Índice de Capítulo

    Siegfried segurou a espada com duas mãos e girou o quadril, fazendo a lâmina afundar no pell, como se fosse um machado. O tremor ressoou em seus braços e o cheiro de madeira se misturou com o ar úmido da noite, enchendo o seu nariz.

    Ele arrancou a espada com um puxão e voltou a golpear a estaca. Uma vez e então outra. Cada vez mais rápido. Cada vez mais profundo.

    Suas mãos já estavam em carne viva e o céu escuro começava a clarear quando ouviu a voz de Gwen atrás dele:

    — Cara, eu acho que cê já venceu. — Ela sorriu, enrolada até o pescoço em seu casaco de pele. — O poste não teve a menor chance. Mas por que cê tá cortando lenha? O conde te deixou de castigo por acaso?

    — Eu não tô ‘cortando lenha’.

    — Tem certeza? Porque parece–

    — Quê que cê quer?

    — Eu vim ver como cê tava, idiota! — Ela bufou irritada. — Mas já me arrependi. Se eu soubesse que cê ia ser tão babaca, não tinha saído nesse frio. Esse casaco não serve pra merda nenhuma, minha bunda tá congelando. Aposto que esse lobo morreu de frio, porque o pelo dele não serve pra nada.

    — …

    — Humpf. É a última vez que sou legal com você.

    — Tem razão. Desculpa. Eu só tava… Pensando.

    — Hum. Não sabia que cê fazia isso.

    — Tô tentando ser legal aqui.

    — Foi mal, saiu sem querer. — Ela tossiu, limpou a garganta e então juntou as mãos, fingindo uma expressão preocupada com aqueles grandes olhos azuis. — Oh, mestre, qual o problema? Por que está tão triste?

    — …

    — Que foi? Não posso ser sarcástica, não posso ser doce. Cê é muito exigente, ein–

    — Ele vai matar ela, né?

    — Quê? Ah, ‘ela’! Nah. Só depois de alguns dias de tortura. Cê sabe, só pra garantir.

    — É. Foi o que eu pensei.

    — Por quê?

    — …

    — Sieg…

    — Eu só tava pensando. Talvez–

    — Isso é traição.

    — Eu ainda não disse nada.

    — Mesmo assim é traição. Cê vai se matar por causa de uma garota?

    — Eu quase morri por você, né?

    — É, cê devia mesmo pensar com a cabeça de cima de vez em quando, só pra variar.

    Ele não teve tempo de responder.

    O chão tremeu com a marcha acelerada dos guardas que vinham para o seu treinamento matinal e, em questão de segundos, cercaram o casal como um bando de lobos famintos. Trinta ao todo, carregando armas, mas não armaduras.

    Então Igmar avançou, com o seu manto de pele tremulando ao vento e a espada balançando na bainha, enquanto seus homens abriam caminho:

    — É melhor os ratos voltarem pros buracos de onde saíram. — Sua voz ecoou pelo pátio, cheia de orgulho. — Os homens de verdade vieram treinar.

    — Os ‘homens de verdade’ tão precisando mesmo — disse Gwen, com uma pitada de desafio.

    — O que disse!?

    Aço tilintou e os soldados apertaram o cerco, quando o capitão deu um passo na direção da garota, e Siegfried fez o mesmo, se colocando entre eles.

    Os dois trocaram olhares e permaneceram em silêncio por um instante, enquanto os guardas prendiam a respiração, esperando. Então Igmar viu algo engraçado nos olhos do rapaz e deu uma risada profunda:

    — Primeiro a serva, agora a escrava. Vejo que está aprendendo o seu lugar, vira-casaca. Talvez a próxima seja uma cadela. O canil deve ter uma ou duas que dariam um belo par pra você.

    O capitão riu e seus guardas o acompanharam, até que Gwen abriu a boca:

    — Cê fala grosso, pra um velho escondido atrás de meio exército. O que foi? Tá com medo de duas crianças?

    Em um instante as risadas morreram e a boca do capitão da guarda se contorceu em um rosnado:

    — Tenha tento na língua, escrava! A menos que queira perdê-la. A única escondida atrás de alguém aqui, é você! E não pense nem por um segundo que esse escudo de carne vai te fazer algum bem, se eu quiser te fazer algum mal.

    — Quer apostar?

    — A única coisa que um guerreiro aposta, é a vida!

    — Sério? Bem, por que não? — Ela encolheu os ombros. — Não seria a primeira vez que eu jogo por migalhas.

    Não houve sequer um momento de hesitação. No instante em que a garota terminou de falar, Igmar já tinha a espada em mãos; Siegfried também ergueu a sua, e logo todos os guardas ao redor do casal fizeram o mesmo.

    Mas ninguém atacou.

    O Salão dos Poucos não era a casa de um açougueiro. Haviam consequências para quem achava que uma boa estocada no estômago era a solução de todos os problemas.

    Cinco chibatadas, se a vítima sobreviver. Uma corda em volta do pescoço, se ela morrer.

    Mas Igmar era velho; sabia muito bem como as regras funcionavam e, mais importante, como contorná-las.

    — Ora, por que tão tenso? — Sorriu, cortando o ar preguiçosamente, com a ponta da lâmina passando a poucos centímetros da garganta do escudeiro. — A garota me desafiou a um duelo. Pois bem, o que me diz? Tem os culhões para uma batalha justa, ou só sabe atacar os outros pelas costas, vira-casaca!?

    O rapaz deu um breve olhar para Gwen, atrás dele, que sussurrou:

    — De nada.

    Ele sorriu.

    Não levou mais do que alguns instantes para os soldados se organizarem em um círculo perfeito ao redor dos combatentes.

    Um dos soldados ofereceu cota de malha e um escudo ao seu capitão, mas ele rejeitou:

    — Esse é um duelo de habilidades. Não vou permitir que atribuam minha vitória a um casaco de ferro e um pedaço de madeira.

    Siegfried também não usava armadura. Nada além de uma calça de lã negra e uma túnica azul de algodão. Um soldado tímido lhe ofereceu um escudo, mas ele recusou; seu coração batia forte e o sangue fervia de passar a noite treinando, mas não era idiota, já sentia a espada pesando em sua mão e sabia que um escudo lhe faria mais mal do que bem àquela altura.

    Não houve sinal ou mestre das justas para dizer quando começar.

    Assim que estavam prontos, Siegfried e Igmar andaram em círculos ao redor do terreno, observando e avaliando, esperando pelo momento certo… Até que ele veio.

    O velho capitão prestou tanta atenção ao rapaz diante dele, que esqueceu dos arredores e se permitiu ficar contra o sol.

    “Amador.”

    Se é que valia de algo, Igmar percebeu depressa o erro que cometeu. Quando uma faixa de luz ofuscou a sua visão e Siegfried avançou, o homem recuou para as sombras, forçou os olhos a se abrirem e então ergueu a espada.

    Pouco bem lhe fez.

    Naquele breve momento, antes do golpe final, o velho capitão não era mais que um grande boneco de palha esperando pelo seu destino, mas, de algum modo, foi capaz de usar aquele breve instante para acertar a trajetória da lâmina em direção a cabeça do escudeiro.

    Siegfried sentiu seu coração disparar e não teve tempo de pensar no que estava fazendo.

    Sua espada zuniu pelo ar como uma serpente e o rapaz sentiu o sangue quente espirrar em seu rosto quando dilacerou a carne do seu oponente.

    Talvez ele devesse ter aceitado o escudo.

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