Capítulo 0033: A espiã
— V-vocês vão se arrepender disso! — A voz do garoto saiu aguda e trêmula, como se nem a sua boca tivesse a coragem de se mexer. — A guilda dos ladrões vai ouvir falar disso. T-tô avisando.
— Huh? — Gwen sorriu. — Eles vão, é?
— V-vão! E quando souberem o que fizeram, vão mandar assassinos atrás de vocês e de toda a sua família. Eles têm bruxos poderosos, capazes de conjurar dezenas, não, centenas de demônios das sombras! Chamam eles de A Ordem Sombria dos Demônios Assassinos.
Gwen deixou uma risadinha escapar.
— E-eu tô falando sério! Eles vão matar vocês se eu pedir. São demônios de verdade… E-eles não dormem, não podem ser mortos e sempre sabem onde cês tão… S-se acham que o conde vai–
— E desde quando a guilda se importa com uns ratinhos de rua?
— E-eu não sou um rato! Sou um membro da guilda! U-um membro importante.
Gwen se aproximou, pegando o queixo do garoto e virando o seu rosto de um lado para o outro, tal como um vendedor de escravos avaliando a sua mercadoria, então disse:
— A guilda não gosta de mentirosos. Nem que usem uma marca falsa pra enganar os clientes. Isso faz mal pros negócios.
O rosto do garoto ficou pálido e molhado de suor. Por um momento, pareceu que iria chorar.
— Relaxa moleque. — Ela o soltou e então pôs uma moeda de prata em sua mão, sorrindo gentilmente. — Só queremos contratar os seus serviços. Foi mal pelos seus amigos, mas a culpa é meio que de vocês também, né? Tipo, quem enfrenta um espadachim com o dobro do seu tamanho? Ladrões deviam ser mais espertos do que isso.
— … O-o que você quer que eu roube?
— Agora estamos chegando a algum lugar. Mas o que eu quero de você é uma resposta. Quem é o contato dos rebeldes?
— E-eu não…
— Sem floreios, garoto. — A expressão de Gwen tomou um semblante sombrio e a atmosfera que os cercava voltou a ficar pesada. — Cê já aceitou o pagamento. É melhor começar a abrir a boca, ou ele vai abrir a sua garganta.
Ela apontou para Siegfried, ainda parado bem ao seu lado. Lágrimas escorreram pelos olhos do garoto, mas ele as secou rapidamente e deu com a língua nos dentes:
— T-tem uma garota. Deve ter uns cinco ou seis anos, sei lá, mas é uma rata… Que nem a gente. Já convidei pra nossa gangue, mas ela sempre recusa. Não sei o nome dela, acho que nem tem um. Ninguém conhece ela, mas de uns meses pra cá, tem falado com um pessoal. Cê sabe. Rebeldes. Tipo aqueles caras que foram mortos hoje de manhã. Às vezes ela entrega umas cartas, mas não sei o que dizem. Eles queimam ou vão pra floresta e mandam embora com um bicho qualquer.
— Espera que eu acredite que essa fedelha tem entrado sorrateiramente na fortaleza do conde e surrupiado informações?
— Claro que não. É impossível fazer isso. Não é à toa que se chama ‘fortaleza’. Soube que teve uma ladra estrangeira maluca que foi capturada há um ou dois meses, tentando entrar lá. Já deve tá morta a essa altura.
Gwen sorriu e o garoto continuou:
— Segui ela uma vez, a garota, não a outra que tentou invadir, quero dizer. A que fala com os rebeldes. Vi ela indo até à casa do conde, então segui. Pensei que talvez tivesse algum tipo de passagem secreta ou sei lá, e acho que tinha, mas não encontrei nenhuma. Então ela falou com essa outra garota, mais alta, devia ser um pouco mais velha que você, mas não muito.
— Viu o rosto dela?
— Não, mas vi o cabelo. Castanho longo. E… Bem, vi os peitos. Quero dizer, o volume deles, por baixo da roupa, sabe?! Não eram lá muito grandes.
O garoto deixou os olhos escaparem para o peito de Gwen e de repente ficou assustado, tentando olhar para outra direção.
— N-não que tenha algo errado com isso. Eu amo peitos pequenos! Sério, eu–
— Vá direto ao ponto!
— Huh… Então, depois disso eu voltei lá mais algumas vezes. Acho que elas se falam uma vez por semana. Às vezes ela dá uma carta, mas na maioria só cochicha algo no ouvido dela e então vão embora.
— Foi ela que contou da sobrinha do conde?
— Quem? Ah! É, teve isso aí. Acho que sim, pode ser. Nao é fácil achar ela, e eu tenho que cuidar dos meus… E-eu não tenho tempo pra ficar atrás dela o tempo todo. Então não sei.
— Beleza. Some!
O garoto não pensou duas vezes, passou com cautela por Siegfried, como se o rapaz fosse de algum modo venenoso ao toque. Parou por um instante para olhar as outras crianças mortas e então correu para o andar de cima, batendo uma porta qualquer.
— Uma espiã — disse Siegfried. — Como sabia?
— Não fazia ideia, mas sempre tem um servo ou dois dispostos a soltar a língua por um pouco de prata. Não vejo porque seria diferente com o conde.
— Não foi isso que eu quis dizer. O garoto. Como sabia que ele tinha a informação?
— Ladrões sempre sabem das coisas. — Ela sorriu. — Foi só um palpite. E se ele não soubesse de nada, era só a gente procurar outro. Pra ser sincera, tô mais surpresa por ter sido tão fácil achar ele. Mas fazer o quê?! O garoto ainda é jovem, algum dia vai aprender que uma base subterrânea é melhor do que uma praça secreta.
