Índice de Capítulo

    Não foi até ajudar a despir Brynna, que Siegfried compreendeu os estragos que o conde havia feito na garota.

    Seu ombro esquerdo estava deslocado, inchado e fora do lugar; suas pernas também estavam tão ruins quanto, com os ossos quebrados em três ou quatro lugares diferentes; e os pés dela já tinham um tom arroxeado do sangue acumulado.

    Por baixo do vestido, o corpo da garota estava coberto por hematomas, e quando a tocava nas costelas, podia sentir alguns ossos quebrados.

    — Primeiro o capitão, agora ela — reclamou o sacerdote, arregaçando as mangas do manto até os cotovelos. — Eu não sou um curandeiro, sabiam? E logo quando estava nos estágios finais da minha pesquisa. Francamente! Com licença.

    Siegfried deu um passo para o lado e permitiu que Drew se aproximasse da garota nua deitada sobre a mesa de pedra.

    Então o ritual começou.

    O jovem sacerdote recitou uma língua estranha enquanto suas mãos exploravam o corpo de Brynna; os gritos de dor dela se misturaram com o encantamento e as sombras se aprofundaram, engolindo o mundo ao seu redor.

    Sua cabeça doeu tanto que foi como se alguém o tivesse acertado com um martelo de guerra tão forte que fez seu cérebro derreter e escorrer pelos ouvidos.

    Então tudo ficou turvo e ele saiu da cabana às pressas, caindo de joelhos na terra úmida.

    Lá fora, o céu escuro clareava até assumir uma tonalidade de cinza, enquanto a neve ficava mais e mais forte.

    Siegfried respirou fundo e sentiu o ar frio da manhã queimar seu nariz, mas foi uma sensação boa. Aos poucos sua cabeça parou de latejar e os seus sentidos voltaram ao normal.

    — Oh! Aí está ele — disse Gwen, encolhida em seu casaco de pele; o nariz vermelho de frio. — Ué! Cadê a sua armadura branca e o unicórnio prateado? Que foi, não tem nenhuma garotinha indefesa pra salvar?

    Ele sorriu.

    — Acordou cedo, ein.

    — Eu não dormi. Tava preocupada com um certo idiota que fugiu correndo no seu cavalo branco e me deixou plantada aqui, que nem uma árvore.

    — É… Foi mal.

    — Foi péssimo!

    — Olha, eu sei que cê não gosta disso, mas–

    — ‘Não gosto’? Ha! Garoto, isso nem começa a descrever o que eu sinto… — De repente seu tom ficou mais sombrio. — Eu vi o que rolou. Lá no pátio, quero dizer… Cê devia ter deixado o conde matar ela!

    — O quê?

    — Você tem ideia do que fez? Do que sacrificou? — Ela riu, mas não de felicidade. — Por que eu ainda pergunto?! É claro que não!

    — Do que cê tá falando?

    — Você queimou influência, seu idiota! O conde te respeita, te escuta. Caramba! Acho até que ele gosta de você. E o que cê faz? Desafia ele na frente de todo mundo! E, mesmo assim, ele não tocou um dedo sequer em você! Sabe quantas pessoas podem fazer isso? Quatro! E você é a única que não faz parte da família dele!

    Então ela começou a estrangular o ar, como se fosse seu pescoço, puxou os cabelos e por fim tampou o rosto com as mãos, abafando um grito de raiva:

    — Caramba! Se acalma, Gwen. Respira. Isso. Tá legal. Tá legal. Tudo bem. Tá tudo… Bem.

    — Não é grande coisa.

    — …

    — Eu só–

    — Se você disser mais uma palavra, eu juro que enfio uma seta tão fundo na sua bunda, que ela vai sair pela sua garganta!

    — …

    — Eu sei que toda essa coisa de ‘política’ é algo novo pra você, mas deixa eu te contar um segredinho: quando alguém poderoso gosta de você, cê não joga merda na cara dele só pra salvar uma traidora! O que cê tinha na cabeça!?

    — Ela não merecia…

    — Quê?

    — Ela só tava seguindo ordens, foi a–

    — A filha do conde. Tá, e daí?

    — Cê sabia?

    — É claro que eu sabia, ela me contou! A Eme, quero dizer.

    — O quê!? Quando?

    — Eu falei com ela depois de descobrir que a Brynna era a espiã. Não tinha como ela não saber o que a amiga tava fazendo e, cá entre nós, a Eme meio que deu na telha quando a gente conheceu a Letya.

    — Por que cê não me contou?

    — E que diferença faz?

    — Se eu soubesse…

    — Você o quê? Ia contar pro conde? Acha que isso ia impedir ele de afundar a cara dela no chão? Porque eu te garanto que não. Além disso, seria uma péssima jogada. Nós dois somos os únicos que sabem que foi ela quem deu a ordem, e o conde confia em você. Uma palavra sua e ela já era, e sabe disso. Nós temos a filha do conde na palma da mão! Isso não é pouca coisa.

    — …

    — Que foi?

    — Cê tem mesmo um talento pra mentir e manipular os outros, ein. Eu nunca teria pensado nisso.

    Ela sorriu, orgulhosa de si mesma.

    — Dizer que uma ladra é boa em mentir, é como dizer que um sacerdote é bom em rezar. Mesmo assim, valeu pelo elogio. Mas por que cê tá com essa cara?

    — Eu já contei.

    — Hã?

    — Pro conde. Eu já contei pra ele que foi a Eme quem deu as ordens. Foi por isso que ele deixou eu levar a Brynna.

    — …

    — Gwen?

    — …

    — Gwen? Cê tá bem?

    Ela não respondeu, ao invés disso, sentou em um canto, apoiada na parede da cabana, e abraçou os joelhos enquanto encarava o nada, indiferente à neve que começava a se acumular em seu cabelo castanho, mas não ao frio.

    Já era de tarde quando Brynna deixou a cabana, desnuda e confusa. Então Siegfried cobriu ela com seu manto e os três foram até o salão. 

    O local estava em alvoroço quando o trio entrou, mas o falatório logo se transformou em sussurros conforme se dirigiam aos seus lugares.

    Ninguém parecia saber como reagir.

    Brynna era uma traidora, mas Siegfried tinha o favor do conde. Deviam desprezá-la ou bajulá-lo? Nem eles pareciam saber a resposta, por isso mantiveram distância.

    Uma serva mal tinha reunido coragem para lhes servir uma bandeja de carne seca com batatas e três canecas de cerveja, quando Siegfried foi chamado aos aposentos do conde.

    — Não se esqueça — disse Gwen, agarrando o braço de Brynna —, cê só tá viva por causa dele! Então meça bem suas palavras!

    A garota assentiu assustada, então o salão caiu em um silêncio profundo enquanto os presentes observavam atentamente cada passo do trio, até chegarem à porta de madeira maciça que dava acesso ao quarto do conde.

    Mas o lorde não era o único esperando por eles.

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