalos, conseguiu ouvir a voz do conde, meio abafada pelo barulho e a distância:

    — Abandonar acampamento! Tirem a carroça daqui e levem os cavalos! Agora!

    E foi o que Siegfried fez.

    De longe, percebeu que alguns soldados esqueletos já levavam a carroça de suprimentos, por isso correu para libertar o seu cavalo, preso a uma árvore ao lado da sua barraca; a essa altura, o animal já escoiceava e lutava para se soltar.

    — Calma, garoto. — Ele guardou a espada em seu cinto e passou a mão na crina do animal, que se acalmou o bastante para que pudesse soltá-lo, mas não teve tempo de montá-lo.

    Sentiu um arrepio em sua nuca antes mesmo da dor o atingir. Uma sensação com a qual já estava bem familiarizado.

    Era a respiração gelada da morte em sua nuca.

    Mas não teve tempo de reagir e a lâmina atingiu sua cintura, ficando presa em seu quadril, logo abaixo do limite de sua brigantina. O cavalo fugiu trotando e desapareceu entre as chamas.

    Seu assassino arrancou a espada com um puxão e o aço raspou em seus ossos; quando saiu, o sangue escorreu pela sua perna e o rapaz se virou, encarando o seu adversário nos olhos.

    Ele usava uma armadura de batalha, com o rosto escondido por detrás de um elmo, mas não precisava vê-lo para saber quem era; sua estatura era a de um jovem e o seu peito exibia o brasão da família Essel; uma cruz prateada em fundo laranja.

    — Dorian — cuspiu as palavras como um insulto.

    O garoto não respondeu, voltou a avançar contra Siegfried; sua forma era desleixada e cheia de aberturas. Sabia manusear uma espada e isso era claro, mas não tinha a menor ideia de como fazer isso em um combate real.

    Só precisou de um pequeno passo para o lado e o pretenso assassino passou direto por ele, se desequilibrando com o peso da própria espada e quase caindo no chão, se mantendo de pé com algum esforço, enquanto suas botas de metal escorregavam na lama.

    Foi um pequeno movimento para o mercenário. Não. Escudeiro. Agora era um escudeiro, e não um mercenário. Não mais… Pelo menos, não por enquanto.

    Sentiu o ferimento arder e o calor se espalhou pelo seu corpo, o fazendo suar. A fumaça ficava cada vez mais forte; podia sentir seus pulmões ardendo enquanto tossia.

    Ouviu um estalo alto como um trovão quando a primeira árvore cedeu, fazendo o chão tremer com o baque.

    Cinzas e folhas em chamas choveram sobre eles conforme o incêndio se fechava ao seu redor com a promessa de engoli-los vivos.

    Mais árvores começaram a despencar, mas estas não estavam longe. Elas caíram ao seu redor e o escudeiro as evitou correndo para longe, quando a dor em sua cintura o derrubou bem debaixo de um tronco flamejante que crepitou e então cedeu; o rapaz rolou para o lado e conseguiu evitar que ele o esmagasse, mas o vento quente soprou em seu rosto e sentiu a sua pele arder.

    O bosque era um inferno de chamas.

    Mas aquele idiota parecia não se importar.

    Só notou Dorian em suas costas quando ouviu o tênue som da sua lâmina cortando o vento. A dor o paralisou quando tentou se esquivar e então viu o aço cintilando em um tom vermelho vivo.

    A imagem do seu crânio sendo aberta ao meio fez seu coração disparar.

    Não era uma visão do futuro, tão pouco o medo de um novato. Era o resultado inevitável. O tipo de certeza que um soldado ganha depois de já ter visto algo assim acontecer de novo e de novo.

    Não houveram pensamentos e nem estratégias. Seus instintos tomaram controle e o seu corpo agiu por conta própria.

    Ele deslizou por baixo do golpe e a espada do garoto passou pelo seu ouvido com um assobio breve, mas não o tocou. Então girou em seus calcanhares, indo parar atrás de Dorian e, antes que ele tivesse a chance de fazer algo, atingiu a sua cabeça.

    O aço anão atravessou o elmo do jovem nobre e a touca de malha por baixo dele, fazendo o seu caminho até a carne macia por baixo. Sentiu sua lâmina se prender ao crânio e o impacto lançou o garoto para longe.

    Só percebeu o que tinha feito quando Dorian caiu no chão desmaiado.

    — Merda…

    Por um momento, temeu que o tivesse matado, mas ele ainda tinha espasmos e seus olhos tremiam.

    Certamente não eram sinais de alguém muito saudável, mas estava vivo.

    — Merda.

    Siegfried olhou ao seu redor.

    O acampamento já tinha sido evacuado e tudo o que restava eram barracas abandonadas e árvores em chamas. E a única coisa que ouvia era o crepitar das árvores e o barulho que seus galhos em chamas faziam ao cair no chão.

    Carregar Dorian noite adentro não foi fácil. Jogou fora a armadura do garoto na primeira oportunidade que teve e então tentou estancar o sangramento em sua cintura, enrolando um pedaço da blusa de seda dele em volta do seu ferimento, mas a umidade e o esforço não ajudavam.

    Quando finalmente encontrou o novo acampamento, seu rosto estava pálido, suado e os primeiros raios de sol já abriam caminho pela copa das árvores.

