Índice de Capítulo

    — Tem certeza disso? — perguntou o conde, se abaixando para inspecionar o cadáver de Thorbert.

    — Tenho, vossa graça — respondeu Siegfried. — Nos conhecemos não mais do que uma ou duas semanas depois de eu aportar em Thedrit. Foi ele quem me apresentou ao Eradan.

    “Depois de eu ter salvo sua vida de um bando de piratas qualquer”, lembrou. Ainda podia sentir o cheiro de maresia misturada com álcool e o gosto de sangue em sua boca quando a filha mais nova do taverneiro tentou ajudar e acertou um alaúde em seu rosto.

    “Será que ela ainda tá esperando por ele?”

    Se estivesse, não seria a única.

    — Qual o problema? — perguntou, tentando não lembrar do rosto de todas as garotas com quem o seu falecido amigo jurou se casar.

    — Esse! — O lorde jogou um ornamento circular, com a imagem de um punho entalhada no metal; Siegfried o pegou no ar. — É o broche de um dos meus batedores. O manto também. Não sei qual deles, mas não importa. Mandei oito homens aos quatro cantos, para ver em que pé estávamos com os rebeldes. Oito. Dentro do meu próprio território. Mas nenhum deles voltou ainda. E agora descubro que Eradan tinha homens escondidos a menos de cem metros da minha casa, e que quase sequestraram minha sobrinha, bem debaixo do meu nariz.

    — Eradan também conhece essas terras, e nem todos os seus homens são estrangeiros, alguns deles cresceram no condado. Conhecem bem essas ruas e os moradores. O vilarejo é grande demais pra vigiar todos.

    — Então vamos torná-lo menor.

    O conde fez o chão de madeira podre da taverna ranger, quando se retirou à passos largos.

    — Igmar! — gritou, com a sua voz se misturando à de um trovão que quebrou o céu.

    Um soldado correu até uma esquina e, momentos depois, voltou trazendo o capitão da guarda.

    — Vossa graça — saudou Igmar.

    — Traga os mortos-vivos e cerque a vila, não deixe ninguém escapar! Mande os homens irem de porta em porta e vasculharem cada canto das casas. Sei que deve haver mais rebeldes por aqui, ache-os! Traga também os vendedores de escravos e qualquer um que tente fugir ou ficar perambulando pelas ruas, mas quero-os vivos!

    — Será feito, vossa graça.

    O conde se retirou e Igmar fez o mesmo, mas não sem antes dar um esbarrão no ombro de Siegfried, ao passar por ele gritando ordens aos seus soldados.

    Quando os homens se retiraram, Gwen saltou do segundo andar de uma casa qualquer e caiu bem na sua frente, com os joelhos dobrados e as mãos apoiadas no chão, como uma gata. Ela se levantou, abaixou o capuz e sacudiu o cabelo molhado.

    Tinha abandonado o casaco de pele e o vestido de seda pelas mesmas roupas de couro preto que usava quando se conheceram, remendadas e coladas ao corpo por causa da chuva. Onde ela conseguiu? Não tinha a menor ideia.

    — Eu mandei você ficar no salão.

    — E eu fiquei, mas você não disse nada sobre eu ‘continuar’ lá, né? — Ela sorriu e então correu alguns passos até um beco, antes de parar e se virar para Siegfried. — Vem logo. Vai deixar uma garota frágil e inocente andar sozinha nesse escuro? Cadê o seu cavalheirismo?

    — Tá procurando essa garota ‘frágil’ e ‘inocente’ — respondeu, mas a seguiu assim mesmo.

    Todas as ruelas pareciam muito iguais e muito diferentes. Não havia nenhuma organização ali, cada um levantou sua casa da forma que achou melhor; algumas eram coladas uma na outra, ou tão próximas que apenas um rato seria capaz de passar pelo vão, e mesmo os becos mais largos seriam simplesmente impossíveis de atravessar usando uma armadura completa.

    As paredes também eram muito parecidas umas com as outras; pedras cobertas por musgos e raízes que cresciam por entre as frestas. Quanto mais andavam, mais apertadas se tornavam, como se as ruelas os estivesse engolindo pouco a pouco.

    Logo o céu desapareceu sobre suas cabeças, até que não fizesse mais diferença se estavam de olhos abertos ou fechados, mas Gwen seguia com confiança pelo labirinto de becos. Se estava perdida, sabia esconder muito bem.

    — Pra onde cê tá me levando? — ele perguntou, enquanto se espremia para passar por um vão apertado demais; sua brigantina não ajudou.

    — O conde quer achar os rebeldes, né? Então. Ele tá procurando no lugar errado. É aqui que a gente vai achar eles.

    — A única coisa aqui são ratos.

    — Exatamente.

    Não podia ver o rosto da garota, mas sabia que ela estava sorrindo.