Então deixaram o local.
Apesar de grande e bem despedaçado, não foi difícil retirar o armário da frente da porta. Depois de jogar para longe os maiores pedaços, tudo o que precisaram fazer foi puxar a porta e ela abriu, arrastando a madeira destruída.
A tempestade havia se tornado uma leve garoa quando saíram, mas já era de noite, por isso não viram o sol.
“Um dia sombrio…”
Quando voltaram para a taverna, os cadáveres já haviam sido removidos. Siegfried deu uma olhada no porão, apenas para ter certeza, e os escravos também tinham sido levados. Nenhum soldado ficou para trás, mas não foi difícil descobrir onde estavam.
A rua principal voltou a ficar apinhada de gente, todas indo na mesma direção.
O rapaz liderou o caminho, abrindo espaço pela multidão sem muita dificuldade. Assim que viam quem era, as pessoas se esforçavam para sair da frente, enquanto outras lhe faziam perguntas:
— Minha filha. Vocês a encontraram também? Ela tem oito anos, cabelo loiro. Por favor.
— Meu senhor, eu imploro. Meu filho é um bom menino, nunca fez nada de mal. Vieram do nada e o levaram sem dizer nada. Por favor, o que foi feito do meu menino?
— O que está havendo? Estamos sob ataque? O rei Helmut marcha sobre nós?
Siegfried não sabia o que responder, por isso não disse nada, mas aos poucos as mãos segurando seus braços e puxando suas roupas se tornaram mais e mais numerosas, até que atravessar todo aquele mar de carne fosse tão difícil como tentar nadar contra a corrente.
— Responda! — gritou um homem gordo que o pegou pelo braço. — O que fizeram com o meu filho? O que significa tudo isso?
O coração de Siegfried disparou e a sua mão se moveu até o cabo da espada.
Estava cercado, ombro-a-ombro com os plebeus ao seu redor, sentindo a respiração pesada deles em sua nuca. Não tinha espaço o bastante para usar o aço, se fosse necessário; a lâmina era grande demais e o espaço muito pequeno.
“Se ele me atacar, isso aqui vai virar um banho de sangue.”
Mas ele não fez isso.
Uma mulher tocou o seu ombro e o homem se pôs a chorar ruidosamente, soltando Siegfried para abraçá-la.
Conforme avançava, as perguntas foram diminuindo, enquanto as pessoas mais à frente respondiam umas às outras. Foi como soube para onde ir.
— Tô te falando, ele saiu prendendo vendedores de escravos, cara. Agora tá lá no templo. Fiquei sabendo que a filha do padeiro, aquela que tinha sumido semana passada, então, ela foi solta não tem nem uma hora.
— Mentira. Por que ele faria isso?
— Sei lá. O conde vem aqui de vez em quando. Uma vez ele até almoçou na casa da minha tia, e quando acabou ainda deu dez moedas de prata pra ela. Vai ver ele é só um cara legal.
— Humpf. ‘Cara legal’. Desde quando nobres se importam com a gente? Se pagou a sua tia, na certa ela era uma espiã. E até parece que ele não sabia dos escravos. Bem debaixo do nariz dele? Aposto que ele fazia parte disso, e só tá fazendo esse teatrinho agora por causa de uma briga qualquer. Ou vai ver são os rebeldes. Soube que tem um monte de garotos indo pro lado daquele fidalgo lá, o filho daquele barão morto. Lancaster, ou sei lá. O conde deve tá caçando eles. Só isso.
— Cê sempre pensa no pior. E ficou chato pra caramba depois que aquela menina que cê gostava virou serva na fortaleza.
— Você quer dizer escrava! Eles nem deixam ela sair. Aposto que foi pra isso que soltaram todos esses escravos. Vi eles passando pela janela. Só tem garota bonita ali. Um bom banho, uma tigela de sopa quente e vão estar prontas pra ‘servir’ o conde também, cê vai ver. É isso que somos pra gente assim.
Encontrou uma barreira de guardas ao final da caminhada, impedindo a multidão de se aproximar do tempo de Elyon, mas abriram caminho para ele e Gwen passarem, quando se aproximaram. Não que parecessem satisfeitos com isso.
Lá dentro, encontraram dezenas de pessoas. Talvez meia centena, ou tão perto disso que não fazia diferença. A maioria eram garotas entre dez e vinte anos, com alguns rapazes e moças mais velhas ou mais novas; todas muito sujas, fracas e vestindo trapos velhos, embora algumas das mais bonitas tivessem um cobertor ou manto em seus ombros, para aquecê-las.
Reconheceu o gladiador e algumas garotas que lhe eram familiares entre os rostos melancólicos, mas não encontrou Letya.
“Provavelmente já voltou pra casa.”
Mas não eram apenas de ex-escravos que o templo estava cheio.
Haviam também homens e mulheres, estes bem mais saudáveis, alguns até com anéis e colares brilhantes. Siegfried contou quinze, quase todos rapazes com não mais do que vinte e poucos anos. Os que usavam joias eram poucos e mais chamativos; uma mulher gorda com o rosto coberto por maquiagem pesada, um velho de óculos que mais parecia um estudioso, uma mulher esbelta e de seios fartos.
Todos tinham os tornozelos acorrentados uns aos outros. Quando viu o taverneiro corcunda entre eles, entendeu o porquê.
— Ei — chamou Gwen.
— Fala.
— Já pode soltar.
Siegfried a olhou confuso e a garota sorriu.
— Minha mão. Já pode soltar. Acho que não vou me perder aqui.
Quando olhou para baixo, o rapaz percebeu. Os dois estavam de mãos dadas, embora não tivesse ideia de quando pegou a dela. Então a soltou.

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