    Os soldados esqueletos o observaram com suas órbitas vazias, conforme atravessava em direção à tenda do lorde. Mas a primeira voz que ouviu ao chegar na entrada, foi a do barão Frost:

    — Foi ele, vossa graça. Sinto em meus ossos. O alertei disso. Mercenários não são confiáveis.

    — E por que ele faria isso? — A voz do conde era monótona e cansada, como se já estivesse ouvindo os lamentos do velho a tempo demais. — Não tinha nada a ganhar com o incêndio. O mais provável é que os homens de Eradan tenham nos encontrado mais cedo do que prevíamos. Malditos mortos-vivos. São bons em matar, mas inúteis em todo o resto. Não servem nem pra patrulhar a droga de um acampamento.

    O conde bateu na mesa de madeira e o barulho se espalhou pelo acampamento silencioso como um trovão.

    — D-de qualquer forma, vossa graça. Dê-me a honra de trazer o traidor de volta…

    — …

    — S-só preciso de alguns soldados. — A voz do barão foi tomada de uma alegria inquietante. — Revirarei esta floresta e não descansarei até mat… Até trazê-lo de volta a vossa graça, para que enfrente o seu julgamento.

    — Então é isso o que pretende? Vai apenas trazê-lo a mim?

    — S-sim, vossa graça…

    — Sem acidentes? Sabe como são esses traidores. Eles tendem a resistir quando estão encurralados. Uma flecha disparada de mau jeito e tudo o que volta é um cadáver. Se você achá-lo, não é mesmo?

    — Eu acharei… vossa graça. Juro pela minha honra.

    — Então sua honra está segura, porque me parece que não terá de ir muito longe para encontrá-lo.

    O rosto do barão ficou pálido como leite azedo quando se virou e viu Siegfried parado de pé na entrada da barraca.

    — Vossa graça — saudou.

    — Você demorou. — O conde sorriu.

    — Teria vindo mais rápido se tivesse lembrado de deixar um mapa.

    O lorde riu e foi então que o velho Frost entrou em pânico. De repente não era mais que uma sombra na tenda do lorde, vendo a sua posição e influência sendo tomadas por um mero mercenário de baixo nascimento. Pelo assassino de seu filho.

    Então notou Dorian nas costas de Siegfried, com o rosto ensanguentado e mole como um cadáver; a desculpa perfeita para deixar todo o seu ódio jorrar:

    — Assassino! — O barão sacou a espada e as risadas morreram. — Primeiro meu filho. Agora o meu neto.

    — Guarde a espada, Kastor — ordenou o conde, mas o velho não lhe deu ouvidos.

    — É isso o que planeja, não é?! Você veio atrás de mim. Quer matar meus descendentes, tomar meu lugar. Dane-se a justiça! Eu terei sua cabeça!

    — Eu mandei guardar a espada! — A voz do lorde trovejou com o soco que deu na mesa e finalmente o barão Frost voltou a si.

    Mas não obedeceu.

    Ao invés disso, se retirou às pressas da tenda e desapareceu, esquecendo-se completamente do seu neto.

    Não haviam trazido o sacerdote, nem servos ou noviços para tratar dos ferimentos, por isso coube ao próprio conde tratar as feridas de Dorian, lhe dando um gole da poção verde menta com cheiro de açúcar que carregava consigo.

    — Um elixir mágico — explicou o lorde. — Drew é um sacerdote competente. A maioria deles não sabe fazer esse tipo de coisa. E são caros, por isso levo apenas um ou dois frascos comigo. Aqui, beba. Não vai curar suas feridas, não como a magia dele, mas deve parar o sangramento e um pouco da dor.

    E parou.

    Ainda teve de costurar o corte em sua cintura e enfaixar, mas a dor diminuiu até se tornar um simples incômodo e quando voltou a anoitecer, a ferida já havia cicatrizado.

    Dorian, por outro lado, não estava tão bem.

    Seu rosto havia sido dilacerado, com um corte vindo de trás da sua orelha esquerda até a parte direita dos seus lábios, arrancando a pele dos seus ossos e expondo o seu crânio meio fraturado.

    A poção impediu que o ferimento apodrecesse e infeccionasse, mas tiveram de enfaixar seu rosto e levá-lo na carroça, junto com os mantimentos. De vez em quando acordava, mas apenas por tempo o bastante para reclamar de fome, sede, dor ou jurar vingança contra Siegfried.

    O barão Frost voltou a aparecer na manhã do quarto dia de sua jornada; dois dias após ter deixado o acampamento.

    — Achei que tivesse voltado ao Salão — disse o conde, quando o velho cavalgou até eles, vindo da floresta profunda. — Onde estava?

    — Peço perdão, vossa graça. Foi rude da minha parte deixá-los de forma tão abrupta, mas não queria que me visse em um estado tão patético, e quando me recompus, já haviam partido e custei a achá-los. Juro pela honra de minha casa que isso não voltará a se repetir.

    — … Dorian está se recuperando bem, talvez queira vê-lo.

    — Se vossa graça me permitir.

    O barão fez uma reverência e então trotou até o neto. Quando estava distante demais para ouvi-los, Siegfried se virou para o seu lorde e o questionou:

    — Que merda acabou de acontecer?

    — Parece que você não é mais o único que o velho quer morto.

    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.

    Nota