    Então os gritos começaram.

    O barulho da chuva abafava o som, mas de vez em quando podia escutar mobílias de madeira se partindo ou sendo arrastadas. Quando passou por um gato preto que corria na direção oposta, podia jurar ter ouvido aço e pessoas morrendo, mas seguiu em frente e então não ouviu mais nada.

    Já estava pensando em voltar, quando uma luz repentina machucou seus olhos e finalmente saíram em uma praça secreta, muito parecida com aquela onde encontraram Letya naquela manhã.

    Exceto por três portas de madeira, não havia mais nada no local.

    Gwen caminhou até a mais próxima e passou os dedos pelo batente, como se estivesse procurando por alguma coisa.

    Depois de alguns minutos, ela fungou irritada e foi até a segunda porta, começando novamente o mesmo procedimento cuidadoso, sem dizer uma única palavra ou dar atenção aos gritos que se tornavam cada vez mais próximos e audíveis.

    — Que se dane! — Siegfried caminhou até a terceira porta e a abriu sem dificuldades.

    Lá dentro, tudo o que encontrou foi um cômodo vazio e escuro. O piso de madeira rangendo a cada passo que dava… Até o terceiro. Algo afundou sob seus pés, ativando um mecanismo oculto por baixo da madeira, que fechou a porta atrás dele com um estrondo, mas não parou de ranger.

    — Merda!

    Lembrou de grades caindo do teto nas ruínas do Forte dos Demônios. Não sabia para onde ir, mas a experiência lhe dizia para nunca ficar no mesmo lugar quando se ativa uma armadilha, então saltou para o lado, em direção às escadas que levavam até o segundo andar, bem a tempo de ver um armário cair onde esteve a apenas alguns instantes atrás.

    A mobília se despedaçou, espalhando poeira e lascas de madeira, bloqueando a única saída.

    Siegfried sacou a espada, mas a poeira fez seus olhos arderem e tudo o que viu foram quatro pequenas sombras se movendo pela escuridão, com o assoalho rangendo sob seus pés, como ratos gigantes correndo pelo sótão.

    As sombras atacaram em grupo e rasgaram suas pernas e braços com metal afiado, mas os cortes não eram profundos; mais um aborrecimento do que uma ameaça.

    Um deles saltou sobre Siegfried com um grito e o rapaz o partiu ao meio com um movimento rápido da sua espada, fazendo chover sangue em seu rosto e desviando dos pedaços que caíram no chão com um baque.

    Seus olhos começaram a se adaptar melhor à escuridão e ele encontrou um deles escondido perto dos escombros, então atravessou a espada no seu peito e puxou a lâmina a tempo de cortar a cabeça de outro, que tentou surpreendê-lo com um ataque pelas costas.

    Restava apenas um e ele recuava.

    — Vamos lá — incentivou Siegfried, caminhando calmamente em direção ao último sobrevivente, que deixou a adaga cair no chão quando suas costas tocaram a parede. — Não quer morrer como um covarde, quer?

    — E-eu me rendo — disse o garoto.

    Siegfried parou.

    Seus olhos agora enxergavam bem melhor e já era capaz de distinguir algumas coisas confusas. A residência era uma casa abandonada, mofada e suja, com a madeira podre e esburacada. Não haviam móveis, exceto pelo armário destruído que bloqueava a porta e um pouco de palha que servia de cama em um canto.

    Mas mais do que isso. Agora podia notar quem matou.

    Viu um garoto de cinco anos partido ao meio pela cintura; uma garotinha de sete com um buraco no peito; outra de nove, com a cabeça decepada. O único que restava era o que estava na sua frente, um moleque de dez anos, vestindo trapos e com o rosto manchado de sangue.

    Era a primeira vez que matava crianças desde os seus treze anos. Aquilo o incomodou.

    Então apontou a espada para o pescoço do último sobrevivente:

    — Por que me atacaram!?

    — E-eu…

    — Responda! — Pressionou a lâmina contra o pescoço do garoto, fazendo um fio de sangue escorrer pelo seu peito. — Foi Eradan que mandou vocês? Thorbert? Qual era a sua missão?

    — Q-que missão…? Foi você que veio aqui… A-a gente só se defendeu. Todos os guardas enlouqueceram do nada. Estão invadindo as casas das pessoas, prendendo e matando todo mundo…

    — …

    — Eu sei quem você é. Ouvi as histórias. — O garoto engoliu em seco e encontrou a coragem para dizer: — O mercenário do conde.

     — Ótimo — disse Gwen, descendo as escadas com passos delicados, passando por cima dos cadáveres como se fossem uma poça de lama e parando ao lado de Siegfried com um sorriso arrogante no rosto: — Cê já começou a fazer as perguntas. Mas podia ter me esperado, sabe?! Então moleque, o que cê tem pra gente?

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